MEMÓRIAS DE 64: Jogou pôquer e foi explodir
o Riocentro - Wilson Machado, o fantasma vivo da ditadura
Na noite do dia 29 de
abril de 1981, a estudante Luciana (nome fictício), então com 28 anos, recebeu
alguns amigos em casa no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. O
grupo costumava se reunir às quartas-feiras para jogar pôquer. O assunto
daquela noite era o grande evento que ocorreria no dia seguinte no Centro de
Convenções Riocentro, em comemoração ao Dia do Trabalhador. Luciana estava
animada com a possibilidade de ver muitos dos artistas que admirava e comentou
que havia combinado de ir ao show com um grupo de amigas. O que ela não sabia
era que ao seu lado estava um dos militares que levariam uma bomba até o local:
o então capitão Wilson Luiz Chaves Machado.
Hoje general
reformado, Wilson Machado dirigia o carro que transportava o explosivo por
volta das 21h no estacionamento do Riocentro, em 30 de abril. Ele ficou
gravemente ferido após a explosão. O sargento Guilherme Pereira do Rosário, que
o acompanhava, morreu. O atentado fracassado fazia parte do plano de militares
da extrema direita insatisfeitos com o processo de abertura do regime militar.
O objetivo do “Grupo Secreto” era o de incriminar movimentos contrários à
ditadura para justificar um recrudescimento da repressão.
Passados quase 43
anos, Wilson Machado é a única testemunha militar viva do atentado que marcou o
período. Ele nunca foi punido pelo envolvimento no crime, que sempre negou.
“Ele foi na minha
casa, escutou eu falar um dia antes que eu ia para o show e assim mesmo levou
uma bomba para me matar. Como é que pode uma pessoa que estava tramando isso
joga pôquer no dia anterior, como se fosse uma coisa normal? Pra mim ele é uma
pessoa muito fria. Meu Deus, como é que existem pessoas assim?”, questiona
Luciana com indignação, em entrevista à Agência Pública, na tarde do dia 5
de março.
É a primeira vez que
Luciana, 71, conta a história publicamente. Ela pediu anonimato porque o
restaurante da família, frequentado por alguns dos envolvidos no atentado, foi
“duramente” atacado após ter sido associado ao regime militar. “Pessoas
passavam na porta e cuspiam, picharam as paredes, foi horrível”, lamenta. Ela
diz temer novas retaliações, “diante do momento político de polarização do
país”.
Para Luciana, Wilson
Machado era “Patinho”, como ele próprio se apresentou, no início do verão de
1981, na praia da Barra. Lá, um grupo de amigos mantinha uma rede de vôlei, em
frente à famosa torre redonda projetada por Oscar Niemeyer, na avenida das Américas.
“Ele jogava bem vôlei e começou a se entrosar com o pessoal. Depois, passou a
aparecer para tomar chope em um bar que funcionava onde hoje é o Chico’s, na
rua General Canabarro, onde morávamos.”
Segundo Luciana,
naquele 29 de abril, Machado passava pela rua General Canabarro, quando
encontrou com um amigo, já falecido, que frequentava a jogatina semanal. De
acordo com ela, foi esse amigo que “inocentemente” o convidou para o jogo. “Não
sabíamos e nem desconfiávamos que o Patinho era do Exército. Ele era cabeludo,
barba por fazer, não tinha nenhuma ‘pinta’ de militar”, recorda. “Eu fiquei
muito irritada e chocada quando vi [pela TV] que era ele.”
Luciana também
reconheceu nas imagens o carro do capitão, um Puma marrom metálico, em que a
bomba explodiu. “Ele andava com esse Puma, chamava a atenção. Era um carro
lindo, ninguém tinha carro conversível naquela época. A gente se perguntava:
‘Será que ele ganha dinheiro como?’ e pensávamos: ‘esse cara deve ser muito
rico’, mas ninguém sabia o que ele fazia e ninguém perguntava também.”
Ela suspeita que
Wilson Machado, à época agente do Destacamento de Operações de Informações do
1º Exército (DOI-I) – órgão de inteligência e repressão da ditadura –, se
aproximou para monitorar seu grupo de amigos, que, apesar de não participar
diretamente de nenhum movimento político, se posicionava contra o regime
militar. “Naquela época, tinha olheiro em todo lugar”, recorda. Ela disse que
não sabia nada da vida pessoal de Patinho, nem mesmo seu nome.
A Pública apurou
que eles eram praticamente vizinhos. Machado vivia à época, com a esposa e a
filha de 7 meses, em um apartamento na rua Visconde de Itamaraty, também na
Tijuca, a cerca de dez minutos de distância a pé da casa de Luciana. No mesmo
bairro funcionava o DOI-I, de onde o militar teria partido para executar a
missão de explodir uma bomba no complexo Riocentro.
·
Mais de 40 anos de impunidade e R$ 29 mil
de salário
Dr. Marcos, codinome
de Wilson Machado no Exército, foi nomeado agente
do DOI-I em agosto de 1980, oito meses antes do atentado do Riocentro. Ele
nunca foi punido pelo envolvimento no episódio; pelo contrário, progrediu na
carreira militar e recebeu honrarias, como a Medalha de Pacificador, concedida
a ele pelo Exército em julho de 2001.
Após a explosão, o
oficial passou pelo Colégio Militar de Brasília e pela Diretoria de
Movimentação do Exército. Em 2002, ele entrou para a reserva e
na sequência foi contratado no Instituto Militar de Engenharia para “exercer
a tarefa de análise funcional dos cargos de engenheiro militar”, em que ficou
até 2012, quando
se aposentou. Hoje, Wilson Machado recebe salário bruto de R$ 29,6 mil,
conforme informações do Portal da Transparência do governo federal.
Os jornalistas Chico
Otávio e Cristina Tardáguila revelam no livro Você foi
enganado: mentiras, exageros e contradições dos últimos presidentes do
Brasil que Machado sonhava seguir carreira no Pelotão de
Motociclistas, responsável pela escolta dos presidentes. Um acidente de moto,
em 1979, no entanto, prejudicou o movimento de uma de suas mãos, o que o
obrigou a mudar de plano.
Com a possibilidade de
ir para a reserva após a explosão no Riocentro, Wilson Machado, à época com 33
anos, chegou a confidenciar a amigos que, caso fosse obrigado a deixar a
caserna, faria faculdade de educação física. Queria dar aulas.
A Pública conversou
com um militar que se formou com Machado na Academia Militar das Agulhas
Negras, em 1972. Ele lembra que o ex-colega, torcedor do Fluminense, sempre
gostou de praticar esporte, principalmente vôlei. “Ele era um excelente companheiro,
um cara alegre e brincalhão. Acho difícil você encontrar um colega que vá falar
mal dele”, afirmou o coronel da reserva, que pediu para ter o nome reservado.
Mesmo depois de tantos
anos do atentado do Riocentro, o silêncio sobre o caso ainda paira no Exército.
No Clube Militar que Wilson Machado frequentou por muitos anos e entre seus
ex-colegas, o assunto é tabu. “Quando o Wilson se viu acuado após o caso do
Riocentro, ele falou: ‘O que eu posso fazer é me preservar’”, contou o coronel,
que diz ter perdido contato com o colega de turma.
Atualmente, Machado
vive em um prédio imponente na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Aos 76 anos,
o general reformado mantém uma rotina discreta, ao menos à vista de vizinhos e
funcionários do condomínio onde mora, que, abordados pela reportagem, disseram
desconhecer a história pregressa do militar.
Em 2017, ele registrou
em seu endereço uma microempresa para prestar serviços administrativos. A
atividade do negócio, conforme informação da Receita Federal, é “preparação de
documentos e serviços especializados de apoio administrativo não especificados
anteriormente”.
Procuramos Wilson
Machado pessoalmente em sua residência, mas ele se recusou a nos receber.
Também se recusou a responder a uma série de perguntas, por escrito, deixada em
seu condomínio. Após diversas tentativas frustradas de contato, por mensagem de
texto, o oficial escreveu apenas “não” ao pedido de entrevista.
Machado nunca falou
com a imprensa, apesar da insistência de jornalistas. Um documento do Departamento de Polícia Federal de 1986, que está no Arquivo
Nacional, orientava militares, entre eles Machado, a ficar em silêncio diante
da procura por entrevistas desde aquela época. “Nestes casos, o CIE [Centro de
Inteligência do Exército] orienta que os elementos contatados nada declarem,
principalmente, que não se preocupem em defender-se de possíveis acusações
pessoais de que esses repórteres têm se valido para provocar os contatados. A
única alegação deve ser que as atividades por eles desempenhadas sempre o foram
por ordens superiores”, orienta.
·
Um coadjuvante silencioso
Desde 1981, Wilson
Machado prestou cinco depoimentos sobre o caso: três à Justiça Militar e dois
ao Ministério Público Federal (MPF). Em setembro de 2014, o oficial foi
convocado pela Comissão Nacional da Verdade, mas não se manifestou. “Enquanto o Estado brasileiro não exigir respostas às Forças
Armadas, esse silêncio vai ser eterno. As condições econômica, social e da
família dele dependem do silêncio”, destacou Nadine Borges, que presidiu a
Comissão da Verdade do Rio.
Embora indiciado por
duas vezes, Machado nunca foi punido. Em 2000, o Superior Tribunal Militar
(STM), em decisão confirmada pelo Supremo, entendeu que ele estava coberto pela
Lei da Anistia. Quatorze anos depois, o caso foi reaberto pelo Ministério Público
Federal (MPF), que denunciou seis
militares envolvidos no ataque, por tentativa de homicídio, associação
criminosa e transporte de explosivos, mas a ação acabou arquivada pelo Tribunal
Regional Federal (TRF) da 2ª Região.
No último processo a
que respondeu, ele foi defendido pelo advogado Rodrigo Roca, conhecido por sua
atuação na defesa de militares do Exército e também por ter defendido pessoas
do entorno do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), como o senador Flávio Bolsonaro
(PL-RJ) e o ex-ministro da Justiça Anderson Torres.
Wilson Machado sempre
sustentou a narrativa do primeiro inquérito policial militar, de 1981 – à época
manipulado para inocentar os militares –, de que ele e o sargento Rosário
estavam no local para uma missão de cobertura do evento, com objetivo de monitorar
os artistas e os participantes. A versão foi desmentida pelo MPF, por meio de
relatos de pessoas que testemunharam ou participaram do atentado.
“Eu nunca carreguei
nenhum explosivo, não sei mexer com nenhum explosivo, nunca mexi na minha vida.
Não estou encobrindo ninguém, e ninguém vai dizer que deu essa ordem pra mim”,
afirmou Machado durante o longo depoimento prestado ao MPF, em dezembro de 2014.
Em conversa com a Pública, o procurador que coordenou a investigação,
Antonio do Passo Cabral, contou que ele “foi ficando muito irritado” durante a
inquirição.
Trechos em vídeo do
relato do militar foram divulgados pelo Fantástico em
fevereiro de 2014. De frente para o procurador, Wilson Machado também negou a
existência da bomba que explodiu em seu veículo. “Para mim, não estourou bomba,
não, amigo. Se você ver aí na declaração, não sei se está aí, quando eu fui
interrogado, eu achava que tinha estourado o motor do carro”, afirmou.
A explosão, além de
ter matado o sargento Guilherme Pereira do Rosário, causou graves ferimentos a
ele. O então capitão foi socorrido pela neta de Tancredo Neves, Andrea Neves,
que estava no evento com o namorado Sérgio Vale. Mais de 20 mil pessoas assistiam
ao show que reuniu grandes artistas da música popular brasileira, promovido
pelo Centro Brasil Democrático (Cebrade), ligado ao Partido Comunista
Brasileiro (PCB).
·
A grande farsa do Riocentro
Segundo a denúncia do
MPF, o planejamento da ação criminosa incluía a fabricação de provas para
atribuir a grupos armados, que resistiam à ditadura, a autoria do atentado. A
ação consistiria em explodir a casa de força do Riocentro para provocar um
apagão e gerar pânico nos presentes. Além disso, três bombas seriam colocadas
dentro do pavilhão, provavelmente no palco, para completar o clima de pânico e
comoção. A ideia era não apenas detonar próximo aos artistas, mas que a
explosão se desse no foco de atenção dos espectadores. Os militares também
prenderiam inocentes, e o entorno do Riocentro teria placas e muros pichados
com palavras de ordem e siglas de movimentos de resistência e militância contra
o regime militar. Tudo praticado por agentes do Estado.
“Pretendia-se forjar
um ‘ato terrorista subversivo da esquerda armada’, atribuindo o atentado a
bomba falsamente a uma organização da militância contra o regime de exceção, e
assim justificar um novo endurecimento da ditadura militar brasileira diante da
‘ameaça comunista’”, concluiu o MPF.
A investigação
concluiu ainda que o atentado ao Riocentro começou a ser planejado um ano
antes, no começo de 1980, pelo “Grupo Secreto”, do qual faziam parte civis e
militares do DOI-Codi e do Serviço Nacional de Informações (SNI). “Com efeito,
o caso do Riocentro enquadra-se num contexto muito maior de atuação da
organização criminosa em dezenas de atentados no Brasil entre os anos de 1979 e
1981”, destacou o MPF.
Para a execução do
atentado, segundo o órgão, a organização criminosa tinha um núcleo de
planejamento e um núcleo operacional, do qual Wilson Machado fazia parte, de
acordo com os procuradores.
A partir dos
depoimentos e provas documentais levantadas, é possível afirmar que Machado era
“peixe pequeno”, diante do aparato do grupo de extrema direita que tentava
impedir o fim da ditadura militar.
O já falecido coronel
de artilharia Alberto Carlos Fortunato, um dos líderes do “Grupo Secreto”,
comentou sobre a participação de Machado no caso Riocentro em depoimento a José
Argolo, Kátia Ribeiro e Luiz Alberto Fortunato, autores do livro Direita
explosiva no Brasil:
“Quanto ao capitão,
creio que ele atuou como coadjuvante na operação (que, bem-sucedida,
interromperia o espetáculo, criaria pânico na assistência e desestimularia
outras realizações do gênero), limitando-se a transportar o colega. Esse
comportamento, embora não excludente de culpa, é o mais discutido e, ao que
suponho, pode ter sido o motivo pelo qual ele não teve sua carreira
interrompida e exerceu atividades como instrutor em unidades do Exército no Rio
de Janeiro e aqui em Brasília”.
Fonte: Por Alice
Maciel, da Agência Pública

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