sexta-feira, 26 de abril de 2024

Como explicar os 40 anos de existência do MST?

Reza a lenda, que após a marcha nacional realizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em 2005 – quando 15 mil camponeses caminharam 230 quilômetros durante quinze dias, ao saírem de Goiânia (GO) e chegarem à Brasília –, o coronel Jarbas Passarinho comentou que apenas duas organizações no Brasil eram capazes de organizar algo daquela magnitude: o MST e o Exército.

Se essa história de bastidor é verdadeira ou não, pouco importa, mas ajuda a simbolizar o significado daquele episódio. Como é possível uma organização popular de sem terra construir uma pequena cidade itinerante com cozinhas, banheiros, espaços para cuidar das crianças, comunicação, setor de saúde e toda a infraestrutura envolvida para dar conta de um evento desse tamanho ao longo de duas semanas? Não é pouca coisa. Não estamos falando de uma mega empresa de eventos com know how no assunto e um aporte de capital gigantesco, mas do próprio povo protagonizando e construindo esse processo.

A resposta para essa pergunta não é tão simples e nem há apenas um elemento que a explique, mas algumas pistas podem ser encontradas no novo dossiê “A organização política do MST, lançado pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. O documento faz um raio-x do Movimento Sem Terra ao analisar suas formas de organização e de luta, se debruçando em entender o que levou uma organização de camponeses a sobreviver por quatro décadas em meio a uma conjuntura tão desfavorável.

De fato, a vida do MST nunca foi fácil. Basta lembrarmos que em toda a história brasileira nenhum movimento social camponês conseguiu sobreviver por sequer uma década diante do poder político, econômico e militar dos grandes proprietários de terra, em um país em que uma das características mais marcantes é sua alta concentração fundiária. Mais de 40% das propriedades agrícolas estão sob controle de menos de 1% dos proprietários, enquanto há um contingente de 4,5 milhões de camponeses sem-terra. Essa realidade permite que o Brasil sustente, sem muito esforço, o posto de segunda maior concentração de terras do planeta. Tudo isso sem falar da distorção de representatividade no Congresso Nacional, cuja bancada ruralista reúne 61% dos deputados federais e 35% dos senadores.

Vale lembrar também que o tema da reforma agrária não está mais no centro do debate político nacional há anos, se não décadas, inclusive dentro da própria esquerda. Sempre me recordo de uma matéria de capa da revista Istoé de 2011, que decretava “O fim do MST”, como anunciava o título da reportagem, ilustrada por um boné do movimento bem velho e surrado, sob terras forradas de pedregulhos. A matéria em si era horrível, com dados falsos, premissa e conclusões erradas, sem nenhuma base na realidade. Mas ela simbolizava um novo momento do MST e uma mudança de postura no tratamento da imprensa com a organização; um momento em que houve um pacto velado pelos meios de comunicações tradicionais de silenciar a luta dos sem terra. Por mais terras que ocupasse, por mais mobilizações e lutas que realizasse, era como se o MST não existisse mais para eles. O objetivo dessa nova tática? Quem não é citado não é lembrado. Se até hoje não conseguimos acabar nem criminalizar a luta desses camponeses, melhor os deixarmos no limbo do esquecimento.

E assim foi durante todos esses últimos anos, realidade que só começou a mudar quando o movimento buscou uma nova forma de diálogo direto com a sociedade: as feiras da reforma agrária, com destaque à 1° Feira Nacional realizada em 2016 em São Paulo, no Parque da Água Branca, região central da cidade. Desde então, aos poucos, o MST voltou a ter mais visibilidade na imprensa e, junto a isso, para o conjunto da sociedade, agora com as “novidades” das produções dos assentamentos.

Mas embora o status do MST não estivesse tão em alta durante esse período a olho nus, quem conhece e acompanha a luta política no seu interior sabe a importância e o protagonismo que os sem terra sempre tiveram nos processos de articulação, construção da unidade, análise da conjuntura e nas mobilizações da classe trabalhadora como um todo. Na maioria das vezes em que a classe se mobilizou de alguma maneira nas últimas décadas, lá continha o dedinho dessa organização política que nem sempre se preocupa em deixar registrada sua digital, por considerar que há coisas mais importantes na luta de classes do que a vaidade.

Diante de todo esse breve cenário exposto, voltemos à pergunta inicial. Como foi possível, não apenas sobreviver, mas ser um dos principais protagonistas da luta social brasileira, nunca deixando de refletir e se reinventar diante dos novos desafios colocados em cada período histórico? Há uma palavra que não existe nos dicionários de língua portuguesa, mas que foi gestada pela luta organizada da classe trabalhadora: organicidade, a engenharia de combinar a participação popular com a realização de tarefas necessárias. São esses os elementos da estrutura organizativa do movimento, trazendo seus princípios, objetivos e as formas de luta, que respondem em grande parte à pergunta.

A começar pelos seus três objetivos básicos que o acompanham desde seu nascimento: luta pela terra, por reforma agrária e transformação social. A luta pela terra é importante, mas não basta. Para que todos possam ter um pedaço de terra é preciso mexer na histórica e secular estrutura fundiária brasileira. No entanto, só é possível mexer nesse vespeiro por meio de um profundo processo de transformação da sociedade como um todo.

Tampouco basta apenas organizar as famílias camponesas sem-terra Brasil afora. Sob um pensamento neoliberal arraigado sobre a classe trabalhadora, a chance dela conquistar seu lote e tocar sua vida após esse feito é enorme. É preciso educar, criar consciência, identidade, dar tarefas concretas a todos, elevar o nível de consciência das massas para que ela possa superar o senso comum. E como fazer tudo isso? Por meio de princípios e valores. Seja na questão da solidariedade, no fortalecimento do pensamento coletivo, na valorização da arte e da cultura, na luta por escolas nas áreas rurais, no pensar a infância e a juventude, no protagonismo das mulheres, no respeito à diversidade, no debate da produção e da alimentação, na organização e na participação de uma mobilização, de uma marcha ou de uma ocupação. Enfim, uma série de elementos em que não é mais possível ficar estagnado no seu ser anterior, mas que te eleva enquanto sujeito político em busca da transformação, da justiça e da igualdade.

Em meio a tudo isso, você não apenas planta mais uma batata no seu pedaço de terra. Você é protagonista e sujeito da transformação rumo a uma outra sociedade e se transforma em um novo ser humano.

É essa “engenharia” e a capacidade de construir coletivamente análises da realidade e compreender as transformações ocorridas no campo nas últimas décadas – diante da hegemonia do agronegócio – que permitiram ao MST formular um Programa de Reforma Agrária Popular, que aponta as contradições desse modelo monocultor exportador baseado no uso intensivo de venenos e na produção não alimentar, e propor sua superação por meio da democratização da terra para a produção de alimentos e a preservação dos bens comuns da natureza por meio de tecnologias, como a agroecologia.

O Programa de Reforma Agrária Popular é também uma resposta àquela invisibilidade da reforma agrária no debate político nacional. O problema agrário não foi solucionado, mas invisibilizado por falsos consensos da mídia, academia e mesmo de forças progressistas. A mesma invisibilidade que esse consenso impõe às contradições do agronegócio como o desmatamento, expulsão de comunidades indígenas e quilombolas e o envenenamento do solo e das águas.

Como disse anteriormente, não é pouca coisa. Toda essa experiência sintetizada no dossiê do Tricontinental não tem a pretensão de oferecer alguma fórmula mágica, claro, mas compartilha com o conjunto da classe trabalhadora uma experiência e um acúmulo que pode servir de reflexão a outros movimentos e organizações populares. Mesmo que o MST acabasse amanhã, é impossível negar que se trata de uma experiência altamente bem sucedida.

 

       Terror do latifúndio é respondido com escalada na luta pela terra

 

O relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) sobre os conflitos no campo no ano de 2023 foi publicado no último dia 21 de abril. O número de 2.203 conflitos representa um recorde desde o fim do regime militar em 1985. O cenário apresentado é preocupante e aponta para uma escalada na questão da terra no País.

Com 31 assassinatos no total, os conflitos foram majoritariamente por terra (71,8%). Eles concentraram 264 “ataques de pistolagem”, 37 episódios de “expulsão de famílias da terra” e 101 de “destruição de pertences”. Além disso, a CPT verificou 359 ocorrências de “invasões às terras” dos camponeses, 37 “destruições de casa” e 66 de “roçados”.

Num total de 31 assassinatos, foram assassinados 14 indígenas, 9 camponeses sem terra, 4 posseiros, 3 quilombolas e 1 funcionário público. A CPT alerta que, embora tenha sido registrado uma queda de 34% na taxa de assassinatos no País como um todo, o número de mortes no conflito pela terra se manteve igual na Amazônia Ocidental (Amazonas, Acre e Rondônia). A região é caracterizada pelo relatório como “um epicentro de grilagem”.

Ao longo dos últimos anos, tiveram destaque nas páginas do AND a atuação de latifundiários ladrões de terras públicas (da União). Utilizando grupos paramilitares, muitas vezes com participação de agentes públicos, o latifúndio não tem sido capaz de expulsar as famílias das terras, mesmo com todo o terror latifundista que impera no campo desde o governo militar genocida de Jair Bolsonaro. No final de 2022, foi desarticulada uma tropa mercenária que reunia agentes públicos (como policiais militares, policiais civis e delegados da Polícia Civil) e pistoleiros numa atuação dirigida pelas Forças Armadas reacionárias que combinava o uso de forças policiais e forças paramilitares no objetivo, fracassado, de expulsar famílias camponesas organizadas pela Liga dos Camponeses Pobres. As famílias camponesas de Rondônia prosseguem nas terras, denunciando a atuação criminosa do latifúndio.

•        Relatório indica recorde em conflitos

O número de 2.203 casos reunidos no Relatório da CPT é o maior desde o início dos levantamentos feitos pela organização. Desde 1985, o País assistiu aos sangrentos anos de 1995, ano da Batalha de Corumbiara (em Rondônia), e também ao de 1997, ano do Massacre de Eldorado dos Carajás (no Pará). A continuidade do terror reacionário promovido pelo latifúndio é sinal de que a questão da terra é urgente. Ela está assim retratada:

A região Norte lidera com 810 conflitos. Nordeste é a segunda, com 665. Centro-Oeste (353), Sudeste (207) e Sul (168) completam a lista.

Já entre os estados, o primeiro colocado é a Bahia, com 202 casos. Seguido por Pará (183), Maranhão (171) e Rondônia (162).

A Bahia, governada por Jerônimo Rodrigues (PT), foi palco de uma imensa mobilização de camponeses nos primeiros meses de 2023. Entre 30 de janeiro até 1º de março de 2023, somente no estado da Bahia, ao menos 9,5 mil camponeses se mobilizaram através de manifestações, ocupações de terra e ocupações de sedes das instituições do velho Estado. Em resposta, latifundiários assassinaram Maria Bernadete Pacífico, a “Mãe Bernardete”, uma importante liderança quilombola, em Salvador no dia 17 de agosto de 2023, num crime que enche o ranking macabro. Seguindo a lista de crimes do latifúndio, já no ano de 2024, o movimento paramilitar “Invasão Zero” promoveu um ataque contra a Terra Indígena Caramuru-Catarina em fevereiro contra o povo Pataxó Hã Hã Hãe, que resultou no assassinato de Nega Pataxó.

Já no Maranhão, mesmo diante de um elevado nível de ataques de grupos paramilitares ligados ao latifúndio, se destaca a luta dos camponeses e quilombolas. No ano de 2024, ocorreu o “Tribunal Popular contra a grilagem e os crimes do latifúndio”, demonstrando que, por mais que cresçam os ataques do latifúndio, a força do povo e sua capacidade de respondê-los, é ainda maior.

No total, os conflitos mobilizaram 950 mil pessoas em 2023. A imensa maioria é de camponeses pobres, com pouca terra ou sem terra alguma, que veêm na conquista da terra a única solução para seus problemas.

•        Guerra pela terra já é realidade

Ao longo dos primeiros meses de 2024, já é possível observar o crescimento, por todo o país, de ocupações de terra. Dentre as que se destacam está a iniciativa “Abril Vermelho”, que mobilizou milhares de camponeses a partir da segunda semana do mês, e também a continuidade do Acampamento Mãe Bernardete, justamente no estado que concentrou o maior número de casos de conflitos. Esta última, em 22 de abril, foi alvo de um atentado político por parte de latifundiários que queimaram pertences e utensílios dos camponeses. Ao denunciar o ataque, uma integrante do Acampamento destacou que “a raiva é porque a gente quer trabalhar”, destacando que o Corte Popular, realizado após a ocupação, entregou terra às centenas de famílias que hoje têm uma terra para viver e trabalhar.

No mesmo sentido já apontava a Comissão Nacional das Ligas dos Camponeses Pobres, quando, em meio à “CPI do MST” onde os deputados de extrema-direita defendiam politicamente a ofensiva do latifúndio:

“Da histeria das palavras aos fatos, o latifúndio e a extrema-direita reacionária, armados até os dentes pelo genocida Bolsonaro e seus generais, sempre em conluio com os policiais militares e civis assassinos, com farda ou atuando como seguranças privados e pistoleiros, atacaram em diversas partes do país camponeses em luta pela terra.”

E desde aquela época, a Comissão Nacional da LCP lançou um importante chamado:

“Nós conclamamos e exortamos os camponeses a armarem as organizações de autodefesa da luta pela terra na mesma proporção e calibre!“

•        No Maranhão, camponeses denunciam e enfrentam crimes do latifúndio

Em menos de cinco dias, duas comunidades camponesas foram alvos de ataques do latifúndio no Maranhão: no dia 19 de abril, o quilombo Onça foi atacado por pistoleiros, enquanto no dia 14 de abril uma casa da comunidade São Benedito foi destruída pelos capangas dos latifundiários.

•        Ataques a tiros no Quilombo Onça

O Quilombo Onça fica localizado no município de Santa Inês. Os pistoleiros dispararam contra a comunidade e ameaçaram voltar durante a madrugada para mais agressões.

Ameaças e intimidações têm se tornado cada vez mais frequentes no local desde o aparecimento de um fazendeiro conhecido como Franciano Oliveira Sousa, que diz ter adquirido terras na região

Neste mesmo mês, no dia 11/4, Raimundo Nonato Lima Nascimento, uma das lideranças do quilombo Onça, foi entrevistado pela Agência Tambor a respeito da onda de violência promovida pelo latifúndio. Segundo a liderança, além da ameaça constante à integridade física dos moradores, já que os pistoleiros rondam o território armados e encapuzados, há também a destruição sistemática das roças.

Em setembro de 2022, foi registrado também o desmatamento ilegal de mais de 1km de vegetação nativa (especialmente babaçu), a mando do mesmo Franciano, para se apossar daquelas terras. Nos dias seguintes à derrubada, foram cercadas áreas pertencentes ao quilombo. 

•        Casa incendiada em São Benedito

Já no dia 14/4, a comunidade São Benedito, localizada em São Bernardo, enfrentou mais um ataque covarde no dia 14 de abril.

Por volta das 7 horas da manhã, jagunços a mando de grileiros destruíram a casa de um morador. Tais ações de intimidação são recorrentes, e vêm acompanhadas de ameaças de morte, ao desmatamento e à destruição e incêndio das plantações e das casas

A comunidade tem mais de 200 anos de existência, e seus moradores fazem parte da Associação dos Lavradores da Gleba Mata Velha Data Gengibre de Coqueiro e São Benedito, que engloba cerca de 73 famílias que tiram o seu sustento da área, dificultado pela constante ameaça da destruição de suas casas, além das ameaças aos próprios moradores.

“Não podemos ir para as nossas roças em paz. Sempre tem que ficar alguém para vigiar nossas casas”, relata um morador em vídeo publicado no Instagram do COMSOLUTE (Comitê de Solidariedade à Luta pela Terra).

 

Fonte: Por Ronaldo Pagotto, no Le Monde/A Nova Democracia

 

Nenhum comentário: