Inteligência Artificial ajuda a decifrar o
passado
Documentários e filmes
ao estilo Indiana Jones ajudaram a popularizar a ideia de que as ferramentas do
arqueólogo resumem-se a pincel, espátula e peneira. De fato, esses são
instrumentos essenciais a um campo que se dedica a tirar o pó do passado,
lançando luz sobre culturas antigas. Porém, há muitos anos os profissionais da
área também recorrem à tecnologia em seus estudos e, recentemente, a
inteligência artificial (IA) tornou-se uma aliada, enxergando o que, até agora,
nem mesmo as máquinas poderosas conseguiam ver.
No mês passado, por
exemplo, quatro equipes de cientistas, incluindo uma de brasileiros, foram
premiadas no Grande Desafio Vesúvio, em Los Angeles, nos Estados Unidos, por
começarem a decodificar um texto anterior a 79 d.C., até então ilegível. A
história do documento é fascinante: em 1750, o trabalhador de uma fazenda na
região italiana da Campânia cavava um poço, quando se deparou com um pavimento
de mármore. Tratava-se da Vila dos Papiros, uma biblioteca greco-romana com
cerca de 1,8 mil pergaminhos, dos quais 800 foram preservados.
O problema é que esse
tesouro da antiguidade tinha a aparência de tocos queimados — afinal, os
documentos foram carbonizados depois da erupção vulcânica que transformou
Herculano e Pompeia em um mar de lava. Até que, em 2015, uma equipe do
cientista da computação Brent Seales, da Universidade de Kentucky, nos Estados
Unidos, realizou um feito inédito, usando um tomógrafo de raios-x. A máquina
simplesmente desenrolou um pergaminho, também queimado, que se revelou ser uma
cópia do livro bíblico Levítico.
• Acelerador
O avanço de Seales
abriu caminho para a recuperação dos textos da Vila dos Papiros e deu origem ao
Grande Desafio Vesúvio, idealizado pelo cientista da computação. Foram feitas
tomografias computadorizadas de quatro rolos carbonizados, no acelerador de partículas
Diamond Light Source, na Inglaterra.
"Essa é a
primeira chance de colocarmos as mãos em uma biblioteca da Antiguidade",
comemora Odemir Bruno, professor do Departamento de Física e Ciência dos
Materiais da Universidade de São Paulo (USP). Ele compôs uma das equipes
premiadas, integrada também por Elian Rafael Dal Prá e Leonardo Scabini, todos
do Grupo de Computação Científica do Instituto de Física de São Carlos, da USP
(IFSC/USP).
O desafio consistia na
leitura de quatro trechos de um pergaminho, com mínimo de 140 caracteres. As
equipes ultrapassaram o mínimo e decifraram 5% do segmento — para 2024, o
desafio é chegar a 90%. O texto pertence à doutrina filosófica do epicurismo,
que pregava, entre outras coisas, a busca pelo prazer moderado.
"Há (no
pergaminho) uma discussão clara sobre o prazer, particularmente sobre o fato de
a disponibilidade de bens, como os alimentos, não afetar o prazer que eles
proporcionam", descreve Federica Nicolardi, professora assistente de
papirologia na Universidade de Estudos de Napólis Federico II, estudiosa dos
rolos de Herculano. "É uma discussão interessante que enfatiza que uma
diferença em quantidade não implica necessariamente uma diferença em
qualidade/valor/agradabilidade."
• Fontes
Segundo Nicolardi, a
característica mais impressionante da Biblioteca de Herculano é que os textos
preservados são desconhecidos de outras fontes. "Tenho certeza de que em
breve poderemos ler mais, entender o tema da obra, identificar o escriba e datar
os documentos." Odemir Bruno, da USP, reconhece que há muito trabalho pela
frente, mas está empolgado com o que vem por aí. "Esse primeiro prêmio foi
um divisor de águas, agora é aprimorar. Sabemos que serão necessárias décadas.
Mas o que conseguimos já foi muito importante: lemos um papiro
carbonizado", comemora.
Os papiros de
Herculano não são, porém, as únicas peças antigas estudadas com inteligência
artificial. No Brasil, por exemplo, a IA tem sido usada para processar grandes
volumes de dados sobre sítios arqueológicos coletados por sensoriamento remoto
na Amazônia (leia entrevista). Na Alemanha, recentemente pesquisadores
desenvolveram um novo software capaz de decifrar textos em tábuas cuneiformes,
relíquias babilônicas que, com os hieróglifos egípcios, são as mais antigas
formas de escrita até hoje encontradas. O programa de IA foi descrito e
premiado na Conferência Internacional de Visão Computacional, do Instituto de
Engenheiros Elétricos e Eletrônicos, em Paris.
Em vez de fotos, o
sistema, desenvolvido por equipes de três universidades alemãs lideradas pela
Universidade Martin Luther, em Halle-Wittenberg (MLU), usa modelos
tridimensionais das tábuas de cerâmica. Segundo os pesquisadores, isso permite
pesquisar, com muito mais confiança, o conteúdo de diversas peças, e
compará-las.
No trabalho premiado,
os cientistas utilizaram modelos 3D de quase 2 mil tabuinhas cuneiformes, sendo
que algumas tinham 5 mil anos. Segundo Hubert Mara, professor da MLU e um dos
envolvidos no projeto, os textos são bastante heterogêneos: "Tudo pode ser
encontrado neles: de listas de compras a decisões judiciais". Por isso,
ele acredita que, com o novo software, uma nova área de pesquisa se revelará.
"As tábuas fornecem um vislumbre do passado da humanidade. Porém, estão
fortemente desgastadas e, por isso, difíceis de decifrar, mesmo para pessoas
treinadas."
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Entrevista com Márcia Jamille, arqueóloga
• "Há décadas a arqueologia usa
tecnologia de ponta"
Arqueóloga,
roteirista, palestrante, escritora e idealizadora do premiado canal Arqueologia
pelo Mundo (https://www.youtube.com/ArqueologiapeloMundo), Márcia Jamille é uma
entusiasta da tecnologia para a divulgação científica. Em entrevista ao
Correio, ela lembra que há muito tempo o campo de estudo utiliza equipamentos
como satélites e tomógrafos para desvendar o passado e está empolgada com as
possibilidades da inteligência artificial. Com 58 mil visualizações, um de seus
vídeos mais acessados descreve os papiros carbonizados pelo Vesúvio decifrados
com ajuda da IA.
LEIA A ENTREVISTA
• O uso da inteligência artificial (IA) na
arqueologia ajuda a quebrar o estereótipo de que esse é um campo que só lida
com ferramentas antigas?
Por anos, tem-se
pensado que a arqueologia é uma ciência estagnada no tempo, em que as únicas
ferramentas são a colher de pedreiro e um pincel. Mas há décadas, a arqueologia
tem feito uso de tecnologia de ponta, não só para coletar dados, mas também
para auxiliar nas interpretações de artefatos. Temos a tomografia para examinar
múmias e visualizar o interior de alguns objetos, fotografias de satélites para
ajudar não apenas na identificação de sítios arqueológicos, mas também daqueles
destruídos por saqueadores, robôs já foram utilizados para explorar o interior
de pequenas câmaras em pirâmides... Assim, a IA acaba sendo apenas mais uma
"ferramenta tecnológica" entrando nessa lista.
• Além da leitura de documentos antigos, o
que mais a IA pode fazer pela arqueologia?
Seria interessante
utilizar a IA para processar grandes volumes de dados acumulados por décadas de
investigações, e não duvido que alguém já esteja pensando nisso. No momento,
ela está sendo usada na detecção de potenciais sítios arqueológicos pelo uso de
imagens de satélites. Isso já vem ocorrendo por meio do sensoriamento remoto,
em vez de depender totalmente do "olhômetro", é possível treinar um
modelo para detectar locais potenciais para escavação (ou preservação) em áreas
isoladas, como uma floresta ou o meio do deserto. A IA também tem sido usada
para processar grandes volumes de dados capturados por algumas ferramentas. Há
anos, uma equipe japonesa trabalha na Grande Pirâmide, utilizando tecnologia de
múons (partículas subatômicas) para procurar por câmaras ocultas. Com o extenso
volume de dados processados, teve certeza de que existia um corredor até então
desconhecido perto da entrada da Grande Pirâmide. No Brasil, há potencial para
uso de IA em descobertas históricas e arqueológicas. A IA poderia ser utilizada
também para detectar padrões nos registros rupestres espalhados pelo país ou
para detectar artefatos pelo território.
• Já está em curso no país?
No momento, no Brasil,
a IA tem auxiliado nas buscas por sítios arqueológicos na floresta amazônica
por meio do Lidar (sensor remoto que captura dados), o que permitiu aos
pesquisadores a identificação de geóglifos (grandes figuras em material
geológico), valas defensivas, canais de irrigação e possíveis praças que estão
escondidas pela floresta, que foram construídas há séculos. A IA tem servido
para processar grande volume de dados, além de identificar padrões. Sem contar
que a implementação de documentação 3D de artefatos e documentos históricos, a
exemplo da fotogrametria, não deixa de usar IA.
• O que a senhora pensa sobre o argumento
de que a IA poderia substituir alguns postos de trabalho?
A inteligência
artificial é uma ferramenta, e acho que é esse tipo de raciocínio que falta
para muitas pessoas. É necessário perceber que a IA deve ser usada como uma
"ferramenta" e não como uma substituição. Muitos indícios
arqueológicos, a exemplo da tradução de textos, precisam entrar em um contexto
social e histórico, porque têm suas singularidades. Uma coisa é uma IA
completar um lado faltoso de uma cerâmica, outra completamente diferente é
pegar trechos de outros textos e colocar em um determinado documento histórico
— essa foi, inclusive, uma das preocupações durante as análises dos papiros
carbonizados do projeto Vesúvio.
Fonte: Correio
Braziliense
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