segunda-feira, 1 de abril de 2024

Institutos privados prepararam terreno para o golpe de 1964

Além da força das armas, o golpe de Estado de 1º de abril de 1964 contou com o apoio prévio de uma extensa estrutura político-ideológica que preparou o terreno para a destituição do governo de João Goulart. As duas principais estruturas utilizadas pelos golpistas foram o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes). Após o golpe, as lideranças desses institutos ocuparam cargos-chave na administração do general Castello Branco.

Esses institutos chegaram a ser alvos de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso Nacional, em 1963, um ano antes do golpe. A CPI investigou se os institutos usavam mecanismos ilegais de financiamento de campanhas políticas. Ao final, a Comissão culpou o Ibad por corrupção eleitoral e determinou seu fechamento, mas isentou o Ipes.  

A professora de relações internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Camila Feix Vidal, especialista na relação entre Estados Unidos e América Latina, destacou que os estudos do golpe de 1964 tendem a se concentrar na movimentação militar, ignorando que ela foi preparada bem antes.

“O golpe é gestado muito antes a partir de vários instrumentos, sendo o principal deles o complexo Ipes/Ibad. Esse complexo trabalhou nos âmbitos da propaganda e da política, fazendo essa relação entre política, Forças Armadas, mídia e iniciativa privada com os empresários. Primeiro, você precisar preparar o terreno, para depois, de fato, iniciar a operação militar.”

O Ibad surgiu oficialmente em 1959 “com o alegado e ambíguo propósito de defender a democracia”, enfatizou René Dreifuss em seu livro 1964: A Conquista do Estado. Ex-professor de ciência política da Universidade Federal Fluminense (UFF), Dreifuss faleceu em 2003.

O livro de Dreifuss destaca que o Ibad era formado, principalmente, por empresários nacionais e estrangeiros, com participação especial dos membros da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, de membros da Escola Superior de Guerra (ESG), ligada ao Exército, e com estreita colaboração da Agência de Inteligência dos Estados Unidos, a CIA. O Ibad ganhou notoriedade durante a presidência de Goulart, “especialmente durante a campanha eleitoral de 1962, quando serviu de conduto de fundos maciços para influenciar o processo eleitoral”, escreveu.

Já o Ipes surgiu oficialmente em novembro de 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, fundado por empresários nacionais e dos Estados Unidos. De acordo com Dreifuss, a criação do instituto foi uma “reação empresarial ao que foi percebido como a tendência esquerdista da vida política” no Brasil.  

Oficialmente, o Ipes se apresentava como organização com o objetivo de “promover a educação cultural, moral e cívica dos indivíduos” por meio de “estudos e atividades sociais” com recomendações para “contribuir para o progresso econômico, o bem-estar social e fortificar o regime democrático”.

Na prática, o Ipes produzia e distribuía, gratuitamente, extenso material de propaganda contrária ao governo Goulart, alertando para o “risco comunista” em meio a atmosfera da Guerra Fria. Entre seus principais líderes, estava o general Golbery do Couto e Silva, uma das principais figuras da ditadura brasileira. Golbery foi o fundador do Serviço Nacional de Informação (SNI), responsável pela inteligência do regime, e chefe da Casa Civil nos governos dos generais Ernesto Geisel (1974-1979) e João Figueiredo (1979-1985).

·        Criar consensos

A professora da UFSC, Camila Vidal, destacou que o papel do complexo Ipes/Ibad era o de criar um consenso na sociedade brasileira para justificar o golpe de Estado e a ditadura de 21 anos que se seguiria.

“Eles trabalharam nesse clima das ideias, de persuadir a mídia, a população e determinados políticos a defender a ideia de neoliberalismo, do fim de um incipiente Estado de bem-estar social.”

“No caso do Ipes, teve todo o arranjo midiático de criar o medo da Guerra Fria, da União Soviética e do comunismo, relacionando determinados setores da política, e mesmo da sociedade brasileira, como comunistas e como isso seria perigoso. Isso teve um papel decisivo”, completou.

De acordo com a professora Camila Vidal, o Ibad teve uma atuação mais política, financiando deputados e governadores para desestabilizar o governo Goulart e a esquerda no geral, incluindo a infiltração nos movimentos populares, sindicais e estudantis. Em outra frente de atuação, o Ipes teve mais uma função de propaganda, articulando ainda todo o bloco contrário ao governo.  

Camila destacou ainda que essas estruturas usavam a fachada de instituto técnico e acadêmico para promover a agenda dos Estados Unidos em meio a Guerra Fria. “São institutos que, ainda que se colocassem como domésticos, como técnicos e tudo mais, na realidade, são braços de uma política externa dos Estados Unidos para a atuação no Brasil”, defendeu, acrescentando que Washington “precisava manter aqui a sua influência e a sua hegemonia”.

·        Mídia

O complexo formado pelo Ipes/Ibad gozava de amplo espaço na imprensa nacional para repercutir as opiniões, estudos e ações lideradas por esses institutos, especialmente o Ipes. Segundo Dreifuss, “o Ipes conseguiu estabelecer um sincronizado assalto à opinião pública, através de seu relacionamento especial com os mais importantes jornais, rádios e televisões nacionais”.

Jornalistas influentes e diretores ou editores dos mais importantes jornais do país faziam parte do Ipes. Entre os jornais interligados ao instituto estavam: O Estado de S. Paulo, a Folha de S.Paulo, os Diários de Notícias, a TV Record, a TV Paulista, o Jornal do Brasil, o Diário de Pernambuco, o Correio do PovoO Globo, a Rádio Globo e os Diários Associados (poderosa rede de jornais, rádio e televisão de Assis Chateubriand).

Além da relação com a mídia nacional, o Ipes “publicava e financiava, editava, traduzia e distribuía livros, livretos, revistas e folhetos de produção própria, como também de fontes afins”, escreveu Dreifuss.

A professora Camila Feix Vidal destacou que as campanhas do Ipes e do Ibad tiveram um sucesso, especialmente nas classes médias, dando sustentação a ditadura.

“Essa batalha das ideias não acabou com o golpe. Ela se manteve legitimando o papel dos militares, a zona de influência estadunidense e não soviética e toda a caça aos tidos como comunistas subversivos. Isso vem dentro dessa visão de mundo, dessa doutrina de segurança nacional que foi gestada e divulgada pelos Ipes e pelo Ibad.”

·        Financiamento

A bancada financiada e apoiada pelo complexo Ipes/Ibad reunia cerca de 200 parlamentares em dezembro de 1962 (quase metade da Câmara dos Deputados), segundo a pesquisa de Dreifuss, que estima que o dinheiro usado pelo Ipes/Ibad para bancar políticos equivaleu a “uns US$ 12,5 milhões, possivelmente até US$ 20 milhões”. A ação desses deputados “mostrava-se vital no esforço de bloquear as tentativas de João Goulart quanto a implementação de reformas”, acrescentou.

O livro de Dreifuss detalha como funcionou o financiamento dessa estrutura. O dinheiro era recolhido por meio de intensa campanha de contribuições de empresários do Brasil e do exterior, principalmente dos Estados Unidos, com operações para disfarçar o recebimento desses fundos.

“Como resultado dessa campanha intensa, o Ipes recebeu o apoio de 500 membros corporativos em meados de 1963 e de um número ainda maior em 1964”, escreveu o cientista político, acrescentando que “em dois anos, já se havia recolhido US$ 4 milhões e, até 1964, essa soma [foi] muitas vezes multiplicada”.  

Foram 297 corporações estadunidenses identificadas como financiadoras do complexo Ipes/Ibad, sendo 101 empresas de outras nacionalidades. O pesquisador citou, entre as companhias, gigantes globais como: Texaco, Shell, Standart Oil of New Jersey, Bayer, General Electric, IBM, Coca-Cola, Cigarros Souza Cruz e General Motors.

A professora da UFSC, Camila Feix Vidal, destacou que o apoio financeiro foi fundamental para o sucesso da campanha de desestabilização do governo brasileiro. “De nada adianta ter um instituto como o Ipes, ou mesmo o Ibad, atuando se não tem um financiamento tão grande como o que eles tiveram para desenvolver de fato as suas ações”, comentou.

·        Controle do Estado

Com o golpe de 1º de abril de 1964, as principais lideranças do complexo Ipes/Ibad ocuparam cargos chaves na nova administração, como mostra a detalhada pesquisa de René Dreifuss.

O cientista político identificou os associados e colaboradores do Ipes nos cargos de mando em instituições como: o recém-criado Banco Central do Brasil; os ministérios do Planejamento e da Fazenda; a Casa Civil, ligado ao presidente Castello Branco; além de terem redigido a Reforma Administrativa Federal e coordenado o Escritório de Planejamento Econômico e Social do Estado.

Outros órgãos importantes que ficaram nas mãos das lideranças do Ipes foram: o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, atual BNDES); o Banco do Brasil; o Conselho Nacional de Economia; a Caixa Econômica Federal e diversos outros bancos públicos.

Dreifuss destacou que o ministro da Fazenda, Octávio Bulhões, e o do planejamento, Roberto Campos, avô do atual presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, tornaram-se os mais importantes “modeladores da nova economia brasileira”, ambos associados ao Ipes. Para o autor de 1964: A Conquista do Estado, as lideranças do Ipes “moldaram o sistema financeiro e controlaram os ministérios e principais órgãos da administração pública”.

Dreifuss conclui afirmando que: “os ativistas do Ipes impuseram uma modernização da estrutura socioeconômica e uma reformulação do aparelho do Estado que beneficiou, de maneira ampla, as classes empresariais e os setores médios da sociedade, em detrimento das massas”.

 

Ø  Sob a sombra do 8/01, Lula ignora os 60 anos do golpe militar

 

No 60º aniversário do golpe militar de 1964, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou os atos oficiais em memória das vítimas do regime, na tentativa de distender o clima com as Forças Armadas, enquanto alguns altos oficiais estão na mira da justiça, suspeitos de participar de um plano golpista.

"Precisamos aproximar a sociedade brasileira e as Forças Armadas: não podem se tratar como se fossem inimigas", disse o presidente Lula em uma entrevista no final de fevereiro.

Em 31 de março de 1964, os militares se insurgiram contra o então presidente João Goulart (1961-1964), e permaneceram no poder por 21 anos à frente de uma ditadura, admirada pelo ex-presidente de extrema direita Jair Bolsonaro (2019-2022), um ex-capitão do Exército.

O aniversário parecia propício para Lula, um ex-sindicalista que liderou uma greve histórica contra o governo militar, lembrar das vítimas, entre as quais há 434 mortos ou desaparecidos, segundo as conclusões, em 2014, da Comissão Nacional da Verdade, um organismo oficial.

Diferentemente da vizinha, Argentina, que julgou os agentes do Estado acusados de cometer crimes durante a ditadura no país (1976-1983), no Brasil, este capítulo da História terminou com a Lei de Anistia, de 1979.

- "Cálculo político" -

Mas Lula, de 78 anos, afirmou que o golpe de 1964 "já faz parte da História" e seu governo não vai "ficar remoendo" esse assunto. 

"Estou mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com o de 1964", declarou.

Naquele dia, milhares de apoiadores de Bolsonaro invadiram as sedes dos Três Poderes, em Brasília, pedindo que os militares depusessem Lula, uma semana depois de sua posse.

Paralelamente, o ex-presidente é investigado por supostamente participar de um "plano de golpe de Estado" para se manter no poder após sua derrota nas eleições de outubro de 2022.

São suspeitos de envolvimento na trama vários de seus aliados mais próximos, incluindo ministros e altos oficiais militares. O major Rafael Martins de Oliveira e o coronel do Exército Bernardo Romão Corrêa Neto foram detidos no âmbito da operação Tempus Veritatis, da Polícia Federal.

"Nunca houve uma conjuntura tão propícia para se discutir o lugar das Forças Armadas na sociedade brasileira quanto o pós-governo Bolsonaro e o pós-8 de janeiro", explica o historiador Lucas Pedretti.

Mas Lula fez "um cálculo político que coloca uma estratégia de acomodação com as Forças Armadas no primeiro plano, em detrimento e prejuízo das necessidades histórias da sociedade brasileira de rever seu passado", diz em declarações à AFP este acadêmico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

- Protestos de associações de vítimas -

A decisão de Lula levou ao cancelamento de atos preparados pelo governo, como os do Ministério dos Direitos Humanos. Seu titular, Silvio Almeida, pretendia lembrar os ativistas e perseguidos pelo regime militar em um discurso no Museu da República, em Brasília, segundo informações divulgadas pela imprensa.

E embora Lula tenha proibido no ano passado rememorar o golpe nos quartéis, como se fez durante o governo Bolsonaro (2019-2022), tampouco será feita nenhuma reflexão sobre o papel das Forças Armadas durante a ditadura ou na atualidade.

"Para nós, é História, não temos que estar remoendo as coisas", diz uma fonte do Exército à AFP. "A ideia é a pacificação e olhar para a frente".

Mas grupos de defesa dos direitos humanos exigem do presidente Lula reinstaurar a Comissão de Mortos e Desaparecidos, instalada em 1995 para investigar os crimes políticos cometidos entre 1961 e 1979, e suprimida por Bolsonaro em seu último ano de governo.

A Coalizão Brasil pela Memória, Verdade e Justiça, que reúne mais de 150 associações, criticou a decisão "equivocada" do presidente de não rememorar a data.

"Repudiar veementemente o golpe de 1964 é uma forma de reafirmar o compromisso de punir os golpes também do presente e eventuais tentativas futuras", ressalta a organização em nota.

"Não aceitaremos que, mais uma vez, os governos negociem ou abdiquem dos direitos das vítimas para poder contemporizar com os militares. Não aceitaremos mais essa tutela cujo preço histórico quem tem pago são os familiares, todos os que foram atingidos por atos de exceção" da ditadura, acrescentam.

 

Fonte: IstoÉ/AFP

 

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