O Brasil
real: Quando tudo está fora do seu lugar
Sempre
tive a convicção, que se cristaliza, quando vejo as situações disfuncionais na
vida política brasileira, de que a causa do problema está no descasamento entre
a Constituição de 1988, elaborada na Constituinte (1986-88) para um figurino de
regime parlamentarista. Por excesso de cautela do presidente da Assembleia
Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães (PMDB), a definição ficou
para um plebiscito, marcado para cinco anos depois, escolher o modelo
político-administrativo.
Se
em 1988 o desenho do país já mudara muito (com a geada do café em São Paulo e
Paraná, em 1975, houve brusca mudança com a erradicação das lavouras, que levou
ao fim do colonato e às crises no abastecimento de alimentos) - o Censo de 1980
já mostra o predomínio da população urbana sobre a rural -, o espírito da
Constituição, depois de 21 anos de ditadura, foi mais de um acerto de contas
com o passado. Como faltou olhar bem o presente e pressentir o futuro (cinco
anos depois o parlamentarismo, como em 1963, foi novamente negado em
plebiscito).
Tivesse
Tancredo Neves sobrevivido e governado, o primeiro dos três primeiros-ministros
da República, talvez, tivesse dado outro destino ao país. O fato é que a
Constituição, aprovada com o desenho parlamentarista em 5 de outubro de 1988,
tinha o cenário político dominado por seis ou sete agremiações políticas fortes
(PMDB, PFL, PP, PSDB, PDT e PT) e grupos menores (a esquerda e à direita,
incluindo os ambientalistas). O país já era urbano e ainda majoritariamente
católico. Mas a cabeça da população, que migrou para as periferias das cidades,
ainda era rural, cheia de crendices.
Foi
um caminho fértil para a pregação ostensiva das novas igrejas pentecostais,
muitas das quais oriundas da tradicional Assembleia de Deus. A grande novidade
era usar a televisão nas pregações, em vez do rádio, como fez Alziro Zarur, nos
anos 60. A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) é fundada em 1977, em meio
à transição demográfica, por Edir Macedo e Romildo Ribeiro Soares, que depois
cria a Igreja Internacional da Graça de Deus.
Todas
vêm disputar a influência nas periferias onde atuavam as Comunidades Eclesiais
de Base da Igreja Católica, que deram suporte à criação do PT. A condenação do
Papa João Paulo II à Teoria da Libertação deixou a área das CEBs à mercê dos
pastores, missionários e bispos. Mais do que templos de oração, os locais se
transformaram em poderosos currais eleitorais e centros de propagação de ideias
conservadoras que caíram no gosto dos ex-lavradores (uma comparação com o
avanço da música sertaneja não é extemporânea).
·
Brasil tem 29 partidos
políticos
O
resultado é que, sem a aprovação de cláusulas de barreira que vinculem a
representação na Câmara dos Deputados ou no Senado Federal a um quociente
mínimo do eleitorado, há uma miríade de 29 (ou 30, se do nada não surgiu mais
um) partidos políticos. Nos regimes presidencialistas, há quatro um cinco
partidos fortes. Nos Estados Unidos, embora existam outros, predominam
Republicanos e Democratas. Na Europa, o parlamentarismo permite a existência de
reinos na Grã Bretanha (com dois fortes partidos), na Espanha, Bélgica, Grécia,
Holanda, Suécia, Dinamarca, assim como no Japão. Em todos, restrições à
presença no Parlamento reforçam as coligações partidárias, o que facilita a
governança.
No
parlamentarismo as crises políticas são resolvidas com novas composições no
parlamento (como numa montagem de Lego, ajustam-se peças do centro mais à
direita ou mais à esquerda). No presidencialismo brasileiro, as crises parecem
permanentes, pois o presidente da República, eleito do Poder Executivo, jamais
consegue formar maioria com a colcha de retalhos partidária.
Fernando
Henrique Cardoso (PSDB) fez poderosa coligação com o PFL e parte do PMDB, para
enfrentar a oposição do PT durante os oito anos de mandato, mas havia muito
menos partidos em cena. O PT governou oito anos com Lula (2003-2010) fazendo
coligações com os partidos de esquerda e alguns do centro (PTB, PMDB e
Republicanos, o partido da IURD). Dilma tentou ser mais independente do PMDB,
mas bateu de frente com os conservadores liderados pelo então presidente da
Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que tinha (e ainda tem) forte ligação com as
igrejas evangélicas conservadoras e o “baixo clero”. Dilma caiu no impeachment
de 2016, sendo sucedida pelo vice Michel Temer (PMDB), que fora por duas vezes
presidente da Câmara.
Salvo
Severino Cavalcanti (PP-PE), representante do “baixo clero”, que durou pouco no
cargo, acusado de corrupção para receber propina para renovar a concessão do
restaurante da Casa, os presidentes da Câmara dos Deputados passaram a ter
forte poder em função do desenho parlamentarista da Constituição de 1988. Foi a
“Constituição Cidadã” que criou a figura da Medida Provisória (em lugar dos
decretos-leis da ditadura), mas com prazo definido para a Câmara e/ou Senado
aprovarem a MP). O mecanismo colocou um poder enorme nas mãos dos presidentes
da Câmara. Foi assim com Bolsonaro, inicialmente com um Rodrigo Maia (PMDB-RJ)
mais independente e representante do “alto clero”, depois com um aguerrido
representante do “baixo clero” Arthur Lira (PP-AL).
Ao
criar o Orçamento Secreto e avançar no poder dos deputados (o Senado fez quase
o mesmo) sobre as verbas do Orçamento Geral da União, Lira virou ídolo dos
deputados eleitos nos rincões e periferias urbanas com o apoio dos grandes
puxadores de votos que são os pastores, bispos e missionários. Sua reeleição à
presidência da Mesa da Câmara, em 1º de fevereiro de 2023, mostrou o ápice de
seu poder, já no governo Lula III, sob um Congresso mais conservador e com mais
influência evangélica do que com Bolsonaro. Evidente que Arthur Lira tentou
emparedar o governo, como fez com Bolsonaro (onde o PP integrava a base do
governo eleito em 2018). Água e azeite não se misturam. Na falta de base
partidária sólida (inviável na miríade atual), cada votação de Projeto de Lei,
de Proposta de Emenda Constitucional (PEC) ou MP, é quase o parto da montanha.
O “obstetra” Lira cobra caro pelos serviços.
·
Grandes e pequenos
negócios
Que
a política de coalizão virou um tremendo toma lá-dá cá, desde que Roberto
Cardoso Alves (PTB-SP), um dos articuladores do “Centrão” na Constituinte,
cunhou a expressão “É dando que se recebe”, numa clara demonstração de que os
alinhamentos políticos precisam ser recompensados por cargos ou verbas, ou seja,
por mais poder, um governo de centro-esquerda precisa contemplar cargos para
apadrinhados de políticos da direita ou do bloco conservador. Isso não seria
ruim se os acordos de coalizão fossem permanentes e os partidos fechassem
questão nas cotações. Mas as negociações podem ser de “porteira fechada”, como
foi a presidência e as vice-presidências e diretorias da Caixa Econômica
Federal com o “centrão”, mas na porteira para dentro as cercas estão abertas
para cada um agir como queira em cada votação.
Numa
semana difícil para o governo, com várias votações importantes na Câmara,
Arthur Lira se antecipou à rasteira que levou na votação sobre a autorização
para o Supremo Tribunal Federal prosseguir com o processo contra o deputado
Chiquinho Brazão (eleito pelo União-RJ), que ficou sem partido após a acusação
da Polícia Federal de ter conspirado para a execução da vereadora Marielle
Franco (PSol-RJ) e do motorista Anderson Gomes. Lira operou para o Plenário da
Câmara não ter quorum mínimo (157 votos), pela ausência de votação mesmo pelo
celular, mas o ministro de Relações Institucionais (responsável pela
Articulação Política no Congresso), Alexandre Padilha, atuou para atrair mais
votos. O resultado, que contrariou Lira, foi que 277 deputados autorizaram o
prosseguimento do processo.
Lira
soltou os cachorros sobre Padilha, chamando-o de “incompetente” e nomeando-o
“inimigo”. Mas havia um fator extra a irritar o presidente da Câmara, cujo
poder tem dias contados para se reduzir, à medida que se aproxima a eleição da
nova Mesa da Câmara, em fevereiro de 2025. Se Lira não eleger o sucessor,
voltará à planície no planalto central, com baixo poder de fogo. Uma prova da
perda de poder foi que o ministério do Desenvolvimento Agrário demitiu no
começo do mês um primo do presidente da Câmara, Cesar Lira, da Superintendência
do Incra em Alagoas. Embora soubesse das reações dos movimentos
pró-assentamentos agrários sobre a permanência do primo, que ocupava o cargo
desde o governo Bolsonaro, com quem era afinado, Lira ficou possesso por não
ter sido avisado antes. Em vez de uma ”demissão a pedidos”, a saída de Wilson
Cesar de Lira foi publicada no Diário Oficial da União. Para consertar a mágoa,
Lira indicará o substituto. Mas as cicatrizes ficaram.
Em
capa desta semana (um pouco ousada para meu gosto), a revista “Isto é” bate
duro em Arthur Lira. O tema é Deus, Pátria e Família, ao abordar “Os
Sabotadores”, que inclui o movimento do comício de Bolsonaro e simpatizantes do
golpe de 8 de janeiro de 2023 neste domingo, na Avenida Atlântica, na praia de
Copacabana, no Rio de Janeiro. A revista desanca o presidente da Câmara:
“Quem é Arthur Lira? Deputadozinho medíocre. Em 2022, conquistou
219.452 votos, apenas 13,26% dos votos válidos dos alagoanos. Eleito presidente
da Câmara pela bancada de corruptos evangélicos e milicianos. LULA: 60,3
milhões de votos de todo o Brasil. O país não pode ser refém de Lira!”, encerra a contundente capa da revista.
Ø Ainda o Brasil do Bem. Por Adhemar Bahadian
Meu
artigo da semana passada levou alguns de meus leitores a me agraciarem com o
epíteto de "ingênuo”. Não me ofende a suposta ironia. Desde os meus 18
anos de idade, quando me formei no Colégio São Jose - ainda por cima orador da
turma - guardo a advertência de Sócrates, que nossa turma escolheu como lema de
nossa formatura: “Sei que não sei nada“.
Tenho
o maior respeito pela divergência de ideias e se há algo que me tira do prumo é
o totalitarismo ideológico, onde não há espaço para a entrelinha do diálogo ou
até da discrepância.
Pareceu
ingênuo que eu tivesse a ousadia de buscar, nestes tempos tumultuados em que
vivemos, um lado bom do Brasil e até insinuasse nossa fortuna como país e nação
capaz de participarmos de forma crescente e sempre determinada na construção de
um mundo melhor e mais solidário.
Certamente
outros mais bem versados do que eu no estudo das relações econômicas
internacionais poderão explicar de forma mais detalhada o que resumidamente
exporei a seguir.
De
qualquer forma, não hesitarei em recomendar os livros de Celso Furtado, Carlos
Lessa, Antonio Castro, Mario Henrique Simonsen (Macroeconomia), José Fiori,
Andre Lara Resende no Brasil, e Stieglitz, Acemoglu e Hobsbawm, fora do Brasil,
como os primeiros nomes que me veem à mente como semeadores das percepções que
descrevo nesta crônica. Logicamente, eventuais distorções do pensamento destes
mestres se devem única e exclusivamente a mim próprio.
Concordo
que estamos a viver uma das fases mais complexas e tumultuadas desde a Segunda
Guerra Mundial e percebo a racionalidade nos que temem que apenas um conflito
regional ou até mundial seria capaz de redirecionar nosso futuro neste planeta.
Ou para acabar de vez com ele.
As
guerras, principalmente as que envolvem Rússia e Ucrânia, Israel e Hamas na
faixa de Gaza, além da possível entrada do Irã e dos Estados Unidos no
conflito, são de molde a aterrorizar todos os homens sensatos deste mundo, com
a possível exceção de autocratas psicopatas fantasiados de salva-pátrias ou de
semideuses. Merece também, menção honrosa a cupidez do estamento
industrial-militar sobre o qual nos alertou faz tempo o presidente Eisenhower.
A
esta turbulência militar se vem juntar a crise econômica que, desde 2008, não
nos deixou e está na raiz do maior nó ideológico com que nos vemos enredados
sobretudo no Ocidente.
Compartilho
igualmente do pensamento que atribui a causa desta crise econômica ao
esgotamento do modelo neoliberal trazido por economistas como Mies e
aprofundado pela ideologia de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, acolitada
pela globalização e seus defensores e vigários, em especial Milton Friedman e o
Consenso de Washington.
Hoje
em 2024, tal como vejo o panorama desta ponte à beira de ser desmoronada por um
cargueiro descontrolado, a situação política internacional vive uma estranha
alegoria como se estivéssemos à espera de Godot, embora saibamos que Godot não
passa de uma mistificação ou um simples devaneio psicótico.
O
neoliberalismo - está mais do que provado - provocou distorções graves no
sistema econômico internacional, com o aumento inquestionável dos ricos e o
empobrecimento invulgar dos pobres. Não é opinião é estatística.
As
propostas de semideuses como Trump são particularmente ilustrativas. Trump
pretende convencer o eleitorado mundial que as dificuldades que estamos a
enfrentar decorrem do “sistema”, entendendo-se por sistema a governança mundial
que deve ser combatida para voltamos a uma América grandiosa como sempre e
ordenadora de uma política externa hegemônica "benéfica aos cidadãos do
mundo".
Ocorre
que Trump, astutamente, nos esconde seu mais do que óbvio compromisso com a
autocracia de um lado e com o neoliberalismo sem peias de outro.
Financiado
pelos maiores conglomerados financeiros, Trump tem proposta de governo
absolutamente protecionista e estimuladora de um ultranacionalismo de forte
viés autoritário. Como se não bastasse, Trump se insurge contra direitos das
mulheres sobre seu próprio corpo e destino, opõe-se aos casamentos não
heterossexuais e retrocede a uma América infinitamente mais primitiva e
belicosa deste quase um quarto de século.
Lamentavelmente,
Trump representa uma força ideológica seguida no Brasil pelos que não querem
que as grandes empresas sejam disciplinadas por leis e regulamentos a impedir o
abuso do poder econômico parasita da sociedade sempre a solicitar privilégios e
benesses descabidas.
O
Brasil tem Constituição Federal que delineia nosso pacto social. Que determina
os procedimentos entre o capital, o trabalho e os poderes da Nação. Hoje,
parece haver um esforço patético para fazer dela um instrumento de cisão da
sociedade brasileira, quando na realidade ela é fruto da dor e da experiência
surgidas de quase trinta anos de obscurantismo cívico.
Finalmente,
o Brasil é um dos únicos, senão o único, país do mundo com recursos humanos,
materiais e naturais para se associar a um movimento saneador de nosso destino
neste planeta.
As
propostas de reversão de nosso destino como grande nação deste século são
infelizmente tingidas de sangue lesa-pátria ou da mais deslavada corrupção. Ou
dos dois crimes ao mesmo tempo.
Fonte:
Por Gilberto Menezes Côrtes, no Jornal do Brasil
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