segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Unicamp cria método para garantir qualidade na produção doméstica de remédios de maconha

Um projeto desenvolvido pelo laboratório do Centro de Informação e Assistência Toxicológica da Unicamp (CIATox) criou um modelo capaz de controlar a qualidade dos óleos de cannabis produzidos de forma doméstica por famílias ou associações.

O objetivo é dar mais segurança para quem usa produtos medicinais à base de maconha. Nos últimos dois anos, o trabalho analisou cerca de 900 amostras de todo Brasil e agora busca demonstrar um avanço científico sobre o uso da planta em tratamentos de saúde.

>>> O que é o controle de qualidade feito pela Unicamp

O controle de qualidade realizado na Unicamp é um desdobramento do projeto de doutorado conduzido pela pesquisadora Marilia Santoro Cardoso, que desenvolveu um método capaz de determinar 12 canabinoides – estruturas químicas que definem a composição desses produtos.

🔬 Entenda como o projeto funciona passo a passo:

1.       Os pacientes e associações extraem os óleos de cannabis e enviam lotes para o CIATox;

2.       No laboratório, que fica em Campinas (SP), os pesquisadores fazem uma análise de teor;

3.       A avaliação é capaz de determinar quais canabinoides estão presentes e em que quantidade;

4.       Por último, os lotes são devolvidos com detalhes da composição.

•        Por que o controle de qualidade é importante

Segundo o pesquisador José Luiz da Costa, que coordena o CIATox, o serviço possibilita que o paciente saiba exatamente o que compõe o óleo extraído de maneira doméstica, já que esse tipo de produção não tem um controle regulamentado e pode apresentar alguns riscos que são atenuados pelo projeto.

“Todo produto medicinal precisa ter um controle de qualidade para você ter um resultado eficaz. Você precisa saber qual a dose correta e se a substância está adequada”.

“Às vezes o paciente precisa tomar um produto com mais canabidiol [CBD] ou com mais tetrahidrocannabidiol [THC]. Ele precisa ter a certeza de que está tomando o remédio certo. Se o tratamento precisa ser constante, é importante padronizar o extrato que conseguiu”, completa o professor.

>> Isso significa, por exemplo, que:

•        Se a análise mostrar que a fórmula não é a ideal para aquele caso – por exemplo, se tiver mais THC do que o indicado –, o paciente poderá fazer adaptações;

•        Já se a fórmula estiver adequada, ele poderá manter aquela receita para os próximos extratos, pois terá mais precisão.

👨‍🔬 Esse cuidado é relevante porque cada pessoa tem um sistema endocanabinoide único, ou seja, tem receptores no próprio corpo que recebem e reagem de maneira individual aos componentes da maconha. Por isso o tratamento deve ser personalizado.

Como ainda há uma variedade limitada de produtos autorizados para a venda, o paciente pode ter dificuldade de encontrar uma fórmula precisa para atender às necessidades dele. Por isso, apesar dos riscos, há quem prefira produzir o próprio óleo para garantir a assertividade para seu caso.

“Muitas associações e muitos pacientes dependem dessa análise da Unicamp. Hoje o trabalho é bem estruturado. A gente está até buscando acreditação junto ao Inmetro [Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia] para esse ensaio, que é uma forma dele ser reconhecido. A gente está buscando fazer essas análises dentro de um sistema de qualidade reconhecido internacionalmente”.

•        Ampliação do projeto

Costa comenta que o projeto nasceu de forma despretensiosa, mas pela alta demanda foi ampliando significativamente sua atuação. “A gente foi conversando com algumas associações que chegavam e elas pediam para fazer um convênio com a Unicamp”.

“Só que, até então, era um projeto de doutorado. Até que algumas associações falaram: 'eu te dou os reagentes para fazer a análise, podemos fazer de tal forma'. Aí esse negócio foi se desenvolvendo um pouco mais”, completa.

Em dezembro do ano passado, o trabalho desenvolvido pelo CIATox foi contemplado com um edital da Frente Parlamentar da Cannabis Medicinal e do Cânhamo de São Paulo, da Assembleia Legislativa do estado (Alesp) e receberá uma verba de R$ 180 mil, o que pode contribuir para sua ampliação.

Vista aérea do campus da Unicamp, em Campinas, onde fica o CIAtox — Foto: Reprodução/EPTV

Com o investimento, além da análise de teor das amostras, o projeto também vai avaliar a pureza dos óleos, identificando a eventual presença de praguicidas, solventes, entre outros componentes que poderiam comprometer a qualidade.

Um trabalho que pode ampliar a segurança dos pacientes já que a produção "caseira" está mais exposta a contaminações, como explica a pós-doutora pela Faculdade de Medicina da USP e presidente da Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia, Ana Gabriela Hounie.

"Em remédios caseiros há risco de contaminação por fungos e pesticida, caso não seja uma produção orgânica feita em estufa, e por metais pesados, caso a terra usada também não seja analisada”,

“A produção pela indústria tem maior chance de ser fiscalizada e analisada para manter padrões de qualidade”, completa.

•        Associação beneficiada

A expectativa é continuar contribuindo com iniciativas como a Santa Cannabis, de Santa Catarina, que já recebe esse suporte da Unicamp. Fundada em 2019 para ajudar pessoas que precisam do tratamento, a associação tem hoje respaldo jurídico para cultivar, produzir e oferecer produtos medicinais a preço acessível (. Em quatro anos, cerca de 4,5 mil pacientes foram atendidos.

"[O controle de qualidade] dá a segurança para que os médicos possam receitar produtos de associações. Através dessa análise, a gente sabe a quantidade de canabinoides. Graças a esse processo, nossos produtos têm um QR Code que permite a médicos e pacientes consultarem os componentes", afirma Pedro Sabaciauskis, idealizador da Santa Cannabis.

Anos depois de observar os efeitos da maconha medicinal no tratamento de sua avó dona Edna, diagnosticada com Parkinson – e de concluir que mais pessoas deveriam ter acesso a isso –, Pedro acredita e defende o potencial do Brasil, do cultivo ao laboratório, em produzir medicinais canábicos tão eficientes quanto os internacionais.

"Isso prova que a gente consegue entregar remédio, de brasileiro para brasileiro, com qualidade até maior do que os importados, que chegam aqui com teste de certificação de dois, três, quatro canabinoides. A Unicamp consegue até mais. Essa segurança, respaldo científico, reflete na aceitabilidade e efetividade, que refletem em qualidade de vida".

 

       Entenda os caminhos regulamentados para ter acesso à maconha medicinal no Brasil

 

O uso da maconha para fins medicinais é apontado como alternativa para, pelo menos, 20 quadros de saúde. No entanto, a planta é proibida no Brasil e, atualmente, o acesso a esse tipo de terapêutico é regulamentado exclusivamente por dois caminhos: a compra de produtos autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a importação.

Nesses processos, há também a possibilidade de acionar a Justiça para que a obtenção seja feita pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou plano de saúde.

Em busca de explicar os trâmites para estas aquisições, o g1 consultou a Anvisa e conversou com os advogados Leonardo Sobral Navarro, que é especialista em direito médico, e Vanessa Sinhorini, presidente da Comissão de Saúde da OAB Campinas.

<<<< Como comprar produtos de cannabis medicinal no Brasil

Questionada sobre o tema, a Anvisa detalhou que divide os medicinais de cannabis em duas categorias:

•        💊 medicamentos: para qual se aplicam todas as normas de medicamentos, incluindo eficácia, segurança, obrigatoriedade de estudos clínicos, entre outros;

•        🌿 produtos derivados de cannabis: que não são considerados medicamentos, pois não atendem às mesmas exigências.

O único medicamento autorizado hoje no país é o Mevatyl, indicado para pacientes com esclerose múltipla. Já entre os derivados, até janeiro de 2024, estavam liberados aproximadamente 20, incluindo óleos para consumo terapêutico.

👉 A lista é atualizada constantemente e pode ser consultada no site oficial da Anvisa.

De acordo com a resolução 327/2019 da agência, os pacientes podem comprar medicamentos e derivados autorizados diretamente nas farmácias e drogarias de todo o Brasil. Para isso:

1.       o médico deve fazer a prescrição do medicamento ou derivado liberado usando receita especial;

2.       com a receita, o paciente pode comprar na farmácia que quiser, como qualquer outro remédio.

•        Como importar produtos de cannabis medicinal para o Brasil

Outra opção prevista pela resolução 660/2022 é a importação de produtos derivados da cannabis fabricados em outros países. Neste caso, não há necessidade de receita médica especial.

1.       o médico prescreve o produto em receita simples;

2.       o paciente faz um cadastro pessoal no site da Anvisa;

3.       o paciente cadastra a receita e registra o pedido de importação;

4.       se a Anvisa autorizar, o paciente poderá importar de forma regular;

5.       munido da autorização, o paciente pode fazer a importação por remessa expressa, licenciamento de importação no Siscomex ou bagagem acompanhada. .

📈 Dados da Anvisa mostram que essa modalidade tem registrado aumento nos últimos anos. Apenas em 2023, a agência concedeu cerca de 126 mil autorizações para importação de janeiro a novembro. No ano anterior, até dezembro, foram 80 mil.

•        Fornecimento pelo SUS ou plano de saúde

Embora sejam possibilidades, compra e importação não são acessíveis para todo mundo. Entre os derivados de cannabis, o valor de um frasco, que pode variar de acordo com o laboratório e a formulação, pode passar dos R$ 2 mil. Quem não tem condição de pagar pode acionar a Justiça, como afirma o advogado.

“O paciente pode judicializar, desde que comprove todos os requisitos. Essa judicialização pode ser contra o SUS [Sistema Único de Saúde] ou contra os planos de saúde. Existem requisitos específicos, mas a pessoa pode judicializar o fornecimento dessas medicações. Isso vem acontecendo e a gente observa que o comportamento do judiciário é sempre no resguardo à saúde”.

🏥 Como acionar o SUS

Vanessa explica que o paciente deve fazer o pedido à secretaria Municipal ou Estadual de Saúde, que poderão responder de forma negativa. “A partir do momento que a pessoa tiver uma negativa do SUS, que pode levar mais de 70 dias para acontecer, ela consegue ajuizar uma solicitação”.

“Eu costumo recomendar que meus clientes façam o pedido administrativo e, a partir do momento que eles tiverem esse protocolo, já acionem a justiça. É um pouco moroso a resposta. Em alguns município é mais de 60 dias, isso quando respondem”.

Apesar da espera, a advogada explica que a Justiça tende a ser favorável nesses casos, pois envolvem direito à saúde.

🏥 Como acionar o plano de saúde

Por outro lado, a advogada diz que o plano de saúde tende a ser mais rápido. “A partir do momento que tiver a prescrição, o paciente faz o pedido no plano. Tem um prazo estabelecido pela ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] que é de 21 dias úteis. No momento que negou, tem 24 horas para dar a negativa por escrito e, a partir disso, a pessoa pode pedir na justiça a medicação”.

•        Estado de São Paulo

👉 No estado de São Paulo esse processo se propõe a ser simplificado. Um decreto publicado no ano passado regulamenta a política de distribuição gratuita de medicamentos à base de canabidiol vegetal, derivado da planta da maconha, por meio do SUS, para alguns casos. Para isso, o paciente precisa ter prescrição médica, passar por acompanhamento periódico e seguir protocolos clínicos.

•        Associações de cannabis terapêutica

Há ainda a possibilidade de recorrer às associações brasileiras que se organizam para produzir, vender a baixo custo ou oferecer gratuitamente produtos terapêuticos de cannabis. Embora a prática não seja regulamentada e, em tese, configure crime, essas entidades contam com o respaldo de habeas corpus. O documento obtido por via judicial garante a liberdade, impedindo a prisão de responsáveis ou apreensão das produções.

Uma médica de Campinas (SP) que preferiu não se identificar contou ao g1 que tem orientado seus pacientes a recorrerem a essa alternativa. "Eu comecei a fazer contato com as distribuidoras e importadoras. Todas eu achava o preço bastante absurdo para o meu público, porque eu trabalho com saúde pública. No caso das associações, eu encontrei um valor bem possível. O produto custa menos da metade, um terço, da medicação importada".

"Grande parte das associações têm também o que elas chamam de atendimento social. Então, eles estudam o caso da pessoa, têm médicos que atendem e fazem uma consulta sem cobrar e a associação oferece o tratamento gratuitamente".

 

Fonte: g1

 

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