3 curiosos enigmas sobre o tempo (e por que
há quem viva nos séculos 15 e 30 simultaneamente)
Poucas coisas são mais
misteriosas do que o tempo. E, se você gosta de enigmas, aqui estão alguns
aguardando para serem resolvidos.
Preparamos três
enigmas relacionados ao tempo com o auxílio da professora de história Helen
Parish, da Universidade de Reading, no Reino Unido.
Depois de ler e tentar
resolvê-los, basta rolar a tela para encontrar as respostas — e conhecer outras
curiosidades sobre o tempo que existem pelo mundo até hoje.
<< 1. A carta
impossível
Uma mulher se senta
para escrever uma carta na França, no dia 8 de novembro de 1582. E a carta é
recebida na Inglaterra três dias antes.
Como isso pode ser
possível?
<< 2. O mistério
dos aniversários desaparecidos
Uma criança nasce em
Roma, na primavera do ano 46 a.C. Ela vive até os 60 anos de idade, mas nunca
comemorou o seu aniversário. Por quê?
<< 3. O estranho
envelhecimento do agricultor
Depois de trabalhar
nos campos no último dia de dezembro do ano 800 a.C., um agricultor guarda suas
ferramentas e vai dormir.
No primeiro dia do Ano
Novo, ele pega de volta suas ferramentas e recomeça o trabalho. Mas ele está
dois meses mais velho.
O que aconteceu?
• As respostas
<< 1. A carta
impossível
Nos anos 1500, o velho
calendário juliano foi substituído pelo calendário gregoriano.
Mas os diversos países
da Europa adotaram o novo calendário em épocas diferentes. Com isso, os dias do
continente ficaram fora de sincronia, deixando alguns países vários dias ou
semanas atrás dos outros.
<< 2. O mistério
dos aniversários desaparecidos
Os romanos costumavam
usar meses adicionais, conhecidos como "meses intercalados". Eles
eram acrescentados em situações específicas, para realinhar o ano romano de 355
dias ao ano solar.
A criança em questão
nasceu no mês intercalado, chamado mercedônio.
E o mercedônio foi
acrescentado pela última vez na primavera do ano 46 a.C., de forma que o dia do
aniversário daquela pessoa nunca mais se repetiu.
<< 3. O estranho
envelhecimento do agricultor
Antes do calendário
juliano, o ano em Roma tinha apenas 10 meses. Os cerca de 60 dias de inverno,
durante os quais não havia trabalho agrícola, não eram incluídos no calendário.
De forma que, nesse
período do inverno, não havia o conceito real de "meses".
• 2024, 1385 ou 2973?
Estes enigmas podem
parecer curiosidades do passado. Mas, mesmo no nosso mundo moderno, existem
peculiaridades no calendário tão interessantes quanto estas.
Muitas culturas contam
os anos e as idades de forma diferente – e se dão bem com isso.
Estamos no ano de 2024
em todo o mundo. Mas, em Mianmar, o ano é 1385. E, se você for à Tailândia, irá
embarcar rumo ao ano 2567.
Os marroquinos estão
rezando em 1445 e cultivando a terra em 2973, segundo o calendário berbere.
Já a Etiópia está em
2016. Lá, o ano tem 13 meses. Pagumē, o mês adicional, pode ter cinco dias — ou
seis, se o ano for bissexto.
E, na Coreia do Sul, o
dia de Ano Novo é o aniversário de todas as pessoas.
Os sul-coreanos
consideram tradicionalmente que nascem com um ano de idade. A partir dali, eles
têm a todo momento duas ou três idades oficiais: a idade doméstica tradicional,
a idade internacional (que conta a partir do zero) e um ano de bônus quando todo
o país envelhece junto, no dia 1º de janeiro — ou, simbolicamente, no Ano Novo
Lunar.
E os coreanos ainda
podem escolher se comemoram seus aniversários pelo calendário gregoriano ou
pelo calendário lunar tradicional — embora toda esta tradição esteja se
alterando.
• O lento caminho até aqui
As datas servem de
base para as nossas vidas. São uma daquelas coisas que parecem simplesmente
existir.
Mas é claro que
qualquer data específica (1º de janeiro de 2024, por exemplo) é a convenção
estabelecida por um sistema de contagem do tempo – neste caso, o calendário
gregoriano.
Por ser o calendário
padrão global aprovado pela Organização Internacional de Normalização (ISO, na
sigla em inglês), adotado em todos os setores internacionais, desde a aviação
até a política, é fácil imaginar que o calendário gregoriano deve ser absolutamente
preciso e eficiente – o que não é verdade.
O calendário
gregoriano cresceu até dominar o mundo, em grande parte, por ter surgido no
lugar certo, no momento certo e na cultura imperialista certa.
O papa Gregório 13
(1502-1585) ordenou a reformulação do calendário para corrigir distorções
acumuladas ao longo dos séculos.
Produto da doutrina
religiosa e da ciência do Renascimento, o calendário gregoriano foi criado para
corrigir a diferença entre o ano litúrgico católico (baseado, na época, no
calendário juliano) e o ano solar real.
Na época em que o papa
Gregório 13 ordenou a reforma do calendário, no final do século 16, o
calendário juliano estava fora de sincronia com as estações do ano em cerca de
10 dias.
Isso ocorreu porque o
calendário juliano apresentava um pequeno erro de 11 minutos e 14 segundos por
ano. Era uma matemática impressionante para o ano 45 a.C., mas essa
discrepância inevitavelmente se acumulava ao longo dos séculos.
A reforma do papa
reduziu o erro anual do calendário para 26 segundos. Mas sua introdução, em
1582, imediatamente encontrou resistência.
Nem os protestantes,
nem os cristãos ortodoxos, estavam dispostos a reelaborar seu conceito de tempo
com base em um decreto papal. Por isso, apenas os países católicos da Europa
adotaram o novo calendário a tempo para o ano de 1600.
Outras regiões
começaram a adotar o novo calendário nos séculos que se seguiram. A Alemanha e
a Holanda, protestantes, oficializaram a mudança em 1700, enquanto a Inglaterra
e suas colônias fizeram o mesmo em 1800.
Em 1900, países não
cristãos distantes, como o Japão e o Egito, já haviam adotado o novo
calendário, mas países ortodoxos como a Romênia, a Rússia e a Grécia ainda
resistiram por boa parte do século 20.
Foi somente no ano
2000 que a Europa inteira saudou a chegada de um novo século no dia primeiro de
janeiro, pelo calendário gregoriano.
Mas a maior parte das
principais potências imperiais já adotava o novo calendário em meados do século
19, quando o período colonial colocou mais de 80% do planeta sob domínio
europeu.
Esse período coincidiu
com um movimento das comunidades científicas e comerciais europeias e
norte-americanas pela adoção de um calendário universal para facilitar o
comércio. E, quase por falta de alternativas, o calendário gregoriano venceu.
Nas regiões que não
foram conquistadas pela Europa, o calendário se espalhou por outros meios.
No seu livro The
Global Transformation of Time ("A transformação global do tempo", em
tradução livre), a historiadora Vanessa Ogle sugere que o capitalismo, a
evangelização e a paixão científica pela uniformidade fizeram mais para
padronizar o tempo do que qualquer política imperialista.
O colonialismo não
chegou a ser um fator essencial. Beirute estava sob domínio otomano quando as
datas gregorianas apareceram nos seus almanaques, no final do século 19. E o
Japão nunca foi colonizado, mas adotou o calendário gregoriano em 1872.
• Calendários simultâneos
Esta aceitação pode
ter sido mais fácil porque se sabia que não seria uma relação monogâmica.
Afinal, o uso de vários calendários paralelos já existia milênios antes da
criação do calendário gregoriano.
Os antigos egípcios e
os maias, por exemplo, usavam dois calendários, o religioso e o administrativo.
O rei coreano Sejong,
o Grande, encomendou especificamente dois sistemas para sua reforma do
calendário nos anos 1430. Um deles era adaptado do calendário chinês e o outro,
do calendário árabe.
Na Beirute dos anos
1880, o calendário gregoriano era apenas um dos quatro calendários usados no
dia a dia.
E o próprio Japão, que
adotou inteiramente o calendário gregoriano, manteve seu sistema de datas
imperiais, o calendário Rokuyo de dias auspiciosos e o calendário 24 Sekki de
mudanças das estações do ano. Todos eles são utilizados até hoje.
A antropóloga social
Clare Oxby estudou o uso de calendários na região do Sahel e no Saara. Ela
cunhou a expressão "pluralismo de calendários" para descrever a
coexistência de diversos sistemas de contagem do tempo, da mesma forma que o
pluralismo legal indica sociedades com diversos sistemas de legislação.
Pode parecer
malabarismo, mas, na prática, calendários diferentes atendem diferentes
funções.
No norte da África, as
comunidades imazighen, os tuaregues e outros povos de fala berbere podem usar
três ou quatro sistemas simultaneamente: calendários estelares marcam as
estações agrícolas; o calendário lunar islâmico orienta as práticas religiosas;
e o calendário gregoriano determina as interações com o governo.
Viver em diversas
linhas do tempo pode ser uma forma prática de unificar diferentes necessidades
temporais.
Este conceito não é
totalmente desconhecido na Europa e na América do Norte. As pessoas têm anos
escolares e anos fiscais, por exemplo. De certa forma, é apenas questão de
quando você começa a contar.
"Provavelmente, o
uso de diversos calendários paralelos está muito mais presente no nosso mundo
contemporâneo do que pensamos", afirma Oxby.
Mas, embora o
pluralismo tenha sido uma presença constante ao longo da história, os
calendários mudam todo o tempo. Os calendários atuais podem sofrer alterações
daqui a apenas algumas décadas.
"Você pode ter
mais [calendários] e eles podem ser diferentes. A cultura humana está em
constante evolução", explica ela.
A comunidade imazighen
comemora o Ano Novo conforme o seu próprio calendário em Tizi-Ouzou, na
Argélia.
• Os calendários na era digital
Uma mudança cultural
em andamento hoje em dia é o crescimento do mundo digital.
Os cabos de fibra
óptica substituíram as antigas rotas comerciais, levando o calendário
gregoriano para lugares que o colonialismo não conseguia alcançar. E, pelo
menos até agora, a conectividade criou um novo tipo de pluralismo de
calendários.
O Nepal é um dos
poucos países do planeta em que o calendário nacional não é o gregoriano.
Oficialmente, o país vive no ano 2080 (pelo calendário Bikram Sambat) ou 1144
(segundo o Newari Nepal Sambat), ou ambos.
Ao todo, pelo menos
quatro calendários são usados entre diferentes grupos étnicos do país, com
diversos dias de Ano Novo.
O Nepal também está 15
minutos fora de sincronia com os demais fusos horários. É um país com sua
própria linha temporal.
Ainda assim, muitos
cidadãos nepaleses não veem motivo para usar diversos calendários
simultaneamente. O caso de Sanjeev Dahal é um exemplo.
"Uso apenas o
calendário Bikram Sambat", explica ele. "Nunca usei o Nepal Sambat na
vida."
Esta não é exatamente
uma questão monotemporal. O calendário Bikram Sambat inclui diversas formas
religiosas e culturais de contagem do tempo ao longo do seu ano solar, com 12
meses lunares e seis estações.
Mas Dahal é hindu e
mora na capital do Nepal, Katmandu. E, para ele, este sistema cobre todos os
aspectos da sua vida, dos dias de jejum até o dia de pagamento.
Dahal precisa de
apenas um calendário dentro do Nepal, mas ele é estudante de PhD à distância do
Boston College, nos Estados Unidos. Ele estuda a diáspora nepalesa.
Por isso, ele mantém
uma complicada interação com o calendário de outra cultura: a cultura digital,
que é quase exclusivamente gregoriana, como a Europa imperialista do século 19.
"Eu existo em
dois espaços e tempos", explica Dahal.
Ele encontrou uma
solução tecnológica para esse enigma. Seu laptop está em 2024 e seu telefone
celular em 2080. E um aplicativo o ajuda a se orientar entre os dois.
Para Dahal, existe uma
divisão geracional no uso do calendário. Seus pais não usam o calendário
gregoriano para nada.
Mas, entre seus
amigos, existe também uma divisão funcional, com o gregoriano sendo usado
comercialmente e o Bikram Sambat para eventos sociais e familiares.
O calendário ocidental
pode dominar as redes sociais (e, portanto, decidir quando as pessoas enviam
votos de feliz aniversário), mas é inútil para aspectos importantes da cultura
nepalesa, como determinar dias auspiciosos e acompanhar os ciclos lunares.
Por todos estes
motivos, Dahal não acredita que o calendário gregoriano venha a ser
oficializado no futuro próximo.
No Nepal, a sensação
de tempo é diferente do resto do planeta.
• Padronização x diversidade cultural
A história pode correr
em círculos.
Como no movimento pelo
Calendário Mundial no final do século 19, o século 21 vem observando uma
tendência pela unificação do calendário, por razões econômicas.
Em 2016, a Arábia
Saudita mudou o cronograma de pagamento dos funcionários do governo do
calendário islâmico para o gregoriano, o que foi interpretado, em grande parte,
como uma medida de redução de custos.
E, em dezembro de
2022, a Coreia do Sul aprovou uma lei alinhando a contagem de idade das pessoas
aos padrões internacionais. A contagem tradicional deixou de ser oficial no
país, já que o sistema de múltiplas idades é considerado economicamente
ineficiente.
Mas o que se ganha e o
que se perde ao consolidar o calendário em um só, especialmente um calendário
criado para ser usado em outra época e em um lugar diferente?
"Bem, os governos
podem aumentar seu controle impondo calendários centralizados", afirma
Clare Oxby. Ela também escreveu sobre a dinâmica de poder do uso dos
calendários.
Mas "o país pode
perder em história e diversidade cultural. As pessoas podem sair perdendo. Se
elas fizerem parte de uma cultura regional minoritária, elas podem se sentir
subvalorizadas nacionalmente."
Mais uma vez, 150 anos
de globalização não tornaram o pluralismo obsoleto. Os calendários vão e vêm –
e, mais frequentemente, eles mudam.
E, se há uma coisa que
os seres humanos fazem muito bem, é mudar.
Fonte: BBC Future
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