Descobertas arqueológicas obrigam Portugal
a rever mito sobre escravidão
O presidente
português, Marcelo Rebelo de Sousa, reconheceu que Portugal foi responsável por
crimes cometidos durante a escravidão transatlântica e a era colonial, e
sugeriu necessidade de reparações.
Em um evento na última
terça-feira (23/4), Rebelo disse que seu país assume "responsabilidade
total" pelos erros do passado e que esses crimes, incluindo massacres
coloniais, tiveram "custos".
"Temos que pagar
os custos (pela escravidão). Há ações que não foram punidas e os responsáveis
não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver
como podemos reparar isso", afirmou.
Estudos recentes
estimam que foram trazidos da África para a colônia brasileira estabelecida por
Portugal no Novo Mundo pelo menos 5,8 milhões de indivíduos escravizados entre
os séculos 16 e 19 — quase a metade do total de toda a América.
Mas o passado
escravagista português não se resume ao emprego de mão-de-obra forçada nas
colônias. Cada vez mais pesquisadores revelam que houve escravidão africana
também na metrópole — ou seja, em Portugal — no mesmo período.
Essa história vem
sendo confirmada por escavações arqueológicas. Em agosto de 2023, a equipe
coordenada pelo arqueólogo Rui Gomes Coelho, pesquisador na Universidade de
Durham, na Inglaterra, encontrou vestígios de ocupações, nos séculos 16 e 17,
de escravizados africanos na região do Monte do Vale de Lachique, ao sul de
Lisboa.
“Sabemos que durante
esse período foram levadas muitas pessoas escravizadas para o sul de Portugal
para trabalharem na agricultura e outras atividades, e ficaram em locais como
esse monte”, afirmou Coelho, à BBC News Brasil, na época.
Ele conta que foram
encontrados objetos "que permitem situar a construção do monte no final do
século 15 ou início do 16".
"Também
descobrimos que antes desse período não existiu ocupação permanente na área
durante mais de mil anos, desde a época romana. Isto sugere que a região só foi
realmente ocupada a partir do final do século 15", conta.
Em outras palavras, a
ocupação moderna da área se deve aos escravizados.
"Esse é um
período em que o tráfico de pessoas escravizadas para Portugal a partir da
África Ocidental e Central foi bastante intenso", comenta o arqueólogo.
Ele ressalta que os
vestígios ali encontrados confirmam relatos documentais que indicam que
"áreas de mato" daquelas redondezas foram limpadas para o cultivo
graças ao trabalho de escravizados.
"É inevitável
pensarmos no que estava acontecendo nessa época em outras partes do Atlântico.
Por exemplo, nas ilhas atlânticas ou até no Brasil", acrescenta ele.
"Estamos perante
um fenômeno de colonização, mas no interior da Europa."
Os objetos encontrados
ali que remetem a esse passado escravagista ainda devem passar por análise e
serão apresentados em um congresso de arqueologia marcado para novembro. Mas
não é a primeira vez que vestígios do tipo são encontrados em Portugal.
Em 2009, outro grupo
de pesquisadores descobriu 158 esqueletos de africanos na cidade de Lagos e
estudos constataram que esses homens e mulheres sofriam de desnutrição, lesões
e abusos físicos graves.
• Uma longa história — ainda cheia de
lacunas
"A história das
populações escravizadas e dos seus descendentes em Portugal é uma história cada
vez mais conhecida, nos seus traços gerais, pelos pesquisadores", comenta
Coelho.
"No entanto, as
experiências de vida dessas pessoas estão fora das grandes narrativas que dão
corpo ao estado-nação português e à imaginação histórica da maioria dos
portugueses."
Sim, esta é uma
lacuna. Para boa parte das pessoas, a escravidão empreendida pelos portugueses
ocorreu somente nas colônias, como o Brasil.
Nas palavras de
Coelho, essa situação tem sido representada "como elementos exteriores,
que foram assimiladas ou desapareceram de todo".
"A história da
comunidade de origem africana no Vale do Sado [onde fica o monte escavado],
onde trabalhamos, de um modo geral é ainda representada dessa forma",
salienta ele.
"A arqueologia
permite que cheguemos às experiências dessas comunidades através das coisas
mais banais, perdidas ou descartadas, através das quais podemos criticamente
imaginar a gestualidade e os objetos de pessoas que viveram há centenas de
anos, nas margens, longe dos documentos escritos."
Autor do livro
'Cativos do Reino: a circulação de escravos entre Portugal e Brasil', o
historiador Renato Pinto Venancio, professor na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) ressalta à BBC News Brasil que as pesquisas arqueológicas que vem
sendo feitas "são uma contribuição importante e complementam as pesquisas
históricas".
Em artigo inédito
cedido à reportagem, o historiador Jorge Fonseca, autor do livro 'Escravos e
Senhores na Lisboa Quinhentista' enfatiza que "a escravidão, o regime mais
extremo de exploração de um ser humano, em que uma das partes, o escravo, era propriedade
da outra, o senhor, existiu em Portugal desde as épocas mais remotas, mas
intensificou-se com as viagens de comércio e conquista iniciadas no século
15".
Venancio contextualiza
bem essa situação escravista de Portugal. Uma história que começa muito antes
do chamado "tráfico negreiro".
"É preciso
lembrar que a Europa mediterrânica, na Antiguidade, foi escravista. Durante a
Idade Média, essa forma de trabalho declinou. Porém, nas regiões que hoje
correspondem a Portugal e Espanha, esse declínio foi atenuado em razão da
reconquista, ou seja, das cruzadas internas contra os árabes", conta ele.
"O Reino de
Portugal, que surge no século 12, teve a história marcada pela luta contra os
muçulmanos. Os prisioneiros dessas guerras eram escravizados", pontua.
"No século 15, essa população foi, inclusive, obrigada a ser batizada como
cristã. Nesse mesmo século, Portugal começou a construir um imenso império
colonial, que deu origem ao tráfico de escravos das regiões africanas
subsaarianas."
É aí que a escravidão
mais recente começa. "É possível afirmar que na península Ibérica houve
continuidade entre a escravidão antiga e a moderna", explica Venancio.
O tema é negligenciado
até mesmo por obras basilares, como a enciclopédia História de Portugal,
conhecida como "edição monumental", dirigida pelo historiador José
Mattoso (1933-2023) e publicada pela primeira vez no início dos anos 1990 em
oito volumes.
Nas 1060 páginas dos
dois tomos que abordam a Época Moderna, apenas cinco são dedicadas à
escravidão.
• Bobos da corte e zoológico humano
"Havia
'escravidão' mas não havia ‘sistema escravista'", diz Venancio.
"Esse último só
existe quando a escravidão é estrutural, ou seja, quando a classe dominante
precisa da escravidão para se reproduzir social e economicamente. Por isso é
possível afirmar que, entre os séculos 16 e 19, houve sistema escravista no
Brasil, mas não em Portugal."
Fonseca explica que
houve uma transformação do escravismo antigo para o africano: "a simples
pilhagem, processo medieval e guerreiro, foi substituída pelo comércio na
obtenção de escravos".
Segundo as pesquisas
de Venancio, lá a escravidão "foi de natureza doméstica, e não rural,
salvo em casos excepcionais".
"Era marcada pela
presença maior de escravas do que de escravos, um traço comum à escravidão
doméstica", ressalta.
Fonseca discorda desse
ponto. "Foram utilizados em muitas atividades econômicas [em Portugal],
desde a agricultura e a guarda de gado, ao comércio, ofícios industriais,
transportes e trabalho doméstico", diz ele.
"Os seus donos
foram, além da nobreza e do clero, agricultores, mercadores, os artesãos mais
prósperos e muitos funcionários da coroa. A corte régia e a aristocracia
empregaram-nos, além de moços de estrebaria e varredores do paço, como pajens e
músicos, em pequenas orquestras de instrumentos de sopro", descreve.
Segundo Venancio,
"muitos portugueses tinham escravos como forma de ostentação" e entre
os século 16 e 18, "os reis de Portugal tinham bobos da corte de origem
africana".
D. Manuel I
(1469-1521) chegou a dar um desses bobos da corte escravizados como presente
para o papa Leão 10 (1475-1521). Em seu texto, Fonseca conta que esse monarca
determinou, em 1512, "que todos os navios com cativos africanos só
pudessem desembarcá-los na cidade do Tejo, exceto quando o não conseguissem
fazer por razões de força maior, como intempéries".
"Quando chegavam
ao porto, os mesmos eram retirados, avaliados para que fossem cobrados a
vintena e o quarto da Coroa, e armazenados na Casa dos Escravos […]. Dela saíam
para serem vendidos no próprio local, diretamente ao público ou por meio de corretores.
Por vezes andavam em grupo, em pregão, pela cidade", relata.
Fonseca acrescenta
que, nos anos 1580, foi criado em Lisboa um órgão chamado Almoxarifado de
Escravos.
"A concentração
do comércio negreiro em Lisboa teve como consequência que a urbe se
transformasse no maior centro de tráfico e utilização de escravos do país e num
dos maiores da península Ibérica, em paralelo com Sevilha, com a qual partilhou
a metáfora do 'tabuleiro de xadrez', por nela se verem tantos habitantes negros
como brancos", escreve ele.
Ele explica, contudo,
que a proporção estava longe de ser meio a meio, mas como os viajantes vinham
de localidades em que quase não existiam negros, a presença destes lhes
destacava aos olhos.
Segundo o historiador
Mattoso, em 1551 os negros escravizados eram 10% de uma população de 100 mil
habitantes de Lisboa.
"No século 18, d.
Maria I [(1734-1816)], caracterizada pela historiografia tradicional como ‘a
piedosa’, colecionava seres humanos, africanos anões, homens e mulheres, que
serviam de bobos da corte", conta Venancio.
"Ela tinha um
pequeno zoológico de seres humanos. Lembrar isso é importante, principalmente
na época atual, quando há grupos exaltando as virtudes dos antigo regime ou das
monarquias."
• Quantidade incerta
Não é tarefa simples
chegar a um número estimado de quantos foram os escravizados africanos levados
a Portugal. Estudiosos costumam apresentar um número que vai de 350 mil a 800
mil. Em sua enciclopédia, Mattoso afirma que no século 16 chegavam de 1,6 mil a
1,7 mil por ano.
"A plataforma
SlaveVoyages, fruto da reunião de instituições de vários países, estima para o
conjunto da Europa o desembarque de entre 10 mil e 11 mil escravizados
africanos entre 1501 e 1800", diz Venancio.
Mas o próprio
pesquisador lembra que a plataforma considera apenas a relação direta
África-Europa.
"E há pesquisas
mostrando que no século 18 essa não era a principal forma de tráfico para
Portugal”, detalha. “Começava a haver o fenômeno de senhores que voltavam para
a metrópole levando consigo seus escravos domésticos."
Tamanha diferença
numérica reforça a tese de como o assunto ainda é mal-resolvido historicamente.
"Isso mostra a
necessidade de mais pesquisas. Acho 11 mil uma cifra muito baixa. Já os números
de 300 mil ou 800 mil me parecem exagerados", diz o historiador.
"Eventualmente
também levavam escravos para aprender ofícios e depois retornar ao Novo Mundo.
Então temos a questão dos escravos temporários em Portugal. Como
classificá-los: são coloniais ou metropolitanos?", pergunta Venancio.
Ele diz que também há
discrepâncias geográficas. "Quando falamos de escravidão em Portugal da
época moderna, estamos falando de Lisboa. Dependendo do período, a população
escravizada ali variou entre 5% e 10% da população total. Nas demais localidades
essa população dificilmente ultrapassava 1%. Na maioria das outras localidades,
nem existia."
Ciente do estudo
arqueológico recentemente realizado no Vale do Sado, Venancio ressaltou que
"não por acaso a região fica próxima a Lisboa".
O pesquisador conta
que arquivos antigos registraram essa presença de escravizados em Portugal. Um
exemplo são os documentos paroquiais em que certidões de batismo e óbitos
mencionavam a condição.
"Os documentos de
arquivo são resultados das atividades das instituições", comenta ele.
"Ora, na
sociedade dividida em classes sociais, o que as elites mais fazem é criar
instituições para controlar os dominados, sendo esses últimos muito bem
documentos."
• Miscigenação e racismo
Venancio conta que, ao
contrário do Brasil, Portugal não teve uma "lei áurea" para botar fim
à escravidão.
"Ela entrou em
declínio na segunda metade do século 18, após a lei proibindo o tráfico de
escravos para o solo português e por meio de uma lei do 'livre ventre', matriz
de nossa lei do ventre livre, promulgada um século mais tarde",
contextualiza.
"Não houve
decreto abolindo a escravidão em Portugal. Como não havia tráfico atlântico e
as crianças nascidas iam sendo libertadas, a escravidão foi se extinguindo
lentamente."
Ele também ressalta
que, diferentemente do que ocorreu em solo brasileiro, "não há vestígios
de quilombos em Portugal".
"Nem poderia
haver, pois lá a escravidão em momento algum foi a base do sistema
econômico", justifica ele.
"Mas havia
fugas."
No seu livro 'Cativos
do Reino' Venancio conta um pouco sobre essas peripécias.
"A malha de
sustentação dos fujões era complexa, incluindo os que preparavam a saída do
cativo da casa senhorial, os que concediam abrigo e os que forneciam alimentos
ou dinheiro a eles", explica o historiador.
"A lei também
determinava que os cristãos que colaborassem em fugas seriam degredados."
Segundo o historiador,
a principal rota de fuga era pelo mar.
"O fujão
procurava se passar por livre ou forro, se engajando no trabalho marítimo. Mas
isso era apenas um primeiro passo: à medida que eram vistos como suspeitos nos
navios mercantes, esses escravos fugiam para embarcações de corsários e
piratas."
Venancio ressalta que
"o número de africanos e descendentes de africanos nessas embarcações era
considerável".
"De certa forma,
eles foram pioneiros da globalização: nasciam em regiões da África Central, iam
parar em Lisboa como escravos e terminavam a vida como piratas em navios no
Caribe…"
Tudo indica que essa
experiência escravagista em Portugal tenha fortalecido o sentimento de racismo
de parte da sociedade.
Em conversa com a BBC
News Brasil, o historiador Francisco Bethencourt, autor do livro 'Racismos: das
Cruzadas ao Século 20' e professor do King’s College de Londres, embora o
preconceito racial seja anterior à esse fenômeno, ele "foi reforçado com o
tráfico de escravos".
De acordo com o
historiador Fonseca, há registros de que muitos ex-escravos acabaram se
fixando, no fim do século 18, "em povoados isolados, situados mais a norte
do Alentejo, no Vale do Sado, onde se reproduziram de forma endogâmica".
Exatamente onde as escavações da equipe de Coelho aconteceram.
Evidentemente que
também houve miscigenação na sociedade portuguesa, mas para o historiador,
"não dá para comparar com o que ocorreu no Brasil". "Portugal
desenvolveu uma tipologia racial própria", afirma. "Nos registros
paroquiais de Lisboa, identifiquei termos como ‘trigueiro’ e até mesmo
'embaçado'. [Mas] é preciso sublinhar que o percentual desse segmento era
pequeno."
Segundo ele, quando
houve a migração em massa de europeus ao Brasil no fim do século 19 e início do
século 20, no contexto da substituição da mão-de-obra escravizada, estudos
indicam que muitos descendentes de africanos que viviam em Lisboa se mudaram para
cá.
"Creio que a
migração em massa para o Brasil, no século 19, foi um momento importante no
apagamento da presença africana em Portugal", ressalta ele.
• Nas escolas, um tema tabu
Toda essa história
ainda fica em segundo plano nos livros escolares e no próprio imaginário comum
dos portugueses.
"Há pouca
educação em Portugal em matéria de racismo", acredita Bethencourt,
admitindo que o cenário vem mudando nos últimos anos.
"Não só os
historiadores portugueses parecem se preocupar pouco com a história da
escravidão no território europeu, o mesmo ocorre em outros países do
continente. Parece haver uma difusa consciência culpada da Europa em relação ao
seu passado", argumenta Venancio.
"É comum esquecer
que esse continente saqueou o mundo entre os século 15 e 19."
Em 2018, as
pesquisadoras Ana Paula Squinelo, Glória Solé e Isabel Barca publicaram na
revista acadêmica História & Ensino um artigo comparativo de como a
escravidão é abordada em livros didáticos portugueses e brasileiros.
"No caso de
Portugal averiguamos uma ausência do tema nos livros didáticos, seja do ponto
de vista quantitativo ou da apresentação e abordagem […]", escrevem as
pesquisadoras.
A diferença começa no
período em que o assunto é abordado — no Brasil, a escravidão é ensinada na 7ª
série, enquanto em Portugal, na 8ª.
"Vale registrar
que especificamente sobre o conceito escravidão os conteúdos [em livros
didáticos portugueses] são diminutos, esparsos e dilúidos entre as páginas
[…]", afirma o artigo. "[…] por vezes configuram-se em um, dois e/ou
três parágrafos."
As pesquisadoras
trazem um exemplo do livro 'Missão: História'.
Nele, as relações
entre portugueses e africanos são apresentadas como amistosas. Elas destacam um
trecho que aponta a "prática do comércio" como responsável pela
"fixação de alguns portugueses" no continente africano, "assim
como o tráfico de escravos levou muitos africanos para a Europa e a América
(como escravos)."
"Dessa forma
desenvolveram-se interinfluências culturais. A convivência (pacífica ou, no
caso dos escravos, imposta) entre estes povos levou à partilha de conhecimentos
e práticas, desenvolvendo-se um processo de aculturação que se fez sentir
sobretudo nos domínios da religião, da língua e da cultura", defende o
livro didático, na página 35.
Na análise de
Squinelo, Solé e Barca, "a narrativa didática em torno do conteúdo
escravidão" tende a justificar que o tráfico de escravos foi a solução
encontrada "para suprir a demanda portuguesa nas propriedades do
engenheiro açucareiro no Brasil". Esta abordagem pode ser explicada com
trecho do livro 'Viagem na História'.
"A sua produção
[da cana] exigia muita mão de obra, o que obrigou à importação de escravos
negros da costa africana para trabalharem nos engenhos", diz o texto
didático. "Iniciou-se, dessa forma, um comércio regular entre os dois
lados do Atlântico, envolvendo Portugal, a África e o Brasil, que se designa
comércio triangular."
Para as pesquisadoras,
os materiais didáticos "eximem de certa forma a responsabilidade
portuguesa no que concerne ao tráfico de escravos ao afirmar que esta já era
uma prática entre os líderes tribais".
O 'Viagem na História'
diz que "na costa africana, estabeleceram-se relações pacíficas com os
chefes locais, que favoreceram o desenvolvimento comercial e a fixação dos
portugueses, permitindo a assimilação mútua de alguns costumes".
"Cabe ressaltar
ainda que é enfatizado o 'deslocamento' do negro como se houvesse sido um
processo natural e não uma diáspora forçada da África para o Brasil",
apontam as pesquisadoras, notando que a "narrativa didática reforça ainda
que tal 'deslocamento' promoveu processos de aculturação, movimentos
interculturais e multiculturais, entre outros.
'Missão: História' usa
uma figura estereotipada do carnaval brasileiro para ilustrar o resultado das
trocas "pacíficas" que mesclaram as culturas de europeus, indígenas e
negros.
"Portugueses e
africanos mantinham, em geral, relações pacíficas, principalmente com um
caráter comercial", diz texto da página 20 de 'Viva a História'.
"Não creio que
entre a população portuguesa haja uma negação da antiga presença de
escravizados africanos em Portugal. O que existe é talvez um desconhecimento
sobre a escala dessa presença e a negação do desenvolvimento de relações
sociais no interior do país fortemente influenciadas pelo colonialismo",
comenta o arqueólogo Coelho.
"Conhecemos pouco
ainda sobre como a chegada de pessoas escravizadas, de forma tão intensa, a
partir do século 16, transformou o valor do trabalho, ajudou a consolidar o
latifúndio, e influenciou a própria formação das comunidades camponesas no sul de
Portugal", enumera.
"A dureza das
experiências de vida, mas também de luta e resistência do povo alentejano
convergem e se entrelaçam com as experiências dos ancestrais escravizados e
seus descendentes. Com este projeto queremos encorajar a sociedade a pensar
sobre isso."
"É preciso ter
cuidado na apresentação desse tema, de qualquer forma. A escravidão nunca foi a
base do sistema socioeconômico de Portugal, então há o risco de mistificações a
respeito dessa experiência histórica", relativiza Venancio.
No entanto, o
historiador argumenta que "o fato de a escravidão não ter sido
economicamente relevante em Portugal" não é motivo para "ignorar esse
fenômeno".
Ele afirma que estudos
apontam que "mesmo em situação de minorias, os africanos de Portugal,
principalmente de Lisboa, lutaram por manter suas tradições culturais e
espirituais".
E "mesmo
massacrados", eles "não desistiram de lutar por suas crenças".
"São exemplos para a humanidade e não podem ser esquecidos", ressalta
o historiador.
• Próximos passos
O arqueólogo Rui Gomes
Coelho conta que nos próximos meses todo o material coletado será analisado.
Os cientistas também
devem se ater a amostras ambientais.
"Temos duas
colegas no projeto que recolheram sedimentos no rio Sado e agora irão
analisá-los para encontrar vestígios de pólen e outros dados que nos permitam
fazer uma história ambiental da região", diz ele.
"Nós sabemos que
o colonialismo e a escravidão causaram grandes alterações ambientais por todo o
mundo. Mas como é que isso se materializou especificamente nesta região? Que
plantas desapareceram e foram introduzidas nessa época? Com que ritmo se espalharam?
Essas são questões a que estamos tentando dar resposta", explica.
O material biológico
será comparado com o encontrado em Guiné-Bissau, na África.
Fonte: BBC News Brasil
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