Assédio judicial
atenta contra a liberdade de expressão e o direito à informação
O
exercício arbitrário do poder, por autoridades públicas ou por particulares, só
se sustenta no longo do tempo se for capaz de silenciar a crítica pública. No
Brasil contemporâneo, esse silenciamento tem sido buscado por diversos meios.
Um é o ajuizamento de múltiplas ações de reparações de danos, com o mesmo
objeto e contra o mesmo jornalista ou órgão de imprensa, com o propósito de
lhes impor constrição econômica e de dificultar o exercício do direito de
defesa.
No
Brasil, tem se tornado cada vez mais comum que ações judiciais sejam ajuizadas,
mesmo que de antemão saiba-se que sem a probabilidade da procedência do pedido,
para intimidar jornalistas e órgãos de imprensa, os quais muitas vezes não
reúnem condições concretas para arcar com os custos dos processos e demais ônus
associados ao exercício do direito de defesa. Essa prática pode ser
caracterizada como “assédio judicial” ou “assédio processual”, a qual se insere
no que se tem denominado “Slapp = Strategic Lawsuit Against Public
Participation” .
Em
vários países, o ordenamento jurídico já prevê instrumentos para coibi-la. Em
alguns estados norte-americanos, por exemplo, há extensa legislação antislapp,
contendo inúmeras medidas para se evitar que empresas ou pessoas poderosas
inibam a atuação crítica de jornalistas. Em Nova York, por exemplo, a
legislação prevê o pagamento não só de custas e honorários sucumbenciais aos
réus que foram vítimas de Slapp (N.Y. Civ. Law § 70-a[a]), mas também de “danos
compensatórios”, sempre que se prove que a ação foi proposta com o objetivo de
“assediar, intimidar, punir ou inibir maliciosamente os direitos de expressão,
petição ou associação” (N.Y. Civ. Law § 70-a[a]).
• Indenização
e o entendimento do STJ
A
fixação de indenização pela prática de assédio judicial contra a liberdade de
expressão é importante elemento de proteção de jornalistas e órgãos de
imprensa, acuados por agentes dotados de grande poder econômico e social.
Trata-se de medida que não é estranha ao Direito brasileiro, como se constata
da leitura do precedente que se segue (não concernente à liberdade de
expressão), do acervo jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça:
“(…)
4- Embora não seja da tradição do direito processual civil brasileiro, é
admissível o reconhecimento da existência do ato ilícito de abuso processual,
tais como o abuso do direito fundamental de ação ou de defesa, não apenas em
hipóteses previamente tipificadas na legislação, mas também quando configurada
a má utilização dos direitos fundamentais processuais. 5- O ardil, não raro, é
camuflado e obscuro, de modo a embaralhar as vistas de quem precisa
encontrá-lo. O chicaneiro nunca se apresenta como tal, mas, ao revés, age
alegadamente sob o manto dos princípios mais caros, como o acesso à justiça, o
devido processo legal e a ampla defesa, para cometer e ocultar as suas vilezas.
O abuso se configura não pelo que se revela, mas pelo que se esconde. Por esses
motivos, é preciso repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do
próprio direito, não para frustrar o regular exercício dos direitos
fundamentais pelo litigante sério e probo, mas para refrear aqueles que abusam
dos direitos fundamentais por mero capricho, por espírito emulativo, por dolo
ou que, em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas
frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo ao nobre albergue
do direito fundamental de acesso à justiça. (…)” (RE nº 1.817.845 – MS, el. p.
acórdão min. Nancy Andrighi, J. 10 de outubro de 2019).
• O
assédio judicial a Elvira Lobato
Em
nosso país, uma das principais formas de assédio judicial para intimidar
jornalistas é o ajuizamento de ações repetidas em grande número, o que os
obriga a reunir todos os seus recursos financeiros e conjugar seus melhores
esforços para se defender efetivamente nos processos, afastando-se de sua
atividade-fim. O jornalista, ao invés de se dedicar as suas relevantes
atribuições, passa a peregrinar de cidade em cidade para participar de
audiências e se vê no apuro de ter de contratar vários advogados.
Um
dos casos exemplares de assédio judicial ocorreu quando a jornalista Elvira
Lobato, em 2007, publicou reportagem, no jornal Folha de S.Paulo, sobre o
crescimento dos negócios de determinada Igreja neopentecostal. Pela matéria, a
jornalista ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo em 2008. Mas o amplo
reconhecimento da comunidade não a protegeu.
Em
retaliação, a Igreja organizou ofensiva judicial contra Lobato, que se viu
instada a responder a 111 ações requerendo o ressarcimento de dano moral,
ajuizadas em diferentes estados da federação. Sua vitória em todas as ações
evidencia que aqueles desideratos não se deram com o objetivo de obter a
reparação de supostos danos, mas com o de fazer com que a jornalista se
onerasse cuidando das defesas. Seu depoimento sobre o episódio é eloquente:
“(…)
Quando
as ações começaram, para nossa completa surpresa, eu me senti sem condição de
continuar cobrindo a Igreja Universal do Reino de Deus. Não que houvesse alguma
ordem judicial, mas porque eu achava que havia perdido a coisa mais importante
que um jornalista deve ter: a imparcialidade, a isenção. Se havia 111 ações
contra mim, eu não era mais imparcial nos assuntos da igreja. Com isso, ela me
neutralizou completamente.
(…)
Pesou
muito também saber que eu estava causando um gasto tão alto para a empresa. O
Jornal teve custos altíssimos. Tinha que ficar deslocando repórteres para me
representar. Eram ações simultâneas. Tinha audiências simultâneas, no Sul, no
Sudeste, no Norte. Impossível de uma pessoa se defender. Era uma coisa grande
demais, violente demais.
(…)
Era
um atentado, de fato, contra a imprensa, contra o jornalista, contra a
liberdade de expressão”.
• Assédio
a jornalistas no Paraná
Outra
peripécia com destaque nacional, ocorrido em 2016, atingiu cinco profissionais
da Gazeta do Povo do Paraná, que se tornaram réus em 47 ações propostas
individualmente por juízes e promotores atuantes naquele ente federado.
O
órgão de imprensa, com base na Lei de Acesso à Informação, havia obtido
informações sobre as remunerações dos magistrados e, por entender que
superavam, em diversas vezes, o teto constitucional, publicou matéria de teor
crítico, revelando os valores auferidos.
Os
jornalistas e o órgão de imprensa foram, tal-qualmente Eliza Lobato forçados a
percorrer dezenas de comarcas do interior para responder às ações, nada
obstante tivessem se limitado a divulgar informações públicas. A ministra Rosa
Weber, providencialmente, suspendeu os processos por intermédio da decisão que
se segue:
(…)
12. Considerado o número de demandas já ajuizadas, que ultrapassa quarenta,
espalhadas por dezenove cidades do Paraná, e tendo em vista o teor do áudio
acima mencionado, não se pode afastar o risco de dano, decorrente do comprometimento,
cada vez maior, do pleno exercício do direito de defesa nas ações em trâmite,
que se diz efetuado com grave prejuízo financeiro e pessoal dos reclamantes,
compelidos a se deslocar por todo o Estado para comparecimento em audiências.
13. Ante o exposto, (…) concedo a medida acauteladora para o fim suspender os
efeitos da decisão reclamada, bem como o trâmite das ações de indenizações
propostas em decorrência da matéria jornalística e coluna opinativa apontadas
pelos reclamantes, até o julgamento do mérito desta reclamação. (…) (Rcl 23899
Agr, rel. min. Rosa Weber, DJ 01.08.2016).
A
propósito desse acontecido, Artur Romeu, representante de Repórteres Sem
Fronteiras no Brasil, advertia: “As ações em grande número, com origem em
diversos pontos do estado, obrigam os profissionais a fazerem deslocamentos
constantes, inviabilizando o trabalho dos jornalistas e gerando grandes custos
para o jornal”.
Segundo
ele, “O abuso do direito legítimo à reparação judicial pode rapidamente assumir
contornos de represália e censura, em especial vindo de autoridades públicas.
Fica realmente a impressão, nesse caso, de que os processos fazem parte de uma
ação coordenada em retaliação à reportagem, o que tem definitivamente um efeito
negativo sobre a liberdade de imprensa no país”.
• Caso
Ricardo Sennes
Um
terceiro que se pode tomar como exemplo, dentre dezenas de outros, é o do
comentarista de TV Ricardo Sennes que, após fazer comentários públicos sobre os
caçadores, os atiradores e os colecionadores de armas (CACs) se tornou réu em
67 processos, propostos em 35 cidades diferentes. O juiz de Direito Roberto
Chiminazzo Júnior, titular da 2ª Vara do Juizado Especial Civil, incumbido de
julgar um dos processos (processo 1014012-53.2020.8.26.0114), ao proferir
sentença de improcedência, condenou o autor por litigância de má-fé,
considerando a prática de “assédio judicial”:
“Comprovado,
como já destacado acima, que o autor utilizou-se do Judiciário para fins
ilícitos (constranger e causar desconforto ao réu) por discordar de seu ponto
de vista, ciente da completa falta de fundamento de sua pretensão, sendo
noticiado pelo réu, inclusive o declarado intuito do grupo no mesmo sentido,
tendo sido ajuizadas pelo menos 65 outras ações iguais a esta, em verdadeira
campanha de ‘assédio judicial’, conforme demonstrado pelos documentos que
acompanham a defesa, caracterizada a litigância de má-fé por parte do autor,
nos termos do art. 80, III do CPC.”
• ADI
6.792
Para
se evitar a perpetuação dessa modalidade de ataque à imprensa, a ABI propôs
ação ao STF (ADI 6.792) em que requer que realize interpretação conforme a
Constituição dos artigos 79, 80 e 81 do Código de Processo Civil, de modo a
estabelecer a interpretação segundo a qual o ingresso de múltiplas ações com o
objetivo de intimidar jornalistas e órgãos de imprensa é conduta ilegítima,
caracterizada como litigância de má-fé, passível de gerar o dever de indenizar
a vítima. A circunstância se subsome, em especial, à prevista no artigo 80,
III: o processo judicial foi empregado para alcançar a finalidade ilícita de
cercear o debate público, furtar ao conhecimento da opinião pública fatos de
interesse jornalístico; calar a imprensa.
Diante
da litigância de má-fé, além de condenar os autores ao pagamento de ônus
sucumbenciais (custas e honorários), o Judiciário deverá condená-los também ao
ressarcimento dos danos materiais e morais sofridos pelo jornalista e pelos
órgãos de imprensa, bem como ao pagamento de multa, fixada nos termos do artigo
81 .
• Direito
à informação e a liberdade de expressão
O
assédio judicial, porém, não atenta apenas contra os direitos individuais do
jornalista e dos órgãos de imprensa. Atenta igualmente contra o direito à
informação e a liberdade de expressão, titularizados difusamente por toda a
sociedade. Empresas e agentes públicos que retaliam jornalistas despertam nos
demais profissionais e órgãos de imprensa o receio de serem identicamente
vítimas de assédio judicial.
Com
isso, não se limitam a inviabilizar o trabalho do jornalista processado. Para
se prevenirem contra a crítica pública, produzem efeito resfriador sobre o
debate público, com o que conseguem continuar a se conduzirem em desacordo com
o direito e a ética. Em excerto do voto do Justice William J. Brennan Jr, no
processo New York Times Co. v. Sullivan (376 U.S. 254 [1964]), lê-se importante
advertência:
“O
medo de indenizações sob uma regra como a invocada pelos tribunais do Alabama
pode ser muito mais inibidor do que o medo de um processo criminal. […] Quer um
jornal possa sobreviver ou não a uma sucessão de tais julgamentos, a mortalha
de medo e timidez imposta àqueles que dariam voz à crítica pública é uma
atmosfera na qual as liberdades da Primeira Emenda não podem sobreviver” .
O
dano produzido por esses processos transcende, em muito, o que alcança o
jornalista diretamente afetado. Toda a sociedade é atingida em seu direito à
informação, e todos os jornalistas e órgãos de imprensa arrefecem às suas
críticas, sob a ameaça de terem sua atividade inviabilizada.
• Dano
moral coletivo
Por
isso, a sociedade faz jus ao ressarcimento de dano moral coletivo, o que deverá
ser alcançado por intermédio do ajuizamento de ação coletiva pelo Ministério
Público ou por associações representativas da sociedade civil.
Convém,
a propósito, mencionar o que decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos
no caso “A última tentação de Cristo v. Chile”, segundo a qual a liberdade de
expressão “requer, por um lado, que ninguém seja arbitrariamente menoscabado ou
impedido de manifestar seu próprio pensamento, o que consubstancia direito de
cada indivíduo; mas implica também, por outro lado, um direito coletivo a
receber informações e a conhecer o pensamento alheio”.
O
emprego dos institutos acima exerce poder dissuasório e serve à reparação dos
danos já sofridos. Porém, ainda é insuficiente para impedir que a atividade
jornalística seja abruptamente interrompida. A necessidade de se descolocar
diariamente para várias comarcas, muitas vezes situadas em diferentes estados
da federação, e a de contratar inúmeros advogados para conduzirem múltiplas
defesas, oneram o jornalista em proporção apenas suportável por aqueles
vinculados a grandes empresas de comunicação social. Às pequenas e médias
empresas jornalísticas e jornalistas independentes não há alternativa:
resta-lhes interromper as atividades ou deixar os processos correrem à revelia.
• Mais
violações
Esse
uso desleal e abusivo do direito de ação implica a violação do devido processo
legal (CF, art. 5º, LIV), do qual se deriva o princípio da boa-fé. Os
obstáculos opostos ao exercício do direito de defesa violam o princípio da
ampla defesa (CF, art. 5º, LV).
Para
dar conta da imperiosa necessidade de se preservarem esses princípios, além da
liberdade de imprensa e do direito à informação, a ABI, por meio da mencionada
ADI nº 6.792, requereu ao STF a realização de interpretação conforme do artigo
53 do CPC, de modo a se determinar que a competência para julgar as ações seja
fixada no domicilio do jornalista ou do órgão de imprensa e que as ações
repetidas sejam reunidas, adotando-se, por analogia, a sistemática derivada do
artigo 2º, parágrafo único, da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), do
art. 5º, §3º, da Lei da Ação Popular (Lei 4.714/1965) e do art. 55, §1º, do
CPC.
A
propositura da primeira ação, portanto, torna o juízo prevento, devendo lhe ser
redistribuídas as demais ações que venham a ser propostas posteriormente
(aplicação analógica da Lei 7.347/1985, artigo 2º, parágrafo único, e da Lei
4.714/1965, art. 5º, §3º). Todos os processos serão reunidos e julgados
conjuntamente (Código de Processo Civil, art. 55, §1º).
A
manifestação do Supremo Tribunal Federal sobre o tema cumprirá incomensurável
papel de reafirmar o compromisso de nosso sistema institucional com a garantia
da liberdade de expressão e do direito à informação. A Carta é cidadã, mas o
cidadão tem de se curvar ao fincado em pedra na Carta e nas leis vigentes no
Brasil.
Fonte:
Por Luís Guilherme Vieira e Cláudio Pereira de Souza Neto, em ConJur
Nenhum comentário:
Postar um comentário