segunda-feira, 22 de abril de 2024


 

O Brasil real: Quando tudo está fora do seu lugar

Sempre tive a convicção, que se cristaliza, quando vejo as situações disfuncionais na vida política brasileira, de que a causa do problema está no descasamento entre a Constituição de 1988, elaborada na Constituinte (1986-88) para um figurino de regime parlamentarista. Por excesso de cautela do presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães (PMDB), a definição ficou para um plebiscito, marcado para cinco anos depois, escolher o modelo político-administrativo.

Se em 1988 o desenho do país já mudara muito (com a geada do café em São Paulo e Paraná, em 1975, houve brusca mudança com a erradicação das lavouras, que levou ao fim do colonato e às crises no abastecimento de alimentos) - o Censo de 1980 já mostra o predomínio da população urbana sobre a rural -, o espírito da Constituição, depois de 21 anos de ditadura, foi mais de um acerto de contas com o passado. Como faltou olhar bem o presente e pressentir o futuro (cinco anos depois o parlamentarismo, como em 1963, foi novamente negado em plebiscito).

Tivesse Tancredo Neves sobrevivido e governado, o primeiro dos três primeiros-ministros da República, talvez, tivesse dado outro destino ao país. O fato é que a Constituição, aprovada com o desenho parlamentarista em 5 de outubro de 1988, tinha o cenário político dominado por seis ou sete agremiações políticas fortes (PMDB, PFL, PP, PSDB, PDT e PT) e grupos menores (a esquerda e à direita, incluindo os ambientalistas). O país já era urbano e ainda majoritariamente católico. Mas a cabeça da população, que migrou para as periferias das cidades, ainda era rural, cheia de crendices.

Foi um caminho fértil para a pregação ostensiva das novas igrejas pentecostais, muitas das quais oriundas da tradicional Assembleia de Deus. A grande novidade era usar a televisão nas pregações, em vez do rádio, como fez Alziro Zarur, nos anos 60. A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) é fundada em 1977, em meio à transição demográfica, por Edir Macedo e Romildo Ribeiro Soares, que depois cria a Igreja Internacional da Graça de Deus.

Todas vêm disputar a influência nas periferias onde atuavam as Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, que deram suporte à criação do PT. A condenação do Papa João Paulo II à Teoria da Libertação deixou a área das CEBs à mercê dos pastores, missionários e bispos. Mais do que templos de oração, os locais se transformaram em poderosos currais eleitorais e centros de propagação de ideias conservadoras que caíram no gosto dos ex-lavradores (uma comparação com o avanço da música sertaneja não é extemporânea).

·        Brasil tem 29 partidos políticos

O resultado é que, sem a aprovação de cláusulas de barreira que vinculem a representação na Câmara dos Deputados ou no Senado Federal a um quociente mínimo do eleitorado, há uma miríade de 29 (ou 30, se do nada não surgiu mais um) partidos políticos. Nos regimes presidencialistas, há quatro um cinco partidos fortes. Nos Estados Unidos, embora existam outros, predominam Republicanos e Democratas. Na Europa, o parlamentarismo permite a existência de reinos na Grã Bretanha (com dois fortes partidos), na Espanha, Bélgica, Grécia, Holanda, Suécia, Dinamarca, assim como no Japão. Em todos, restrições à presença no Parlamento reforçam as coligações partidárias, o que facilita a governança.

No parlamentarismo as crises políticas são resolvidas com novas composições no parlamento (como numa montagem de Lego, ajustam-se peças do centro mais à direita ou mais à esquerda). No presidencialismo brasileiro, as crises parecem permanentes, pois o presidente da República, eleito do Poder Executivo, jamais consegue formar maioria com a colcha de retalhos partidária.

Fernando Henrique Cardoso (PSDB) fez poderosa coligação com o PFL e parte do PMDB, para enfrentar a oposição do PT durante os oito anos de mandato, mas havia muito menos partidos em cena. O PT governou oito anos com Lula (2003-2010) fazendo coligações com os partidos de esquerda e alguns do centro (PTB, PMDB e Republicanos, o partido da IURD). Dilma tentou ser mais independente do PMDB, mas bateu de frente com os conservadores liderados pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que tinha (e ainda tem) forte ligação com as igrejas evangélicas conservadoras e o “baixo clero”. Dilma caiu no impeachment de 2016, sendo sucedida pelo vice Michel Temer (PMDB), que fora por duas vezes presidente da Câmara.

Salvo Severino Cavalcanti (PP-PE), representante do “baixo clero”, que durou pouco no cargo, acusado de corrupção para receber propina para renovar a concessão do restaurante da Casa, os presidentes da Câmara dos Deputados passaram a ter forte poder em função do desenho parlamentarista da Constituição de 1988. Foi a “Constituição Cidadã” que criou a figura da Medida Provisória (em lugar dos decretos-leis da ditadura), mas com prazo definido para a Câmara e/ou Senado aprovarem a MP). O mecanismo colocou um poder enorme nas mãos dos presidentes da Câmara. Foi assim com Bolsonaro, inicialmente com um Rodrigo Maia (PMDB-RJ) mais independente e representante do “alto clero”, depois com um aguerrido representante do “baixo clero” Arthur Lira (PP-AL).

Ao criar o Orçamento Secreto e avançar no poder dos deputados (o Senado fez quase o mesmo) sobre as verbas do Orçamento Geral da União, Lira virou ídolo dos deputados eleitos nos rincões e periferias urbanas com o apoio dos grandes puxadores de votos que são os pastores, bispos e missionários. Sua reeleição à presidência da Mesa da Câmara, em 1º de fevereiro de 2023, mostrou o ápice de seu poder, já no governo Lula III, sob um Congresso mais conservador e com mais influência evangélica do que com Bolsonaro. Evidente que Arthur Lira tentou emparedar o governo, como fez com Bolsonaro (onde o PP integrava a base do governo eleito em 2018). Água e azeite não se misturam. Na falta de base partidária sólida (inviável na miríade atual), cada votação de Projeto de Lei, de Proposta de Emenda Constitucional (PEC) ou MP, é quase o parto da montanha. O “obstetra” Lira cobra caro pelos serviços.

·        Grandes e pequenos negócios

Que a política de coalizão virou um tremendo toma lá-dá cá, desde que Roberto Cardoso Alves (PTB-SP), um dos articuladores do “Centrão” na Constituinte, cunhou a expressão “É dando que se recebe”, numa clara demonstração de que os alinhamentos políticos precisam ser recompensados por cargos ou verbas, ou seja, por mais poder, um governo de centro-esquerda precisa contemplar cargos para apadrinhados de políticos da direita ou do bloco conservador. Isso não seria ruim se os acordos de coalizão fossem permanentes e os partidos fechassem questão nas cotações. Mas as negociações podem ser de “porteira fechada”, como foi a presidência e as vice-presidências e diretorias da Caixa Econômica Federal com o “centrão”, mas na porteira para dentro as cercas estão abertas para cada um agir como queira em cada votação.

Numa semana difícil para o governo, com várias votações importantes na Câmara, Arthur Lira se antecipou à rasteira que levou na votação sobre a autorização para o Supremo Tribunal Federal prosseguir com o processo contra o deputado Chiquinho Brazão (eleito pelo União-RJ), que ficou sem partido após a acusação da Polícia Federal de ter conspirado para a execução da vereadora Marielle Franco (PSol-RJ) e do motorista Anderson Gomes. Lira operou para o Plenário da Câmara não ter quorum mínimo (157 votos), pela ausência de votação mesmo pelo celular, mas o ministro de Relações Institucionais (responsável pela Articulação Política no Congresso), Alexandre Padilha, atuou para atrair mais votos. O resultado, que contrariou Lira, foi que 277 deputados autorizaram o prosseguimento do processo.

Lira soltou os cachorros sobre Padilha, chamando-o de “incompetente” e nomeando-o “inimigo”. Mas havia um fator extra a irritar o presidente da Câmara, cujo poder tem dias contados para se reduzir, à medida que se aproxima a eleição da nova Mesa da Câmara, em fevereiro de 2025. Se Lira não eleger o sucessor, voltará à planície no planalto central, com baixo poder de fogo. Uma prova da perda de poder foi que o ministério do Desenvolvimento Agrário demitiu no começo do mês um primo do presidente da Câmara, Cesar Lira, da Superintendência do Incra em Alagoas. Embora soubesse das reações dos movimentos pró-assentamentos agrários sobre a permanência do primo, que ocupava o cargo desde o governo Bolsonaro, com quem era afinado, Lira ficou possesso por não ter sido avisado antes. Em vez de uma ”demissão a pedidos”, a saída de Wilson Cesar de Lira foi publicada no Diário Oficial da União. Para consertar a mágoa, Lira indicará o substituto. Mas as cicatrizes ficaram.

Em capa desta semana (um pouco ousada para meu gosto), a revista “Isto é” bate duro em Arthur Lira. O tema é Deus, Pátria e Família, ao abordar “Os Sabotadores”, que inclui o movimento do comício de Bolsonaro e simpatizantes do golpe de 8 de janeiro de 2023 neste domingo, na Avenida Atlântica, na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. A revista desanca o presidente da Câmara:

“Quem é Arthur Lira? Deputadozinho medíocre. Em 2022, conquistou 219.452 votos, apenas 13,26% dos votos válidos dos alagoanos. Eleito presidente da Câmara pela bancada de corruptos evangélicos e milicianos. LULA: 60,3 milhões de votos de todo o Brasil. O país não pode ser refém de Lira!”, encerra a contundente capa da revista.

 

Ø  Ainda o Brasil do Bem. Por Adhemar Bahadian

 

Meu artigo da semana passada levou alguns de meus leitores a me agraciarem com o epíteto de "ingênuo”. Não me ofende a suposta ironia. Desde os meus 18 anos de idade, quando me formei no Colégio São Jose - ainda por cima orador da turma - guardo a advertência de Sócrates, que nossa turma escolheu como lema de nossa formatura: “Sei que não sei nada“.

Tenho o maior respeito pela divergência de ideias e se há algo que me tira do prumo é o totalitarismo ideológico, onde não há espaço para a entrelinha do diálogo ou até da discrepância.

Pareceu ingênuo que eu tivesse a ousadia de buscar, nestes tempos tumultuados em que vivemos, um lado bom do Brasil e até insinuasse nossa fortuna como país e nação capaz de participarmos de forma crescente e sempre determinada na construção de um mundo melhor e mais solidário.

Certamente outros mais bem versados do que eu no estudo das relações econômicas internacionais poderão explicar de forma mais detalhada o que resumidamente exporei a seguir.

De qualquer forma, não hesitarei em recomendar os livros de Celso Furtado, Carlos Lessa, Antonio Castro, Mario Henrique Simonsen (Macroeconomia), José Fiori, Andre Lara Resende no Brasil, e Stieglitz, Acemoglu e Hobsbawm, fora do Brasil, como os primeiros nomes que me veem à mente como semeadores das percepções que descrevo nesta crônica. Logicamente, eventuais distorções do pensamento destes mestres se devem única e exclusivamente a mim próprio.

Concordo que estamos a viver uma das fases mais complexas e tumultuadas desde a Segunda Guerra Mundial e percebo a racionalidade nos que temem que apenas um conflito regional ou até mundial seria capaz de redirecionar nosso futuro neste planeta. Ou para acabar de vez com ele.

As guerras, principalmente as que envolvem Rússia e Ucrânia, Israel e Hamas na faixa de Gaza, além da possível entrada do Irã e dos Estados Unidos no conflito, são de molde a aterrorizar todos os homens sensatos deste mundo, com a possível exceção de autocratas psicopatas fantasiados de salva-pátrias ou de semideuses. Merece também, menção honrosa a cupidez do estamento industrial-militar sobre o qual nos alertou faz tempo o presidente Eisenhower.

A esta turbulência militar se vem juntar a crise econômica que, desde 2008, não nos deixou e está na raiz do maior nó ideológico com que nos vemos enredados sobretudo no Ocidente.

Compartilho igualmente do pensamento que atribui a causa desta crise econômica ao esgotamento do modelo neoliberal trazido por economistas como Mies e aprofundado pela ideologia de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, acolitada pela globalização e seus defensores e vigários, em especial Milton Friedman e o Consenso de Washington.

Hoje em 2024, tal como vejo o panorama desta ponte à beira de ser desmoronada por um cargueiro descontrolado, a situação política internacional vive uma estranha alegoria como se estivéssemos à espera de Godot, embora saibamos que Godot não passa de uma mistificação ou um simples devaneio psicótico.

O neoliberalismo - está mais do que provado - provocou distorções graves no sistema econômico internacional, com o aumento inquestionável dos ricos e o empobrecimento invulgar dos pobres. Não é opinião é estatística.

As propostas de semideuses como Trump são particularmente ilustrativas. Trump pretende convencer o eleitorado mundial que as dificuldades que estamos a enfrentar decorrem do “sistema”, entendendo-se por sistema a governança mundial que deve ser combatida para voltamos a uma América grandiosa como sempre e ordenadora de uma política externa hegemônica "benéfica aos cidadãos do mundo".

Ocorre que Trump, astutamente, nos esconde seu mais do que óbvio compromisso com a autocracia de um lado e com o neoliberalismo sem peias de outro.

Financiado pelos maiores conglomerados financeiros, Trump tem proposta de governo absolutamente protecionista e estimuladora de um ultranacionalismo de forte viés autoritário. Como se não bastasse, Trump se insurge contra direitos das mulheres sobre seu próprio corpo e destino, opõe-se aos casamentos não heterossexuais e retrocede a uma América infinitamente mais primitiva e belicosa deste quase um quarto de século.

Lamentavelmente, Trump representa uma força ideológica seguida no Brasil pelos que não querem que as grandes empresas sejam disciplinadas por leis e regulamentos a impedir o abuso do poder econômico parasita da sociedade sempre a solicitar privilégios e benesses descabidas.

O Brasil tem Constituição Federal que delineia nosso pacto social. Que determina os procedimentos entre o capital, o trabalho e os poderes da Nação. Hoje, parece haver um esforço patético para fazer dela um instrumento de cisão da sociedade brasileira, quando na realidade ela é fruto da dor e da experiência surgidas de quase trinta anos de obscurantismo cívico.

Finalmente, o Brasil é um dos únicos, senão o único, país do mundo com recursos humanos, materiais e naturais para se associar a um movimento saneador de nosso destino neste planeta.

As propostas de reversão de nosso destino como grande nação deste século são infelizmente tingidas de sangue lesa-pátria ou da mais deslavada corrupção. Ou dos dois crimes ao mesmo tempo.

 

Fonte: Por Gilberto Menezes Côrtes, no Jornal do Brasil


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