sábado, 20 de abril de 2024

Labirinto da extrema direita

A ascensão da extrema direita no plano internacional desafia a intelligentsia progressista. Entre as variáveis apontadas acham-se a globalização que divide a sociedade em vencedores e perdedores, o impacto com a profusão de inovações tecnológicas, as desigualdades que rompem o pacto entre as classes sociais, o derramamento de predisposições recalcadas no politicamente correto, os efeitos imigratórios, a aporofobia e o ressentimento.

Um desconserto difuso e muito corrosivo percorre o tempo presente. “Até 2014, não havia partidos da direita radical na Austrália, no Canadá, na Irlanda, em Luxemburgo, na Nova Zelândia, em Portugal ou na Espanha”, sublinha o cientista político da Universidade de Nova York, Adam Przeworski, em Crises da democracia. Para um toque latino-americano, é possível reatualizar a lista regressiva com o Brasil (2018) e a Argentina (2023).

Em muitos países, a tônica em eleições recentes recai na imigração. Conforme o Instituto Gallup, em 2012 e 2014, na opinião de 25% da população na Austrália, 40% nos Estados Unidos e 69% no Reino Unido a imigração deveria ser reduzida. Em certos contextos, a discriminação incide mais na definição do voto do que as pautas econômicas. Mesmo por que a percepção da economia é afetada pelas lealdades partidárias.

Após a eleição de Donald Trump, eleitores democratas reconsideraram para baixo a avaliação da própria condição de vida, enquanto eleitores republicanos ajuizaram a sua para cima. Não é tarefa fácil selecionar os vetores preponderantes na escolha do voto que fortalece o novo fascismo. Politólogos, sociólogos, antropólogos, filósofos e psicólogos são testemunhas.

A aflição econômica pesa, embora acompanhada por outras aflições. Com uma renda familiar mais elevada e menos instrução, os trumpistas também estão propensos ao desemprego e expostos a uma concorrência de imigrados e no comércio. A insegurança influencia a orientação de seu voto diante do perigo figurado no imaginário, antes que no real. Por outro lado, é indiscutível que viver em comunidades racialmente isoladas, em situações piores de saúde, com mobilidade social precária e uma dependência contínua de benefícios da previdência são prenúncios de um pessimismo sobre o futuro próximo, por conseguinte, de uma religiosa e fiel identificação ideológica com a ultradireita.

Já indivíduos em funções com índices de desocupação rotativa têm maior probabilidade de votar com base em fatores econômicos. Estes são interpelados pelos programas dos partidos de esquerda. No Brasil, o contingente do eleitorado que possui rendimentos de um a dois salários são os mais vulneráveis às oscilações do mercado de trabalho. Sensível às propostas para uma recuperação, ali, concentrou-se a votação para evitar o avanço do neofascismo e trazer de volta a esperança, no país. O segmento garantiu a vitória para o terceiro mandato, sob liderança de Luiz Inácio Lula da Silva.

Os partidos da direita radical tendem a apelar para o tema da transmigração, amiúde, sem vincular o bode expiatório às propostas de mudanças econômicas e combate à corrupção política. A classe e a ideologia racista não são as únicas categorias da consciência. A “liberdade de expressão” é o ardil utilizado para propagar o terraplanismo impunemente. A realidade paralela ataca e deslegitima o conhecimento, para abduzir o séquito de crédulos com fábulas culturais que hostilizam a diferença. Teses diversionistas simplificam o que é complexo e conduzem as massas a uma zona de conforto.

Adam Przeworski chama a atenção para os resultados de um interessante levantamento realizado na Europa, em 2010, para avaliar a percepção das pessoas sobre tensão social em quatro dimensões: (a) pobres e ricos; (b) gerentes e operários; (c) velhos e jovens; (d) diferentes grupos raciais e étnicos. Esperava-se que umas culpassem os ricos, outras a administração ou a renda desproporcional dos mais velhos, além da imigração. Mas não.

As pessoas com dificuldades maiores de subsistência tendem a localizar a tensão em todas as esferas. Aquelas que percebem o tensionamento alto numa dimensão, visualiza-o nos demais enquadramentos. “Elas culpam todo mundo (leia-se: o sistema) porque não sabem a quem culpar”, reitera o membro da Academia Americana de Artes e Ciências.

As versões conspiracionistas para unificar com bizarrices os revoltosos afrontam os fóruns capazes de distinguir a verdade da mentira, o sentimento do argumento. A recusa epistemológica da verdade nas discussões públicas provoca o colapso da confiança em instituições tradicionais (universidades) e pressiona a falsa equiparação de narrativas não equivalentes. “Todas as sociedades bem-sucedidas dependem de um grau alto de honestidade para preservar a ordem, defender a lei, punir poderosos e gerar prosperidade”, enfatiza o jornalista britânico Matthew D’Ancona, autor de Pós-verdade.

A relativização da verdade quebra o parâmetro de convivialidade social e política, impulsiona uma fuga aos nichos protegidos do contraditório. Lembra a assessora que, desmentida sobre a fictícia presença de uma multidão na posse do demagogo da America First, na Casa Branca, disparou um comentário que entrou para o folclore da modernidade: “Nós preferimos os fatos alternativos”. Em Washington e em Brasília, ex-governantes foram os campeões absolutos de fake news. A má-fé, a impostura e a grosseria organizaram o protocolo. A ignorância ganhou uma aura de autenticidade. A violência recebeu o selo de qualidade da distopia. A dúvida, de Montaigne, cedeu o pódio moderno à certeza teocrática e medieval de Silas Malafaia, inimigo jurado do Estado de direito democrático.

A xenofobia, o racismo, a intolerância e o rosário inteiro de preconceitos agem quais combustíveis para energizar a desrazão. Nos EUA, os imigrantes alemães eram “Krauts”, os italianos “Dagos”, os japoneses “Japs”, os poloneses “Polacks”. Temporariamente as pechas foram contidas pela etiqueta social através da “ação civilizatória da hipocrisia”. Quando foi aberto o esgoto, jorraram estigmas linguísticos aos que buscavam oportunidades no novo mundo. O muro que o imperialismo queria na fronteira do México, a multipolaridade põe abaixo com o pluralismo e uma agenda contra a fome.

O movimento neofascista, neoliberal e conservador nada tem de marginal ou antissistêmico. Trata-se de uma articulação com ressonância no interior do sistema, anota o juiz Rubens Casara em artigo para O ódio como política, livro organizado por Ester Solano Gallego. Em suma, a crítica traduz os sintomas da “direita jurídica” remanescente da ditadura civil-militar: (a) o convencionalismo pela adesão rígida aos valores da classe média carola; (b) a atitude agressiva que recende a dialética do colonizador e do colonizado, da dominação e da subordinação; (c) o pensamento estereotipado para assingelar as premissas de que parte; (d) a confusão espúria entre o acusador e o juiz. Deu prova a operação Lava Jato para contemplar o projeto lesa-pátria que se especializou na difusão do lawfare. “O poder sou Eu” que ecoa nos tribunais se retroalimenta da excessiva judicialização da política.

De acordo com o economista J. K. Galbraith, o Estado de bem-estar social é o mais significativo acontecimento dos tempos modernos. O extremismo brucutu propugna um retrocesso histórico ao propor o retorno ao “estado de natureza” hobbesiano, em que a acumulação capitalista impõe a guerra de todos contra todos e, o darwinismo socioeconômico, troca ideais de solidariedade pela competição: Eu = Eu – Tu. Na concepção neoliberal, não há um lugar para as políticas igualitaristas e emancipadoras. A solução para iniquidades na sociedade é o mutirão em favelas e o voluntariado em praças, não o engajamento das autoridades e da coletividade. A participação social é um esporte.

Os meios de comunicação, a internet, as redes digitais e as fake news robotizadas são as fontes da manipulação, na ausência de uma legislação local e global sobre o assunto. Atrás da tal liberdade defendida pelo populismo direitista, para ludibriar, encontra-se o inadmissível negacionismo da dignidade humana, junto ao tratamento dos recursos naturais como mercadorias extrativas para potencializar o lucro imediatista. 1% dos habitantes de Gaia se beneficia do modelo predatório, insustentável social e ambientalmente. A associação com a necropolítica é evidente. Compreender, etimologicamente cum / com e prehendere / pegar, não implica fazer do povo objeto para enganar, moldar, manobrar. O outro é sempre uma alteridade necessária à constituição de nossa identidade, construída em um desdobramento: Eu = Tu + Nós, para sair do labirinto da extrema direita. Xô X!

 

Ø  Um cavalo de pau desnorteante. Por Eugenio Bucci

 

O magnetismo dos filmes de James Bond desapareceu na fuligem das estrelas. As pernadas do 007 descansam no passado. O tipo criado por Ian Fleming, que pedia seu dry martini a bordo de um smoking da cor da noite ou de um summer de alta alvura, perdeu o elã.

Não que não tenha sido bom. Era divertido o modo como ele se apresentava para a dama fatal: “Bond, James Bond”. Em dois minutos, os dois se beijariam e em seguida se perderiam entre um salto de paraquedas e um tiro de pistola com silenciador. Só depois de incontáveis piruetas por terra, mar e ar é que o casal teria direito a um happy-end. Caliente.

Estávamos no período da Guerra Fria e o espião que tinha licença para matar nos presenteava com amores escaldantes. O espectador médio daquela época torcia pela manutenção do establishment e vibrava quando James Bond e a namorada se atracavam entre lençóis depois de salvar a humanidade, o planeta, o capitalismo e a dinastia Windsor da destruição completa.

Os vilões, coitados, se despedaçavam e ninguém se compadecia de sua sina. Superempreendedores biliardários sem princípios, os bandidões mobilizavam ciência, força bruta e recursos infindos para sujeitar o mundo inteiro aos seus caprichos – e, no fim, morriam espetacularmente numa explosão atômica sacrossanta. O satânico Dr. No, o não menos satânico Auric Goldfinger e tantos outros saíam perdendo. Subornavam, chantageavam, extorquiam e perdiam. Recrutavam exércitos particulares, manietavam governos e perdiam. Transformavam seu dinheiro em poder e seu poder em opressão – e perdiam de novo. As plateias exultavam. Tomavam o partido do mocinho.

Hoje, as diversões públicas são outras. As massas apressadas mudaram de assunto, deixaram o cinema para lá, preferem se entorpecer com substâncias sintéticas para melhor chacoalhar ao ritmo de pancadões repetitivos (seu mantra não tem palavras, somente estrondos compassados) e votam em autocratas pirados. Quanto à sétima arte, esta sobrevive na condição de excentricidade de intelectuais envelhecidos.

No entanto, a despeito do desprestígio dos velhos blockbusters de 007, algo daquele velho script voltou a marcar presença entre nós: o modelo dos vilões que faziam as vezes de antagonistas do espião saiu das telas e agora comparece à chamada “vida real”. Desta vez, com sucesso. Eles vencem e colhem todos os louros de ouro. O espectador médio, que é o eleitor médio, mudou de lado, num cavalo de pau desnorteante.

As plateias de hoje, carregadas de ressentimento porque a democracia não lhes entregou as delícias prometidas, apedrejam o que julgam ser a política oficial. Querem ver o sistema incendiar. Aplaudem de joelhos os magnatas que sabotam a ordem pública. A seus olhos, ganância, prepotência e vaidade são virtudes cívicas. A diversão sádica é o critério da legitimidade. A política foi engolida pelo entretenimento sombrio.

Você quer um sintoma? Elon Musk. Muito se tem escrito nos jornais para descrever o psiquismo do empresário saiu da África do Sul para fazer a América. Seu compromisso é com o show performático, não com a coerência. Alguns dizem – com acerto – que ele faz negócios na China e nunca deu um pio sobre a ditadura que existe lá. Na outra ponta, quando se trata do Brasil, o mesmo rapaz alardeia que a nossa democracia é uma ditadura (consta que tem planos de fazer uns negócios esquisitos por aqui). Age assim e leva a melhor. É o influencer dos influencers.

Elon Musk parece um personagem fugido daqueles filmes de antigamente, mas extrapola. Lembra de longe o fictício Gustav Graves, de 007, um novo dia para morrer, que usava o negócio de satélites para assustar países resistentes a suas pretensões maníacas. Tem o phisique du role de um antagonista de Sean Connery. As suas ações reais, contudo, sobrepujam a imaginação de Ian Fleming. Dono de um exibicionismo extremista, quer ter supremacia sobre o mundo inteiro e quer as glórias do espetáculo.

Não satisfeito, quer ficar high. Tem prazeres narcísicos em ter poderes narcísicos e, em seu hedonismo consumista, põe a contracultura a serviço do capital. O Wall Street Journal noticiou recentemente que executivos e conselheiros da Space X e da Tesla, duas de suas companhias, andam preocupados com a quantidade de drogas consumidas pelo chefe (LSD, cocaína, ecstasy, cetamina e cogumelos psicodélicos, entre outras). Foi com esse doping corporativo, que o sujeito estreou na política brasileira.

Politiqueiros de segunda, desses que não sabem a diferença entre ficção e realidade (ou entre propaganda e informação, ou entre mentira e verdade), dedicam a Elon Musk uma sabujice despudorada. Afirmam aos brados que o pobrezinho sofre perseguições indizíveis de temíveis funcionários públicos. Veem nele o símbolo universal da liberdade.

Mas, gente do céu, liberdade de quê? De abusar de seu incomensurável poderio econômico para interferir na institucionalidade de um Estado que não é o dele? De ser infantil e truculento de um só golpe (de Estado)? Haja farsa. James Bond, que era um lacaio do império britânico, tinha mais integridade.

 

Fonte: Por Luiz Marques, em A Terra é Redonda

 

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