Governo
Lula dá selo de ‘integridade’ a empresas relacionadas a violações ambientais
Como é
possível empresas agrícolas envolvidas com denúncias de desmatamento ilegal,
trabalho escravo e ameaças a comunidades tradicionais serem consideradas
íntegras e sustentáveis? E ainda serem reconhecidas publicamente como exemplo
de gestão?
A resposta
está no Selo Mais Integridade, premiação concedida pelo Ministério da
Agricultura e Pecuária (Mapa) em parceria com associações do agronegócio e
outras entidades públicas e privadas.
Apesar da
intenção de coroar boas práticas no setor, o histórico de empresas agraciadas e
as características do comitê que homologa as premiadas suscitam dúvidas.
Entre as
ganhadoras do selo estão empresas suspeitas de violações a direitos humanos,
como a Agrícola Xingu, e de más práticas trabalhistas e ambientais, como
Marfrig, Bunge e Amaggi. Esta última tem entre seus sócios o ex-ministro da
Agricultura Blairo Amaggi, que assinou o decreto criador do prêmio.
“O Brasil
pode até ter um selo para separar o joio do trigo nesse setor, mas com
entidades independentes na organização”, opina o engenheiro Paulo Barreto,
pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
Barreto
critica a participação da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil
(CNA) e da Confederação Nacional da Indústria (CNI) no comitê responsável por
escolher as empresas premiadas. Para ele, trata-se de um conflito de interesses
que compromete a premiação.
Isso
porque a CNA e a CNI defendem os interesses econômicos do agronegócio em
tribunais superiores, órgãos do Executivo Federal e no Congresso Nacional. Não
teriam a isenção necessária, portanto, para avaliar as empresas que elas
próprias representam.
Essas
entidades financiam estudos, contribuem com projetos de lei e até auxiliam
parlamentares a defenderem temas controversos ou em conflito com ambientalistas
e setores do próprio governo.
São
exemplos disso a constante atuação pela flexibilização da legislação ambiental,
disputas tributárias, o esforço pela criação do chamado “marco temporal” das
terras indígenas e o lobby pela ampliação do uso de agrotóxicos.
A
participação dessas instituições na gestão do selo é algo que “merece dúvida”,
avalia o advogado Carlos Ari Sundfeld, professor de direito administrativo da
Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV) e presidente da Sociedade Brasileira
de Direito Público (SBDP).
“O
agronegócio é muito heterogêneo em matéria trabalhista e ambiental. Não acho
fora de propósito o ministério ter mecanismos para incentivar e valorizar
práticas adequadas. Mas a participação de representantes empresariais [na
seleção das premiadas] afeta a qualidade do prêmio. Se o valor disso é dar
confiabilidade, precisa modernizar a composição [do comitê gestor]”, diz.
CNA e CNI
foram questionadas pela Repórter Brasil sobre as críticas, mas não
responderam.
·
De Maggi para Amaggi
O Selo
Mais Integridade foi criado em 2017 durante o governo Michel Temer, na gestão
do então ministro Blairo Maggi, um dos maiores sojeiros e pecuaristas do país.
A honraria é concedida a companhias que “reconhecidamente desenvolvem boas
práticas de integridade, ética, responsabilidade social e sustentabilidade
ambiental”, segundo o regulamento.
Embora a
premiação tenha caráter estatal – sendo gerida, financiada e concedida pelo
ministério –, o comitê gestor conta com mais entidades privadas (7) do que
públicas (5).
Além de
CNA e CNI, entre as privadas estão a Organização das Cooperativas do Brasil
(OCB) – uma espécie de CNA das cooperativas –, a Federação Brasileira de Bancos
(Febraban), a entidade Alliance for Integrity, o Instituto Ethos de Empresas e
Responsabilidade Social e o Instituto Rede Brasil do Pacto Global.
Do lado
público estão o próprio Ministério da Agricultura, a Agência Brasileira de
Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), a Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)
e a Controladoria-Geral da União (CGU).
Para
conquistar o Mais Integridade, a empresa ou cooperativa deve apresentar uma
série de declarações e comprovantes que atestem sua integridade sob três
enfoques: “anticorrupção”, “trabalhista” e de “sustentabilidade”.
A empresa
deve comprovar que possui programa de integridade (compliance), código de ética
e conduta, canais de denúncia efetivos e treinamentos para promover a
integridade. É exigido o comprometimento da alta administração da empresa com
as práticas anticorrupção.
O
regulamento exige ainda que os candidatos não estejam relacionados na “lista
suja do trabalho escravo”, tenham “certidão negativa” para crimes ambientais,
fiscais e contra a saúde pública e um “nada consta” para infrações relacionadas
à exploração do trabalho infantil.
Ao
conquistar o selo pela primeira vez (selo verde), a empresa pode usar o
logotipo da certificação na publicidade de sua marca, nas redes sociais e em
publicações internas ou externas. Conquistar a distinção pelo segundo ano
consecutivo (selo amarelo) permite imprimi-lo na embalagem de produtos.
Em cinco
edições até agora (2018 a 2022), foram distribuídos 91 selos – alguns deles
para empresas envolvidas em polêmicas socioambientais ou trabalhistas.
Dois anos
após Maggi deixar o ministério, a Amaggi, empresa do ex-ministro, conquistou o
selo pela primeira vez. Foi em 2020, ano das queimadas no Pantanal retratadas
em imagens que correram o mundo. Na época, a Repórter Brasil revelou
que parte do fogo teve origem em fazendas de
pecuaristas que vendiam gado para o grupo Amaggi, entre outras firmas. A empresa declarou à época que suspendeu os fornecedores identificados.
A Amaggi
renovou o selo para 2021 e 2022, ano em que a Repórter Brasil denunciou que a empresa comprou soja de diversas fazendas no Mato
Grosso que desmataram a Amazônia e o Cerrado.
·
Embaraços
Segundo
maior frigorífico do Brasil, a Marfrig coleciona denúncias de problemas
socioambientais. Por ter comprado gado produzido dentro de terra indígena e
áreas ilegalmente desmatadas, por exemplo, acabou excluída da lista de fornecedores da Nestlé. Na França, quatro bancos foram denunciados por manterem relações com a marca, cuja cadeia de
fornecedores esteve associada até com trabalho escravo.
Em
fevereiro de 2022, diante de pressão de mais de 200 organizações, o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) negou um pedido de empréstimo de US$ 43
milhões à empresa devido aos riscos ambientais relacionados às suas
atividades.
Os
embaraços relacionados à Marfrig produziram desconfianças e restrições
comerciais fora do país. Mas não o suficiente para impedir a conquista do Mais
Integridade em 2021. O reconhecimento ocorreu poucos meses após o Ministério do
Trabalho divulgar a lista suja do trabalho escravo, na qual figurava um pecuarista fornecedor da
Marfrig. No ano seguinte, a Marfrig conquistou o
selo amarelo, poucos meses após uma nova lista suja da escravidão incluir o
nome de outro fornecedor da
empresa.
A Marfrig
se defende de parte dos episódios no exterior que afetam seu caixa e depõem
contra sua reputação e advoga pela legitimidade das honrarias recebidas (confira aqui).
Denúncias
de desmatamento ilegal de vegetação nativa e
expansão irregular pelo oeste da Bahia também
não impediram a Agrícola Xingu de ser premiada pelo Mapa mais de uma vez.
A
companhia está em uma disputa judicial de território com comunidades de fecho
de pasto – povo tradicional que usa métodos próprios de agricultura e
subsistência. O caso está em análise pela Justiça, conforme denúncia feita
pela Repórter Brasil em outubro de 2022.
Apesar
desse histórico, a empresa recebeu o selo pela primeira vez em 2019,
conquistando no ano seguinte o selo amarelo, que vale por dois anos e foi
renovado em 2022, com validade até 2024.
Procurada,
a Agrícola Xingu não respondeu.
·
‘Compromisso ético’
Embora
reconheça que “a possibilidade de um conflito de interesse é uma preocupação
legítima” no arcabouço do Mais Integridade, o Ministério da Agricultura
argumenta que “a presença de parceiros do Mapa” no Comitê Gestor da premiação
proporciona uma “abordagem multifacetada” que é “projetada para evitar qualquer
viés ou favorecimento”.
À Repórter
Brasil, a pasta afirmou que os riscos de conflito são reduzidos porque o
ministério “promove, de forma separada, as funções de formulação de políticas
agropecuárias, fiscalização do setor e gestão do Selo Mais Integridade”.
“É
importante ressaltar que a concessão do Selo é baseada em critérios estritos e
transparentes, que visam a avaliar não apenas a conformidade legal, mas também
o compromisso ético das empresas em relação a práticas ambientalmente
sustentáveis, respeito aos direitos humanos e responsabilidade social”,
afirmou.
Em relação
aos selos entregues à Marfrig, apesar do histórico de notícias desabonadoras
relacionadas ao frigorífico, o Ministério da Agricultura afirmou que a
designação “foi baseada na defesa da presunção de inocência”.
“Foi
oferecida à empresa o direito ao contraditório face à possibilidade de
reprovação e a empresa argumentou, de maneira consistente, que nenhum dos
processos existentes transitou em julgado, e, portanto, a empresa deveria ser
considerada presumidamente inocente, conforme o princípio constitucional da
presunção de inocência”, diz um trecho da resposta.
“A empresa
também questionou a validade das notícias relacionadas a parceiros de negócios
e alegou que as denúncias foram baseadas em jurisdição estrangeira não são
aplicáveis no contexto brasileiro, evidenciando a importância de considerar o
alcance territorial e legal das acusações”, completou.
A Marfrig
refutou a hipótese de conflito de interesses nos selos recebidos ressaltando “a
colegialidade” do Comitê Gestor. “Ao adotar uma abordagem colegiada, várias
vozes e perspectivas são consideradas no momento de tomar uma decisão. A
diversidade, respeitabilidade e colegialidade das decisões proferidas conferem,
ao Comitê Gestor, neutralidade na avaliação das empresas participantes”,
argumentou.
Em relação
ao mérito das acusações, a empresa afirmou que “não compactua com práticas de
desmatamento, trabalho forçado ou qualquer violação de direitos humanos, bem
como com exploração de terras indígenas e territórios quilombolas”.
“As
alegações referentes a compra ilegal dentro de Terra Indígena atribuídas à
companhia não refletem a realidade da atuação da Marfrig, que trabalha para
garantir a sustentabilidade e a preservação ambiental em suas operações e
cadeia de fornecimento”, prosseguiu.
O
frigorífico afirmou ainda que “mantém uma rigorosa política de compra de
animais e um protocolo com critérios socioambientais e procedimentos que são
pré-requisitos para homologação de seus fornecedores de animais”. Segundo a
empresa, “qualquer fazenda que possua inconformidade com os compromissos da
companhia é imediatamente bloqueada para fornecimento de animais para a
Marfrig”.
Já a CGU
comentou que “a atividade de fomento promovida pelo Selo Mais Integridade é
complementar à atuação fiscalizatória da pasta [Mapa]. A sinergia entre o
fomento e a fiscalização é a base capaz de desenvolver um ambiente regulatório
robusto e eficiente”.
Na
avaliação da corregedoria, não há hipótese de conflito de interesse na
participação da CNA e da CNI no Comitê Gestor, pois essas entidades são
minoritárias no colegiado. “O voto de um único representante não possui o poder
de determinar o resultado de uma deliberação. Dessa forma, não há espaço para a
influência unilateral ou conflito de interesse, considerando que as decisões
são fundamentadas na coletividade e na ponderação das diferentes visões
representadas no comitê”, argumentou.
Fonte:
Reporter Brasil
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