"Desenho da segurança pública no
Brasil foi feito pelos militares em 1964", diz antropólogo
“Quem procura osso é
cachorro”, disse Jair Bolsonaro (PL) em entrevista quando ainda era deputado federal. Ele se
referia às buscas no Araguaia que
procuravam desvendar crimes cometidos pela ditadura civil-militar instalada há 60 anos, em 1º de abril de 1964. O então parlamentar, que já ganhava notoriedade como uma
espécie de “sindicalista” dos militares e das forças de segurança no Congresso,
chegou até a posar ao lado de um cartaz com os mesmos dizeres.
Eram os tempos dos
primeiros governos petistas e o ministério dos Direitos Humanos estava
empenhado em fazer funcionar a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos
(CEMD). Já havia passado algum tempo desde o fim
do regime, é verdade, mas a pauta seguia quente no debate público.
Bolsonaro, por outro
lado, usava sua credencial de ex-militar – ainda que tenha tido uma espécie de
aposentadoria compulsória por mau comportamento – e tentava capitalizar
politicamente em cima da pauta. Há quem diga, ainda hoje, que muitos generais
embarcaram na candidatura do ex-capitão reformado em 2018 por conta da sua
negação da justiça de transição.
Não deu outra. Uma vez
eleito, logo nos primeiros dias de mandato em 2019 extinguiu o Ministério dos
Direitos Humanos e colocou em seu lugar uma excrescência: o assim chamado
Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, encabeçado por Damares Alves que acabara de ver Jesus Cristo em pleno pé de goiabeira.
Poucos meses depois, em 11 de abril, assinou o Decreto 9.759 que extinguiu
importantes conselhos e comissões da justiça de transição como os Grupos de
Trabalho Perus e Araguaia, que compunham a CNV.
Mais tarde, em 2022,
aprovou a extinção da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, que existia
por lei federal desde 1995. O curioso dessa história é que o pedido para o fim
da CEMD foi feito pelo próprio presidente da comissão, o advogado Marco Vinicius
Pereira de Carvalho que acumulava a função de assessor de Damares. Com ele
votaram Paulo Fernando Melo da Costa (ligado ao senador Magno Malta/PL-ES), o
deputado federal Filipe Barros (PL-PR) e o militar Jorge Luiz Mendes de Assis.
Contra a extinção votaram dois parentes de vítimas e o representante do
Ministério Público Federal. O aparelhamento do órgão por Bolsonaro começou em
2019, já de olho no seu fim.
Mas o fim do governo
Bolsonaro infelizmente não representou a retomada dos esforços pela justiça de
transição. Pelo contrário, o governo Lula III cancelou atos oficiais em memória
aos 60 anos do golpe militar, pois teríamos que deixar as “feridas do
passado” para trás. A decisão divide opiniões na própria esquerda. Se por um
lado Ricardo Cappelli – importante nome ligado do Ministério da Justiça de
Flávio Dino – defende a posição do governo, por outro, quadros históricos do
PT, como Valter Pomar, tecem duras críticas sobre o tema.
Para compreender
melhor o porquê da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos não retornar à
baila, entrevistamos o antropólogo Orlando Calheiros, que trabalhou na Comissão Nacional da Verdade a partir de
2014, onde integrou o Grupo de Trabalho do Araguaia. Ao lado da historiadora
Cecília Adão, redigiu o capítulo referente que consta no relatório final da
CNV. Entre suas descobertas, fruto de anos de pesquisa, está o fato de que
durante o combate à guerrilha, em 1972, o Exército brasileiro manteve em
cativeiro e escravizou o povo Aikewara,
de origem tupi-guarani, que vivia no sudeste do Pará, próximo à fronteira do
atual estado do Tocantins – à época ainda acoplado a Goiás.
Para Calheiros, não há
interesse político no esclarecimento dos crimes da ditadura pois implicaria no
reconhecimento de práticas semelhantes em tempos democráticos. Mas mais do que
isso, implicaria num redesenho das próprias forças de segurança, incluindo as
polícias Civil e Federal – não apenas os militares e as PMs.
·
Calheiros conta brevemente a história da
CNV
Atribuída a Dilma
Rousseff, a Comissão foi, na verdade, proposta no âmbito da Política Nacional
de Direitos Humanos do segundo mandato de Lula, em 2008, por conta de uma
condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos,no caso de
Gomes Lund, que é justamente um caso do Araguaia. O Brasil é condenado na CIDH
por nunca ter esclarecido sua morte e a de outros militantes políticos durante
a ditadura militar
“Graves
violações a direitos humanos não prescrevem. E tem um tipo de crime muito
específico, que é o desaparecimento forçado, um crime continuado. Todo dia de
manhã ele se repete porque as situações daquela morte nunca foram esclarecidas.
Então o Brasil é condenado por isso e resolve se antecipar a possíveis sanções,
instaurando a Comissão Nacional da Verdade. A Comissão tinha um prazo
específico. Ela encerraria os seus trabalhos em 2014 e existia na época uma discussão
para se transformar a CNV numa instituição permanente como acontece na
Argentina. As pessoas não sabem, mas a Comissão da Verdade não é uma
instituição brasileira. Ela é uma instituição do direito internacional.
Aconteceu na África do Sul, na Argentina, no Chile. E o Brasil foi um dos
últimos países a instaurar sua CNV”, explica.
O antropólogo aponta
que a derrocada da justiça de transição começou em 2015, no acender de luzes do
segundo e não terminado mandato de Dilma Rousseff. À época, a presidenta se via
pressionada por todos os lados e começou a ter de ceder. Mas, para além disso,
ele também aponta que o próprio Lula já vinha dando declarações desde 2010, no
auge da sua popularidade, em que creditava a barbárie praticada durante a
ditadura não a uma questão sistemática, de desenho do Estado e das forças de
segurança pelos generais – como a CNV aponta – mas como uma espécie de “desvio
de conduta” de agentes da ditadura. E é justamente essa a argumentação de
figuras como o ministro José Múcio, da Defesa.
“Essa
tendência foi se consolidando já durante o governo Temer, quando as discussões
foram completamente esvaziadas. Ele falou que do dia para a noite todo o
orçamento foi embora. Literalmente do dia para a noite. Não tem mais orçamento
para fazer caravana de anistia, não tem mais nada. Durante o governo Bolsonaro,
na verdade, tudo isso se tornou um escárnio e até militares foram anistiados
politicamente. Receberam indenização. Se reviu indenizações que foram emitidas
para pessoas que participavam no movimento político. Nesse contexto, a CEMD é
extinta. Mas é um longo processo, ou seja, a extinção durante o governo
Bolsonaro não é um ato isolado do Bolsonaro”, avalia.
Para Calheiros e para
a CNV, toda a barbárie dos porões da ditadura foram uma consequência direta da
forma como o governo era montado. Ou seja, não teria como isentar a caserna.
“O
problema não é o guardinha da esquina, para usar aquela famosa frase. O
problema é o general. Porque o guardinha da esquina só age do jeito que age
porque foi autorizado pelo general. Ele se sente autorizado pelo AI-2 e pelo
AI-5. E além disso, quem é que financiava todo esse sistema? Quem que
financiava uma casa em Petrópolis? As pessoas não estavam tirando dinheiro do
bolso e fazendo vaquinha. Era financiado oficialmente pelo Estado
brasileiro."
·
Doutrina da guerra revolucionária
Quando os militares
dão o golpe em 1964 implementam um regime de governo que tinha como fundamento
a chamada doutrina da guerra revolucionária. Trata-se de uma ideologia militar
criada pelos franceses para combater movimentos insurgentes na Argélia. A
população argelina estava se revoltando contra a opressão colonial e os
franceses começam a criar um sistema de gestão e um regime político para coibir
focos de independência. Na ponta dessa doutrina está o entendimento de que o
inimigo não usa mais um uniforme. Pelo contrário, estaria incorporado à
população que se pretende governar.
“Um dos
métodos usados por essa doutrina é o do medo. Você cria um aparato de terror
que vai operar produzindo medo para impedir que as pessoas entrem nesses
processos revolucionários, porque ‘se eu virar revolucionário eu vou morrer’. E
como que se constrói esse medo? Com as ações de busca e destruição, um termo
muito usado pelos EUA no Vietnã. Tem até uma música do Metallica que fala sobre
isso, a Seek and Destroy. É basicamente ir para um lugar e matar todo mundo.
Outro tipo de ação prevista por essa doutrina era o uso ostensivo e extensivo
da tortura. A tortura tem uma finalidade de extração de informações, mas também
tinha uma ideia de produzir medo, porque ninguém quer ser torturado. E as
torturas vão se tornando cada vez mais elaboradas”, explica Calheiros.
O antropólogo ainda
aponta que toda a indústria militar se adaptou à nova doutrina. Entre outros,
começaram a surgir os chamados “helicópteros Apache”, desenhados para rápidas
incursões no novo tipo de território inimigo.
“Essa
doutrina chega no Brasil pela Escola das Américas, onde ocorre a formação de
boa parte dos torturadores e dos generais do regime. O problema do nosso
aparato de segurança vem daí. E aqui eu não estou falando só da PM, mas também
da Polícia Civil e da Federal. Esse aparato não é feito, por exemplo, para
coibir crimes. Ele não é feito para coibir o tráfico internacional de drogas.
Ele é feito para produzir todo um sistema de medo na ponta. A Polícia Militar
não existe num vácuo. O desenho da Polícia Civil, o desenho da Polícia Federal,
o desenho da PM e de todos os setores de inteligência remete a essa ideia de
que você está lutando contra um inimigo que se camufla e se mistura com a
população. Então como é que você vai rediscutir o papel das polícias no Brasil
se você não rediscute a origem disso? Como é possível você modificar um sistema
cuja genética já está comprometida?”, indaga.
·
Crimes autorizados em época democrática
O entrevistado lembra
que na mesma semana que o Lula fez sua declaração sobre os 60 anos do golpe
militar, Ana Paula Oliveira - a mãe do Jonathan Oliveira e fundadora do Mães de Manguinhos, um coletivo de mães que tiveram seus filhos torturados e
executados pela Polícia do Rio – viu sair a sentença que isenta o soldado da PM
que efetuou sete tiros de fuzil contra o seu filho, pelas costas. A Justiça do
Rio de Janeiro considerou que ele praticou homicídio culposo, sem a intenção de
matar. Dias mais tarde, os PMs que atiraram e arrastaram Cláudia Silva Ferreira pelas ruas do Rio também foram inocentados.
“Esse tipo
de corporativismo, que isenta o militar de suas ações, é o que faz com que a
gente viva numa sociedade que discute abertamente a possibilidade do massacre e
da barbárie. Mas não é apenas discussão, há também pessoas que se elegem
promovendo essa barbárie, e pautando, entre outros, a criação do excludente de
ilicitude para os policiais que matarem pessoas. Esse tipo de corporativismo só
é possível porque tem gente relativizando ou querendo apagar a história de
violações referidas aos militares”, lembra Orlando.
Recentemente, a
popularidade do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), aumentou na Baixada Santista após quase uma centena de mortos
nas operações Escudo e Verão, entre 2023 e 2024. Fora do Brasil, vemos um
cenário semelhante no Equador, onde após dois meses de “conflito armado
interno”, 12 mil prisões e algumas execuções extrajudiciais, a popularidade do
presidente Daniel Noboa também subiu. Em ambos os casos, os políticos chegaram
perto dos 80% de aprovação.
“O desenho
da segurança pública no Brasil foi feito pelos militares em 1964. É fundamental
que se fale sobre a ditadura militar para que se entenda que esse modelo de
segurança pública que a gente vive. Além de todo o processo de extermínio e de
execução, nos deu o PCC, nos deu o Comando Vermelho, nos deu todas essas
facções, porque tudo isso está umbilicalmente ligado. Esse processo começa nos
militares, é desenhado por eles e isso não é um acidente. O que vemos hoje, as
mortes na Bahia, em São Paulo e no Rio de Janeiro, nada disso é um acidente. Na
verdade, isso é a máquina que os militares desenharam funcionando
perfeitamente. Não podemos tratar como casos isolados. A gente vive num país
que chacina policial é show biz eleitoral. Porque isso dá para a população uma
impressão de que algo está sendo feito.”
Fonte: Fórum
Nenhum comentário:
Postar um comentário