segunda-feira, 22 de abril de 2024

Descolonizando o multilateralismo: o jeito BRICS de fazer política internacional

Um dos pilares da política externa do BRICS tem sido o de "descolonizar o multilateralismo". Ao mesmo tempo, o grupo tem investido em reformar as principais instituições de governança global, rumo a um compromisso de inclusão dos países emergentes em seus processos de tomada de decisão.

Hoje a voz do BRICS tem um peso estratégico muito maior do que em 2009, quando foi criado, devido à recente expansão do grupo, acordado durante a 15ª cúpula, na África do Sul, que agora inclui Egito, Etiópia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã. Com isso, o BRICS inegavelmente ganha força em sua defesa do multilateralismo nas relações internacionais, conceito esse que tem sofrido um grande revés, sobretudo em função das crises atuais no Leste Europeu e no Oriente Médio. Mudanças na configuração do poder global, rivalidades geopolíticas entre a Eurásia e o eixo atlanticista, bem como a ressurgência de nacionalismos extremados em vários lugares do mundo, fizeram de nossos tempos contemporâneos um dos períodos mais imprevisíveis e perigosos de toda a história. É necessária, portanto, uma reforma urgente do sistema ONU, que já se mostrou ineficiente num contexto geopolítico em rápida evolução. Ora, tanto as Nações Unidas como seu Conselho de Segurança, responsável por manter a paz e a segurança internacionais, de fato não têm funcionado a contento. Aliás, muito longe disso. O BRICS, por sua vez, tem sido a principal voz da chamada "maioria global" a pedir mudanças nesses mecanismos, o que aumenta ainda mais a sua importância no contexto atual.

Nesse ínterim, o multilateralismo defendido pelo BRICS é justamente um dos pilares fundamentais para restabelecer a ordem do pós-guerra, além de outros conceitos importantes, como a indivisibilidade da segurança internacional, a não intervenção nos assuntos internos dos Estados, o respeito à integridade territorial e a solução pacífica dos conflitos.

No entanto, apesar de muitos outros países também defenderem esses ideais, o Ocidente e seu internacionalismo liberal manifestado pela famigerada "ordem mundial baseada em regras" tornou-se um grande impeditivo para a consolidação de um mundo mais justo e equitativo. Afinal, a própria rede ocidental de instituições multilaterais (como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) transformou-se em uma plataforma de chantagem política. Vide o sequestro dos ativos russos em 2022, ocorrido após o início da operação militar especial.

O perigo dessas atitudes, por sua vez, reside na perda de legitimidade dessas instituições multilaterais, algo que já vem acontecendo com a própria ONU, como já mencionado. O pior de tudo é que: se olharmos para a história, vemos que quando grandes organizações internacionais perdem legitimidade, vide o caso da antiga Liga das Nações no começo do século XX, o mundo fica cada vez mais próximo de uma guerra de grandes proporções. Nós ainda vivemos numa ordem que foi gerada a partir de um cenário de pós-guerra. Trata-se justamente de uma ordem que foi moldada pelas "potências vitoriosas" do conflito que, em comum acordo, levou à formação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas que também contribuiu para a criação das chamadas instituições de Bretton Woods. Entretanto quase 80 anos se passaram desde então, e hoje o BRICS busca reformas nesses mecanismos de governança global, de forma a torná-los mais inclusivos e a fim de dar maior voz aos países emergentes em seus processos de tomada de decisão. Em suma, a questão principal envolve fazer dessa ordem atual uma ordem mais representativa das realidades de nosso século XXI.

Hoje muitos países em desenvolvimento ainda se sentem impotentes ao firmarem acordos econômicos com o G7, por exemplo, ou então quando tentam avançar suas demandas perante o Conselho de Segurança. Para além disso, a tal "ordem mundial baseada em regras" da qual o Ocidente tanto se orgulha trata-se apenas de uma cortina de fumaça para que esse mesmo Ocidente possa agir livremente dentro do sistema, intervindo (econômica, política e militarmente) nos assuntos internos dos Estados. Ao mesmo tempo, a única regra que é obedecida pelas potências ocidentais é a regra do atendimento de seus interesses egoístas, nem que para isso seja necessário desrespeitar o direito internacional ou mesmo a Carta da ONU. Essa é a fórmula do unilateralismo do Ocidente, agir sem consultar ninguém e sem considerar outros povos e civilizações como parceiros de igual importância.

A abordagem do BRICS, por outro lado, vai completamente na contramão dessa tendência, enfatizando o multilateralismo nas relações internacionais, ponto focal e a mais poderosa força motriz por trás da ampliação do grupo ao longo dos últimos anos. A política externa dos países do BRICS, ademais, sempre procurou priorizar relações de ganho mútuo, assim como a não imposição de agendas por parte de uma liderança hegemônica a todos os demais membros do grupo, como ocorre na relação dos Estados Unidos com os países do G7 e da OTAN, por exemplo. Uma das mais importantes funções do BRICS, portanto, é justamente dotar seus participantes de um maior senso de igualdade no âmbito do agrupamento, sem que um país necessariamente prevaleça sobre o restante.

Diante desse cenário, o mundo assiste à acelerada formação de uma ordem multipolar mais justa, ligada ao fortalecimento e à ampliação do BRICS e que promete mudar o quadro geopolítico internacional de forma significativa nas décadas seguintes. Esses avanços fazem do grupo um verdadeiro contrapeso à hegemonia dos Estados Unidos e de seus aliados ocidentais nas relações internacionais, o que se trata de um momento inédito para o mundo. Este momento, portanto, representa a celebração do reconhecimento que os países emergentes obtiveram ao longo dos últimos anos, em sua transição de "subalternos" ao Ocidente para a de atores cuja voz já não pode mais ser ignorada. Enquanto isso, o BRICS vai "descolonizando o multilateralismo", tornando-o mais inclusivo e acolhendo de bom grado a valiosa contribuição de diversos povos e civilizações para esse processo.

 

Ø  EUA acusarem África do Sul de se alinhar com 'atores malignos' é forma de colonização, diz analista

 

Um projeto de lei em tramitação no Congresso dos Estados Unidos acusa o governo da África do Sul de estreitar laços com supostos "atores malignos", definidos pelos americanos, incluindo a Rússia, a China e grupos não alinhados com o Ocidente.

As implicações desse projeto se estendem não apenas a Pretória, mas também a outros Estados africanos, como Burkina Faso, Mali e Níger.

A suspeita levantada no projeto de lei, originário da Câmara dos Representantes dos EUA e citado como "lei de revisão das relações bilaterais Estados Unidos-África do Sul" (HR 7256), incide sobre posturas do governo sul-africano consideradas alinhadas a países com históricos de confrontos diretos ou indiretos com os EUA.

Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, a pesquisadora do Núcleo de Avaliação da Conjuntura (NAC) da região da África Subsaariana, Carolina Vasconcelos, destaca que a proposta menciona explicitamente o grupo Hamas, o governo do Irã, a China e a Rússia como focos de preocupação.

 tensão entre as nações se intensificou em 2022, principalmente devido à recusa sul-africana em se alinhar ao Ocidente na condenação de Moscou.

A realização de exercícios militares conjuntos entre Rússia, China e África do Sul na costa leste africana, coincidindo com o aniversário de um ano do conflito na Ucrânia, bem como relatos de supostos envios de armas sul-africanas para os russos, aumentaram as preocupações em Washington.

"Os EUA gostariam que a África do Sul se posicionasse do jeito deles, mas a África do Sul se mostra cada vez mais independente de qualquer coisa."

·        O que pode impactar na África do Sul?

A pesquisadora entende que, diante de tais posições, Washington poderia reduzir subsídios e parcerias comerciais como forma de enfraquecimento.

Para a pesquisadora, o que ocorre agora — e já aconteceu em outras nações, como Burkina Faso — reforça a colonização de Estados africanos.

Em meio a uma aproximação com Moscou, diz, ela vê que os EUA têm se afastado cada vez mais da África Subsaariana.

"A preponderância da Rússia em diversos países, no âmbito econômico, militar, político e ideológico, influencia diretamente os EUA, que já estão planejando leis para impedir a extensão dessas parcerias, nas quais eles consideram malignas e de encontro aos interesses norte-americanos."

Para Vasconcelos, a maior preocupação da África do Sul é em relação à Lei de Crescimento e Oportunidades para África (AGOA, na sigla em inglês), um acordo comercial que permite aos países africanos elegíveis exportar alguns de seus produtos para os EUA sem pagar impostos.

Caso os EUA renunciem a essa legislação, poderá haver um forte impacto, que levaria décadas para ser sanado, ainda que Pequim possa se tornar o maior parceiro econômico dos sul-africanos. "Ela é unilateral, então pode ser renunciada tão somente pelos EUA."

"A AGOA já foi retirada de diversos países sul-africanos porque, segundo os EUA, estariam contra eles ou não estavam se tornando 'democráticos o suficiente'. É um eufemismo, de 'não estar fazendo o que eu quero'. Etiópia, Mali e Guiné foram expulsos em 2021. Em 2023, anunciaram mais expulsões, como a República Centro-Africana, Uganda e Gabão."

Segundo José Ricardo Araujo, pesquisador de África Subsaariana do Núcleo de Avaliação da Conjuntura (NAC) da Escola de Guerra Naval (EGN), a região do Sahel, que inclui Mali, Níger e Burkina Faso, tem sido particularmente visada devido aos recentes golpes de Estado.

Tais eventos levaram os americanos a questionar a "legitimidade democrática" desses países e a advogar por sanções e cortes nas relações diplomáticas.

·        Como a África do Sul vê o conflito na Faixa de Gaza?

A aproximação entre Pretória e Teerã também foi ressaltada, com reuniões entre as autoridades dos países em meio ao conflito na Faixa de Gaza, denunciado pelos sul-africanos na Corte Internacional de Justiça (CIJ), o que também desagradou os americanos.

Nesse caso, Vasconcelos relembra que o movimento contra o Apartheid em território sul-africano foi considerado, inicialmente, "terrorista", e que o ex-presidente Nelson Mandela mantinha boas relações com a Organização para a Libertação da Palestina (OLP).

O projeto de lei proposto pelo congressista republicano John James, explica Araujo, coloca a relação entre a África do Sul e o Hamas como um dos pontos de conflito.

Enquanto Pretória nega formalmente apoiar o Hamas, enfatizando seu apoio à Palestina, as relações entre a ministra das Relações Internacionais e Cooperação sul-africana e o líder do Hamas têm gerado controvérsias.

"A questão da Palestina é fundamental para a política externa da África do Sul, remontando à era de Nelson Mandela. A África do Sul mantém uma posição firme em relação à Palestina, considerando-a uma causa importante para a liberdade e a justiça. Isso, por sua vez, tem sido interpretado pelos EUA como uma inconsistência na diplomacia sul-africana."

Em termos de aconselhamento à África do Sul, Araujo sugere uma abordagem cautelosa, reconhecendo a importância de manter relações com americanos, mas também defendendo a defesa dos interesses e prioridades estratégicas sul-africanas.

Além disso, o projeto de lei destaca a interseção entre questões políticas, econômicas e religiosas na África. A acusação de que países africanos estão se alinhando com "atores malignos" tem implicações não apenas para a estabilidade política, mas também para as relações comerciais e a segurança regional.

"Os países africanos têm buscado alternativas para mitigar o impacto das sanções, buscando apoio de outras potências, como China e Rússia. No entanto, isso levanta questões sobre a influência geopolítica e econômica desses países no continente africano."

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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