Como
explicar os 40 anos de existência do MST?
Reza a lenda, que após a marcha nacional realizada pelo
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em 2005 – quando 15 mil
camponeses caminharam 230 quilômetros durante quinze dias, ao saírem de Goiânia
(GO) e chegarem à Brasília –, o coronel Jarbas Passarinho comentou que apenas
duas organizações no Brasil eram capazes de organizar algo daquela magnitude: o
MST e o Exército.
Se essa história de bastidor é verdadeira ou não, pouco importa,
mas ajuda a simbolizar o significado daquele episódio. Como é possível uma
organização popular de sem terra construir uma pequena cidade itinerante com
cozinhas, banheiros, espaços para cuidar das crianças, comunicação, setor de
saúde e toda a infraestrutura envolvida para dar conta de um evento desse
tamanho ao longo de duas semanas? Não é pouca coisa. Não estamos falando de uma
mega empresa de eventos com know how no assunto e um aporte de capital
gigantesco, mas do próprio povo protagonizando e construindo esse processo.
A resposta para essa pergunta não é tão simples e nem há apenas
um elemento que a explique, mas algumas pistas podem ser encontradas no novo
dossiê “A organização política do MST, lançado pelo Instituto Tricontinental de
Pesquisa Social. O documento faz um raio-x do Movimento Sem Terra ao analisar
suas formas de organização e de luta, se debruçando em entender o que levou uma
organização de camponeses a sobreviver por quatro décadas em meio a uma
conjuntura tão desfavorável.
De fato, a vida do MST nunca foi fácil. Basta lembrarmos que em
toda a história brasileira nenhum movimento social camponês conseguiu
sobreviver por sequer uma década diante do poder político, econômico e militar
dos grandes proprietários de terra, em um país em que uma das características
mais marcantes é sua alta concentração fundiária. Mais de 40% das propriedades
agrícolas estão sob controle de menos de 1% dos proprietários, enquanto há um
contingente de 4,5 milhões de camponeses sem-terra. Essa realidade permite que
o Brasil sustente, sem muito esforço, o posto de segunda maior concentração de
terras do planeta. Tudo isso sem falar da distorção de representatividade no
Congresso Nacional, cuja bancada ruralista reúne 61% dos deputados federais e
35% dos senadores.
Vale lembrar também que o tema da reforma agrária não está mais
no centro do debate político nacional há anos, se não décadas, inclusive dentro
da própria esquerda. Sempre me recordo de uma matéria de capa da revista Istoé
de 2011, que decretava “O fim do MST”, como anunciava o título da reportagem,
ilustrada por um boné do movimento bem velho e surrado, sob terras forradas de
pedregulhos. A matéria em si era horrível, com dados falsos, premissa e
conclusões erradas, sem nenhuma base na realidade. Mas ela simbolizava um novo
momento do MST e uma mudança de postura no tratamento da imprensa com a
organização; um momento em que houve um pacto velado pelos meios de
comunicações tradicionais de silenciar a luta dos sem terra. Por mais terras
que ocupasse, por mais mobilizações e lutas que realizasse, era como se o MST
não existisse mais para eles. O objetivo dessa nova tática? Quem não é citado
não é lembrado. Se até hoje não conseguimos acabar nem criminalizar a luta
desses camponeses, melhor os deixarmos no limbo do esquecimento.
E assim foi durante todos esses últimos anos, realidade que só
começou a mudar quando o movimento buscou uma nova forma de diálogo direto com
a sociedade: as feiras da reforma agrária, com destaque à 1° Feira Nacional
realizada em 2016 em São Paulo, no Parque da Água Branca, região central da
cidade. Desde então, aos poucos, o MST voltou a ter mais visibilidade na
imprensa e, junto a isso, para o conjunto da sociedade, agora com as
“novidades” das produções dos assentamentos.
Mas embora o status do MST não estivesse tão em alta durante
esse período a olho nus, quem conhece e acompanha a luta política no seu
interior sabe a importância e o protagonismo que os sem terra sempre tiveram
nos processos de articulação, construção da unidade, análise da conjuntura e
nas mobilizações da classe trabalhadora como um todo. Na maioria das vezes em
que a classe se mobilizou de alguma maneira nas últimas décadas, lá continha o
dedinho dessa organização política que nem sempre se preocupa em deixar
registrada sua digital, por considerar que há coisas mais importantes na luta
de classes do que a vaidade.
Diante de todo esse breve cenário exposto, voltemos à pergunta
inicial. Como foi possível, não apenas sobreviver, mas ser um dos principais
protagonistas da luta social brasileira, nunca deixando de refletir e se
reinventar diante dos novos desafios colocados em cada período histórico? Há
uma palavra que não existe nos dicionários de língua portuguesa, mas que foi
gestada pela luta organizada da classe trabalhadora: organicidade, a engenharia
de combinar a participação popular com a realização de tarefas necessárias. São
esses os elementos da estrutura organizativa do movimento, trazendo seus
princípios, objetivos e as formas de luta, que respondem em grande parte à
pergunta.
A começar pelos seus três objetivos básicos que o acompanham
desde seu nascimento: luta pela terra, por reforma agrária e transformação
social. A luta pela terra é importante, mas não basta. Para que todos possam
ter um pedaço de terra é preciso mexer na histórica e secular estrutura
fundiária brasileira. No entanto, só é possível mexer nesse vespeiro por meio
de um profundo processo de transformação da sociedade como um todo.
Tampouco basta apenas organizar as famílias camponesas sem-terra
Brasil afora. Sob um pensamento neoliberal arraigado sobre a classe
trabalhadora, a chance dela conquistar seu lote e tocar sua vida após esse
feito é enorme. É preciso educar, criar consciência, identidade, dar tarefas
concretas a todos, elevar o nível de consciência das massas para que ela possa
superar o senso comum. E como fazer tudo isso? Por meio de princípios e
valores. Seja na questão da solidariedade, no fortalecimento do pensamento coletivo,
na valorização da arte e da cultura, na luta por escolas nas áreas rurais, no
pensar a infância e a juventude, no protagonismo das mulheres, no respeito à
diversidade, no debate da produção e da alimentação, na organização e na
participação de uma mobilização, de uma marcha ou de uma ocupação. Enfim, uma
série de elementos em que não é mais possível ficar estagnado no seu ser
anterior, mas que te eleva enquanto sujeito político em busca da transformação,
da justiça e da igualdade.
Em meio a tudo isso, você não apenas planta mais uma batata no
seu pedaço de terra. Você é protagonista e sujeito da transformação rumo a uma
outra sociedade e se transforma em um novo ser humano.
É essa “engenharia” e a capacidade de construir coletivamente
análises da realidade e compreender as transformações ocorridas no campo nas
últimas décadas – diante da hegemonia do agronegócio – que permitiram ao MST
formular um Programa de Reforma Agrária Popular, que aponta as contradições
desse modelo monocultor exportador baseado no uso intensivo de venenos e na
produção não alimentar, e propor sua superação por meio da democratização da
terra para a produção de alimentos e a preservação dos bens comuns da natureza
por meio de tecnologias, como a agroecologia.
O Programa de Reforma Agrária Popular é também uma resposta
àquela invisibilidade da reforma agrária no debate político nacional. O
problema agrário não foi solucionado, mas invisibilizado por falsos consensos
da mídia, academia e mesmo de forças progressistas. A mesma invisibilidade que
esse consenso impõe às contradições do agronegócio como o desmatamento,
expulsão de comunidades indígenas e quilombolas e o envenenamento do solo e das
águas.
Como disse anteriormente, não é pouca coisa. Toda essa
experiência sintetizada no dossiê do Tricontinental não tem a pretensão de
oferecer alguma fórmula mágica, claro, mas compartilha com o conjunto da classe
trabalhadora uma experiência e um acúmulo que pode servir de reflexão a outros
movimentos e organizações populares. Mesmo que o MST acabasse amanhã, é
impossível negar que se trata de uma experiência altamente bem sucedida.
Terror do
latifúndio é respondido com escalada na luta pela terra
O relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) sobre os
conflitos no campo no ano de 2023 foi publicado no último dia 21 de abril. O
número de 2.203 conflitos representa um recorde desde o fim do regime militar
em 1985. O cenário apresentado é preocupante e aponta para uma escalada na
questão da terra no País.
Com 31 assassinatos no total, os conflitos foram
majoritariamente por terra (71,8%). Eles concentraram 264 “ataques de
pistolagem”, 37 episódios de “expulsão de famílias da terra” e 101 de
“destruição de pertences”. Além disso, a CPT verificou 359 ocorrências de
“invasões às terras” dos camponeses, 37 “destruições de casa” e 66 de
“roçados”.
Num total de 31 assassinatos, foram assassinados 14 indígenas, 9
camponeses sem terra, 4 posseiros, 3 quilombolas e 1 funcionário público. A CPT
alerta que, embora tenha sido registrado uma queda de 34% na taxa de
assassinatos no País como um todo, o número de mortes no conflito pela terra se
manteve igual na Amazônia Ocidental (Amazonas, Acre e Rondônia). A região é
caracterizada pelo relatório como “um epicentro de grilagem”.
Ao longo dos últimos anos, tiveram destaque nas páginas do AND a
atuação de latifundiários ladrões de terras públicas (da União). Utilizando
grupos paramilitares, muitas vezes com participação de agentes públicos, o
latifúndio não tem sido capaz de expulsar as famílias das terras, mesmo com
todo o terror latifundista que impera no campo desde o governo militar genocida
de Jair Bolsonaro. No final de 2022, foi desarticulada uma tropa mercenária que
reunia agentes públicos (como policiais militares, policiais civis e delegados
da Polícia Civil) e pistoleiros numa atuação dirigida pelas Forças Armadas
reacionárias que combinava o uso de forças policiais e forças paramilitares no
objetivo, fracassado, de expulsar famílias camponesas organizadas pela Liga dos
Camponeses Pobres. As famílias camponesas de Rondônia prosseguem nas terras,
denunciando a atuação criminosa do latifúndio.
• Relatório indica
recorde em conflitos
O número de 2.203 casos reunidos no Relatório da CPT é o maior
desde o início dos levantamentos feitos pela organização. Desde 1985, o País
assistiu aos sangrentos anos de 1995, ano da Batalha de Corumbiara (em
Rondônia), e também ao de 1997, ano do Massacre de Eldorado dos Carajás (no
Pará). A continuidade do terror reacionário promovido pelo latifúndio é sinal
de que a questão da terra é urgente. Ela está assim retratada:
A região Norte lidera com 810 conflitos. Nordeste é a segunda,
com 665. Centro-Oeste (353), Sudeste (207) e Sul (168) completam a lista.
Já entre os estados, o primeiro colocado é a Bahia, com 202
casos. Seguido por Pará (183), Maranhão (171) e Rondônia (162).
A Bahia, governada por Jerônimo Rodrigues (PT), foi palco de uma
imensa mobilização de camponeses nos primeiros meses de 2023. Entre 30 de
janeiro até 1º de março de 2023, somente no estado da Bahia, ao menos 9,5 mil
camponeses se mobilizaram através de manifestações, ocupações de terra e
ocupações de sedes das instituições do velho Estado. Em resposta,
latifundiários assassinaram Maria Bernadete Pacífico, a “Mãe Bernardete”, uma
importante liderança quilombola, em Salvador no dia 17 de agosto de 2023, num crime
que enche o ranking macabro. Seguindo a lista de crimes do latifúndio, já no
ano de 2024, o movimento paramilitar “Invasão Zero” promoveu um ataque contra a
Terra Indígena Caramuru-Catarina em fevereiro contra o povo Pataxó Hã Hã Hãe,
que resultou no assassinato de Nega Pataxó.
Já no Maranhão, mesmo diante de um elevado nível de ataques de
grupos paramilitares ligados ao latifúndio, se destaca a luta dos camponeses e
quilombolas. No ano de 2024, ocorreu o “Tribunal Popular contra a grilagem e os
crimes do latifúndio”, demonstrando que, por mais que cresçam os ataques do
latifúndio, a força do povo e sua capacidade de respondê-los, é ainda maior.
No total, os conflitos mobilizaram 950 mil pessoas em 2023. A
imensa maioria é de camponeses pobres, com pouca terra ou sem terra alguma, que
veêm na conquista da terra a única solução para seus problemas.
• Guerra pela terra
já é realidade
Ao longo dos primeiros meses de 2024, já é possível observar o
crescimento, por todo o país, de ocupações de terra. Dentre as que se destacam
está a iniciativa “Abril Vermelho”, que mobilizou milhares de camponeses a
partir da segunda semana do mês, e também a continuidade do Acampamento Mãe
Bernardete, justamente no estado que concentrou o maior número de casos de
conflitos. Esta última, em 22 de abril, foi alvo de um atentado político por
parte de latifundiários que queimaram pertences e utensílios dos camponeses. Ao
denunciar o ataque, uma integrante do Acampamento destacou que “a raiva é
porque a gente quer trabalhar”, destacando que o Corte Popular, realizado após
a ocupação, entregou terra às centenas de famílias que hoje têm uma terra para
viver e trabalhar.
No mesmo sentido já apontava a Comissão Nacional das Ligas dos
Camponeses Pobres, quando, em meio à “CPI do MST” onde os deputados de
extrema-direita defendiam politicamente a ofensiva do latifúndio:
“Da histeria das palavras aos fatos, o latifúndio e a
extrema-direita reacionária, armados até os dentes pelo genocida Bolsonaro e
seus generais, sempre em conluio com os policiais militares e civis assassinos,
com farda ou atuando como seguranças privados e pistoleiros, atacaram em
diversas partes do país camponeses em luta pela terra.”
E desde aquela época, a Comissão Nacional da LCP lançou um
importante chamado:
“Nós conclamamos e exortamos os camponeses a armarem as
organizações de autodefesa da luta pela terra na mesma proporção e calibre!“
• No Maranhão,
camponeses denunciam e enfrentam crimes do latifúndio
Em menos de cinco dias, duas comunidades camponesas foram alvos
de ataques do latifúndio no Maranhão: no dia 19 de abril, o quilombo Onça foi
atacado por pistoleiros, enquanto no dia 14 de abril uma casa da comunidade São
Benedito foi destruída pelos capangas dos latifundiários.
• Ataques a tiros no
Quilombo Onça
O Quilombo Onça fica localizado no município de Santa Inês. Os
pistoleiros dispararam contra a comunidade e ameaçaram voltar durante a
madrugada para mais agressões.
Ameaças e intimidações têm se tornado cada vez mais frequentes
no local desde o aparecimento de um fazendeiro conhecido como Franciano
Oliveira Sousa, que diz ter adquirido terras na região
Neste mesmo mês, no dia 11/4, Raimundo Nonato Lima Nascimento,
uma das lideranças do quilombo Onça, foi entrevistado pela Agência Tambor a
respeito da onda de violência promovida pelo latifúndio. Segundo a liderança,
além da ameaça constante à integridade física dos moradores, já que os
pistoleiros rondam o território armados e encapuzados, há também a destruição
sistemática das roças.
Em setembro de 2022, foi registrado também o desmatamento ilegal
de mais de 1km de vegetação nativa (especialmente babaçu), a mando do mesmo
Franciano, para se apossar daquelas terras. Nos dias seguintes à derrubada,
foram cercadas áreas pertencentes ao quilombo.
• Casa incendiada em
São Benedito
Já no dia 14/4, a comunidade São Benedito, localizada em São
Bernardo, enfrentou mais um ataque covarde no dia 14 de abril.
Por volta das 7 horas da manhã, jagunços a mando de grileiros
destruíram a casa de um morador. Tais ações de intimidação são recorrentes, e
vêm acompanhadas de ameaças de morte, ao desmatamento e à destruição e incêndio
das plantações e das casas
A comunidade tem mais de 200 anos de existência, e seus
moradores fazem parte da Associação dos Lavradores da Gleba Mata Velha Data
Gengibre de Coqueiro e São Benedito, que engloba cerca de 73 famílias que tiram
o seu sustento da área, dificultado pela constante ameaça da destruição de suas
casas, além das ameaças aos próprios moradores.
“Não podemos ir para as nossas roças em paz. Sempre tem que
ficar alguém para vigiar nossas casas”, relata um morador em vídeo publicado no
Instagram do COMSOLUTE (Comitê de Solidariedade à Luta pela Terra).
Fonte: Por Ronaldo Pagotto, no Le Monde/A Nova Democracia
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