sábado, 24 de fevereiro de 2024

Glenn Greenwald: Lula está certo sobre Gaza e não é antissemita

Desde que Lula evocou o Holocausto para denunciar a destruição de Gaza por Israel, a grande mídia brasileira se uniu, com raras exceções, para condená-lo. Na segunda-feira (19) à noite, o jornalista William Waack afirmou na CNN Brasil que a declaração de Lula “ofende judeus no mundo inteiro”.

Deixando de lado a incongruência que é ver William Waack se colocar como vigilante da intolerância e fiscal do que se pode dizer no discurso público, a pergunta que faço é: com base no que ele se coloca como porta-voz dos “judeus no mundo inteiro”?

É verdade que a declaração de Lula enfureceu o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que declarou Lula “persona non grata” em Israel. Mas equiparar o governo de Israel a “judeus no mundo inteiro” não é só falso, é também antissemitismo.

Como todos os grupos, os judeus não são um monólito. Qualquer pessoa que, como eu, tenha crescido numa família judaica e imersa nessas tradições sabe que o grupo passa longe de ser homogêneo. Há dentre os judeus discussões e divergências sobre os mais diversos assuntos, inclusive o Estado de Israel, o tratamento desumano dispensado aos palestinos e a abjeta imoralidade da destruição de Gaza.

Um mês antes do ataque do Hamas de 7 de outubro, o ex-chefe do Mossad, agência de inteligência israelense, Tamir Pardo —indicado por Netanyahu— afirmou que Israel impõe “uma forma de apartheid aos palestinos”. Muitos líderes Israelenses, incluindo o ex-primeiro Ministro Ehud Barak, já disseram o mesmo.

O jornalista judeu brasileiro Breno Altman vem repetidamente comparando as ações de Israel em Gaza ao nazismo, ao ponto de estar sendo investigado pela Polícia Federal por expressar sua visão. Um grupo de judeus brasileiros, conforme relatado pela Folha, emitiu uma nota para defender as declarações de Lula.

Nesta semana, a escritora judia russa Masha Gessen recebeu o Polk Award, o segundo prêmio mais importante no jornalismo dos EUA, por seu brilhante ensaio na revista New Yorker intitulado “Na Sombra do Holocausto”. No texto, Gessen aponta como o Holocausto é frequentemente evocado para silenciar as críticas aos crimes de guerra de Israel.

Gessen cita a filósofa Hannah Arendt, judia que em 1948 comparou grupos sionistas extremistas ao Partido Nazista, tanto em sua mentalidade quando em suas táticas —isso tudo menos de três anos depois do fim da Segunda Guerra.

No mesmo ano, o físico judeu Albert Einstein e outros importantes intelectuais judeus publicaram uma carta comparando os métodos de atuação de Menachem Begin, o terrorista sionista que se tornaria depois primeiro-ministro de Israel, aos dos nazistas.

Em seu artigo, Gessen documenta como os intelectuais judeus mais importantes do pós-guerra insistiam que as lições do Holocausto deveriam ser aplicadas universalmente, e que nenhum país ou grupo, sionistas inclusive, deveria se furtar de absorver esse aprendizado.

Gessen então descreve como, visitando os museus do Holocausto pelo mundo, se lembrava do sofrimento da população de Gaza nas mãos de Israel.

Sabendo então dessa enorme pluralidade no seio da comunidade judaica, como explicar a pretensão de uma pessoa como William Waack, que, como a grande maioria da mídia brasileira, se sente no direito falar em nome dos judeus e de impor limites às discussões sobre o Holocausto? E os judeus que rejeitam os ditames dos Netanyahu do mundo, quem falará por nós?

Equiparar as ações do governo de Israel à totalidade dos judeus do mundo é ofensivo. Todas as pesquisas mostram que o público israelense se voltou fortemente contra Netanyahu e espera ansiosamente para depô-lo. Há protestos contra ele, liderados por judeus israelenses, todos as semanas. São judeus muitos dos líderes mais vocais em suas denúncias de que a guerra em Gaza se trata de um genocídio.

Mas há ainda um tema muito mais importante trazido à tona pela controvérsia: a quem pertence a memória do nazismo e da Segunda Guerra? Existe alguém com legitimidade para ditar como o Holocausto pode ser discutido, por quem, e com que agenda política? Existem países específicos cujas ações estão imunes, por algum motivo, às comparações com os piores abusos da Segunda Guerra? Se sim, essa imunidade se baseia em quê?

Quando a Segunda Guerra terminou e a real dimensão do Holocausto foi revelada, os países aliados, uma vez vencedores, decidiram não executar imediatamente os líderes nazistas. Em vez disso, foi realizado um processo jurídico transparente, conhecido como o julgamento de Nuremberg.

O objetivo era publicizar e legitimar o veredito —e, mais que isso, mostrar ao mundo as evidências das atrocidades cometidas pelos nazistas para, acima de tudo, estabelecer os princípios pelos quais os países deveriam se guiar no futuro.

O procurador-chefe dos EUA no julgamento, Robert Jackson, enfatizou em suas colocações iniciais que a maldade nazista se repetiria no futuro. “Esses prisioneiros nazistas representam uma influência sinistra que continuará no mundo mesmo depois que seus corpos retornarem ao pó.”

Referindo-se às sentenças contra criminosos nazistas específicos, Jackson disse: “Se esse julgamento for ter alguma utilidade no futuro, deverá servir para condenar também a agressão de outras nações, inclusive as que aqui estão na posição de julgadoras”.

Os horrores do Holocausto não foram uma lição sobre a maldade dos alemães ou a vulnerabilidade dos judeus. Foram uma lição sobre a natureza humana e a nossa capacidade para o mal, e como sociedades sofisticadas e educadas podem sucumbir a impulsos genocidas. Por isso, as sentenças proferidas em Nuremberg não podem dar a qualquer país, incluindo Israel, uma justificativa para suas próprias ações. Pelo contrário: os crimes do Holocausto não podem ser repetidos por nenhum país, nunca mais.

Os horrores da destruição de Gaza por Israel já estão visíveis para todos que quiserem ver. O ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, prometeu no início da guerra: “Estamos impondo um cerco total a Gaza. Nem eletricidade, nem comida, nem água, nem combustível. Tudo bloqueado”. O motivo: “Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”.

Hoje podemos ver que essa promessa, bem como a ideia de que os palestinos são sub-humanos, não era blefe. Segundo relatório da ONU, de todas as pessoas do mundo que enfrentam a fome extrema, 80% estão em Gaza. Trata-se uma crise humanitária sem paralelo, diz o texto. Há inúmeros casos, incontroversos e amplamente documentados, de crianças à beira da morte por fome.

Ao menos 29 mil pessoas foram mortas em Gaza desde que Israel começou a retaliação aos ataques do Hamas de 7 de outubro: 70% são mulheres e crianças. A destruição da vida civil em Gaza é pior do que qualquer guerra que o mundo tenha visto no século 21.

Mais bombas foram lançadas por Israel em Gaza, um território pequeno e densamente povoado, na primeira semana do conflito armado (cerca de 6.000) do que foram jogadas anualmente pelos EUA no Afeganistão, de 2013 a 2018 (nesse período, nenhum ano registrou mais de 4.400 bombas), segundo dados da Força Aérea israelense e da Central das Forças Aéreas dos EUA.

Ninguém, nem mesmo Lula, está sugerindo que a escala das mortes em Gaza seja comparável ao Holocausto. O que muitas pessoas estão dizendo —inclusive alguns dos intelectuais judeus mais proeminentes do mundo, como Masha Gessen— é que os mesmos princípios de desprezo pela vida e desumanização coletiva que culminaram no Holocausto estão também por trás da destruição de Gaza.

 

Ø  Aimé Cesaire e o racismo na histeria contra Lula. Por Gabriel Rocha Gaspar

 

“A tradição diplomática do Brasil é de resolução de problemas. O ‘incidente’ com Israel vai em direção oposta e atrapalha não só a imagem do país, mas também o andamento de assuntos de interesse da população num ano eleitoral”. Assim o apresentador editorializou, de forma excepcional, o encerramento do programa Roda Viva, que recebeu, na última segunda-feira, o ministro das Relações Institucionais Alexandre Padilha.

Basicamente, o jornalista (ou sua chefia) afirmou que Lula foi irresponsável ao comparar o genocídio em curso na Faixa de Gaza ao Holocausto perpetrado pelo Terceiro Reich, nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Afetou a tradição diplomática nacional e o potencial eleitoral do campo dito democrático nas municipais do fim do ano. A fala de fechamento do Roda Viva sumariza o que tem sido a reação mais “progressista” da mídia corporativa brasileira à forte declaração do presidente. Sobre posições abertamente genocidárias, eu me reservo o direito de nem comentar.

Por trás da preocupação mundana com os rumos da chamada normalidade democrática no Brasil, disfarça-se a pura e simples hierarquização da vida humana. Mas por ora, aos argumentos de superfície: mais do que um disparate conceitual, a fala de Lula seria um erro tático, por ocorrer em meio ao fechamento de cerco em torno do ex-presidente Jair Bolsonaro, acossado pela Justiça por sua cada vez mais deflagrada atuação em prol de um Golpe de Estado em 2022.

Para quê ressuscitar um bolsonarismo nas cordas, se a economia neoliberal capitaneada por Fernando Haddad cresceu acima do esperado? Para que alimentar o fogo de um Congresso cravejado por todos os tons de fascismo? Para que atiçar a oposição, num país de missionarismo evangélico galopante, em pleno ano eleitoral? E mais, para que fazer isso às vésperas de um ato público convocado por Bolsonaro em sua própria defesa? Se a suástica verde e amarela tomar a Avenida Paulista no domingo, a culpa não será da insistente inação de nossas classes política e midiática diante do fascismo, cujas raízes na história recente remontam à Anistia geral e irrestrita que anulou os crimes da Ditadura na reabertura política de 1985. Não, a culpa será de Lula, esse Bolsonaro de sinal invertido.

Reside por trás dessa reação hegemônica o fetiche por uma normalidade imaginária que só pode ser talhada com uma ferramenta, a moderação. Tarik Ali veria aí uma expressão de extremismo centrista, uma postura política pseudo-responsável, calcada na máxima thatcheriana de que “não há alternativa” ao neoliberalismo, caminho “natural” da “evolução humana”. Algumas pilhas de cadáveres no caminho são, literalmente, “ossos” do ofício. O que se denota no debate histriônico da imprensa vira-lata é mais do que isso, é uma brutal inversão da máxima leninista, segundo a qual devemos ser flexíveis na tática e radicalmente inflexíveis no princípio.

Lula teve uma postura de princípio: antirracista, anticolonialista, humanista. O que Israel faz em Gaza é, sim, comparável ao que a humanidade produziu de pior. É o extermínio em massa de uma população inteira, cuja imensa maioria é formada por mulheres e crianças, justamente por estar submetida a 70 anos de assassinato sistemático. Isso precisa ser freado, agora. E o premiê israelense Benjamin Netanyahu não puxará o freio. Não só por afiliação ideológica ao fascismo local, mas porque sua sobrevivência depende da aniquilação da população palestina. Seu comprometimento jurídico, econômico e político é extenso demais para voltar atrás.

O freio terá que vir de fora. E essa deveria ser a prioridade do mundo agora, ou lidaremos com as consequências morais, políticas e humanitárias de termos assistido, inertes, a um genocídio em tempo real. O mundo não tinha imagens do Holocausto até que o Exército Vermelho liberasse os campos de extermínio do Leste Europeu. Alegar ignorância era possível até ali. Agora, não. Como não foi durante a crise migratória de 2015, como não foi – nem é – depois do escrutínio público do genocídio yanomami ou durante a política de morte aplicada pelo ex-governo na crise da COVID. Agora, todo mundo está vendo.

E se o governo israelense conseguir cumprir com a Solução Final sionista, cria-se a jurisprudência que Hitler tentou estabelecer. Lebensraum, espaço físico para o desenvolvimento da vida ariana, era o que buscava o führer com a eliminação total do que ele chamava de bolchevismo judaico do leste europeu. Lebensraum é o que o Estado de Israel busca com a limpeza étnica de Gaza. A comparação de Lula se sustenta, conceitualmente.

Mas mais do que isso, é a única postura antirracista possível. Porque todo projeto colonial, o israelense incluso, é racista. O Holocausto, no discurso sionista, é um artifício ideológico, como deixou claro o pesquisador judeu Norman Finkelstein, também persona non grata em israel. Divorciado do holocausto real, transformado numa excepcionalidade histórica imune a qualquer comparação, ele se torna uma carta branca para sua própria reencenação. Ao fazer a comparação, Lula ecoa Aimé Césaire e desconstrói com duas frases simples, o excepcionalismo que justifica o projeto colonial.

Como diria este grande teórico da negritude, “vale a pena estudar, clinicamente, em detalhes, os passos de Hitler e do hitlerismo e revelar ao burguês muito distinto, muito humanista e muito cristão do século XX que ele carrega consigo um Hitler sem saber, que Hitler vive nele, que Hitler é seu demônio, que se ele o vitupera, é por falta de lógica, no fundo. O que ele não perdoa em Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, é a humilhação do homem branco, é de haver aplicado à Europa os procedimentos colonialistas que atingiam até então apenas os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África.”

A mídia e a classe política brasileiras mostram o quão estanque no século XXI é o antigo burguês de Césaire: até eleições municipais no Brasil têm maior peso moral do que o extermínio completo e sistemático de um povo não branco.

 

Fonte: FolhaPress/Outras Palavras

 

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