De olho na
atual tensão global, Coreia do Norte busca reavivar aliança com Rússia e China
Em
entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, analistas apontam que a reunificação
da península coreana se tornou inviável devido ao acirramento entre Norte e
Sul, e destacam o estreitamento de laços de Pyongyang com Moscou e Pequim.
A tensão
na península coreana escalou nas últimas semanas, após a Coreia do Norte
realizar uma série de disparos de mísseis de cruzeiro em direção ao mar Amarelo
e ao mar do Japão (também conhecido como mar do Leste), e testar, com sucesso,
um míssil de cruzeiro estratégico Pulhwasal-3-31, lançado de um submarino.
Na semana
passada, a Coreia do Norte demoliu um monumento importante na capital,
Pyongyang, que simbolizava a esperança de reunificação da península. O
monumento foi erguido no ano 2000, após uma histórica cúpula intercoreana. Ao
anunciar a demolição, o líder norte-coreano, Kim Jong-un, classificou o
monumento como "monstruoso" e disse que não há mais esperança de
reunificação. Posteriormente, ele afirmou que a Coreia do Sul é "um
inimigo primário e o principal inimigo invariável" da Coreia do Norte e
alertou para a possível guerra nuclear entre as duas Coreias.
As tensões
se agravaram após a intensificação das manobras militares entre Estados Unidos
e Coreia do Sul em resposta aos testes de armas do Norte.
Em
entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, analistas apontam qual o
real risco da retomada da guerra entre as Coreias e que impactos o conflito
teria no cenário global.
Lucas
Rubio, presidente do Centro de Estudos da Política Songun – Brasil, organização
dedicada aos estudos estratégicos sobre a política militar e nuclear da
República Popular Democrática da Coreia, explica que a Coreia do Norte não
buscou o isolamento que o país vivencia hoje no cenário global. Segundo ele,
esse isolamento foi construído pelos Estados Unidos.
"A
Coreia do Norte não se isolou por conta própria, não escolheu se isolar do
mundo para tentar, de alguma forma, trancar os seus cidadãos dentro das suas
fronteiras, ou, então, se retirar da comunidade internacional, como geralmente
a gente escuta e lê por aí. Isso foi um isolamento criado de fora para
dentro."
Ele lembra
que a Coreia do Norte "tem uma experiência militar, política, econômica e
social diferente da do restante do mundo, um país com diretrizes políticas
totalmente diferentes". Porém, com a queda do bloco socialista após a
Guerra Fria, o país perdeu seus parceiros internacionais, principalmente a
União Soviética. Sem as parcerias, o país mergulhou em um período de crise.
"Enfrentou
um período de crise muito grande que foi piorado, teve uma magnitude maior,
porque os Estados Unidos conseguiram criar uma série de bloqueios econômicos,
bloqueios diplomáticos, bloqueios políticos que deixaram o país realmente
isolado. Os Estados Unidos cortaram os contatos desse pequeno país que tentou
buscar no mercado internacional, fora da antiga parceria com a União Soviética
e os outros países que já nem mais existiam, novas parcerias e não conseguiu
por conta desses bloqueios impostos pelos Estados Unidos, com a anuência da
ONU, inclusive."
Rubio
afirma que a intenção de Washington era fazer a Coreia do Norte "implodir
de dentro para fora, tentando cortar todo tipo de parceria econômica,
energética". No entanto ele afirma que o efeito foi o contrário.
"Se
tentaram isolar a Coreia do Norte, ela encontrou um caminho muito próprio,
muito independente, muito autóctone de resolver suas questões, de substituir
coisas que antes ela dependia do exterior [para ter] e começar a produzir
internamente. Então é um país que foi isolado, mas que busca romper esse
isolamento de muitas maneiras. Os coreanos têm embaixadas em grande quantidade
de países no mundo, têm muitas relações diplomáticas, inclusive com o
Brasil."
Ele afirma
que Pyongyang também está reavivando antigas alianças, principalmente com a
Rússia e com a China, parcerias econômicas que ele diz serem muito complexas e
"que garantem que o país tenha pelo menos um mínimo de fluxo internacional
de suas mercadorias".
"A
Rússia e a China são compradoras de mercadorias norte-coreanas e também
fornecedoras de alguma parte do que os norte-coreanos precisam."
·
Por que a Coreia do Sul e a Coreia do Norte
são inimigas?
Questionado
sobre qual o principal entrave na relação entre as duas Coreias, Rubio aponta a
presença militar americana na Coreia do Sul, bem como a intromissão de
Washington em assuntos da península coreana.
"Os
norte-coreanos observam o Sul como uma base militar avançada dos Estados Unidos
ali. É uma questão muito complexa que está sofrendo uma transformação radical
muito grande, dramática, nestes últimos dias."
Ele cita a
declaração de Kim Jong-un em uma sessão da Assembleia Popular Suprema,
classificando a Coreia do Sul como um inimigo e descartando a reunificação, e
aponta que a afirmação do líder norte-coreano mostra uma mudança muito grande
da leitura que Pyongyang fazia da Coreia do Sul, uma vez que o país até então
era visto pelo Norte como um território sob ocupação estrangeira.
·
Qual o motivo da separação das duas
Coreias?
"Em
1945, quando o país [antes da divisão] se libertou da ocupação japonesa,
principalmente pela luta levada a cabo pelo movimento guerrilheiro liderado
pelo Kim Il-sung [avô de Kim Jong-un], que vai ser o fundador da República
Popular Democrática, os Estados Unidos invadiram a parte sul, ocuparam a parte
sul, em uma lógica da Guerra Fria, em uma lógica de conter a ascensão de um
movimento comunista e a construção futura de um Estado socialista naquela
região, que era estrategicamente muito importante — lembrando que a península
da Coreia está do lado da China, do lado da Rússia, na época da União
Soviética", explica Rubio.
"Quando
os Estados Unidos fazem isso, eles não só estabelecem uma base com seus
soldados, como eles criam uma república artificial, que é a República da
Coreia, que ao longo destes últimos quase 80 anos tem sido uma representação,
uma imagem um pouco deformada dos Estados Unidos na região", complementa.
Ele afirma
que os norte-coreanos se incomodam com o fato de que na Coreia do Sul não só há
um contingente muito grande de soldados dos Estados Unidos, mas também há o
próprio governo sul-coreano, que age como um representante dos interesses de
Washington na península.
"O
Estado sul-coreano e os consequentes governos que o dirigem são extremamente
pró-americanos, eles não conseguem dar um passo sem pedir permissão aos Estados
Unidos, sem estar sob o controle dos Estados Unidos. E isso faz com que a
questão nacional, que é a questão gravíssima de que o país foi dividido ao meio
— foram criados dois Estados diferentes, sendo que o povo coreano é o mesmo
povo, fala a mesma língua, tem a mesma cultura, a mesma raiz histórica —, […]
seja sempre deixada de lado pela Coreia do Sul, a mando, é claro […], dos
Estados Unidos, que praticamente controlam aquele país."
Rubio
afirma que "os norte-coreanos se incomodam com isso, com o Estado fantoche
que é hoje em dia a República da Coreia, e foi desde o seu nascimento, e com a
presença dos Estados Unidos ali".
"Eles
consideram que é uma grande traição porque eles não conseguem admitir que o
próprio povo coreano esteja se virando contra o seu próprio povo, que é o povo
coreano do Norte. Eles não conseguem entender, e têm uma grande frustração,
como que os sul-coreanos não enxergam que estão sendo usados para trair e
atacar o seu próprio povo, que é o povo coreano, que no fim das contas é um só
e foi lamentavelmente dividido e separado em uma fronteira a norte e sul."
·
É possível a reunificação da Coreia?
Rubio
lembra ainda que as tentativas de reunificação foram lideradas pelo Norte,
embora ambos os lados tenham representações voltadas para a questão.
"Esses
órgãos sempre tentaram trabalhar conjuntamente, principalmente por iniciativas
da parte Norte. E sempre que as negociações chegam a algum ponto muito
interessante, ou quando vão avançando os diálogos para derrubar uma série de
pequenas barreiras que acabam afastando o Norte e o Sul, os Estados Unidos
intervêm e fazem com que as relações acabem se separando novamente",
afirma Rubio.
Ele
acrescenta que desde a década de 1970 o Norte propõe uma saída, idealizada por
Kim Il-sung, líder norte-coreano na época, que visa "tentar acelerar a
reunificação, mantendo os sistemas políticos e os sistemas econômicos, mas
eliminando a hostilidade militar que existe, a nítida tensão militar que existe
entre as duas partes". Porém a proposta sempre foi rejeitada pelo Sul.
"Só
que a condição básica dos norte-coreanos [na proposta] é a saída das tropas dos
Estados Unidos, e que o problema dos coreanos seja resolvido pelos coreanos. Só
que isso é inconcebível para os Estados Unidos, os Estados Unidos não vão
abandonar aquela base, ainda mais no contexto de hoje. Se na Guerra Fria já era
necessário, agora você imagina hoje como é necessário com a China, segunda
potência global a poucos passos de se tornar a primeira, e a Rússia, que está
renascendo depois de umas décadas bem jogada à margem da comunidade
internacional por conta dos problemas dos anos 1990… Hoje é ainda mais
necessário manter uma base ali aos pés da Rússia e da China. Então os Estados
Unidos não vão arredar o pé dali."
Ele afirma
ainda que o recente encontro entre Kim Jong-un e o presidente russo, Vladimir
Putin, em Moscou "assustou muito os interesses dos Estados Unidos e das
potências ocidentais naquela área do mundo".
"Os
norte-coreanos serem independentes, terem o seu próprio sistema, o seu próprio
modo de vida, não serem orientados por outro país, e sim responderem apenas ao
seu próprio povo, isso é uma coisa muito assustadora para os Estados Unidos e
para alguns países do mundo. E aí, quando esse país começa a reaquecer, a
reviver alianças que já foram muito fortes e agora estão em outro patamar, em
outra dinâmica, isso assusta ainda mais."
·
Qual a relação entre a Coreia do Norte e a
Coreia do Sul?
Em
entrevista ao podcast Mundioka, Ricardo Caicholo, professor de relações
internacionais do Ibmec, diz que as bases americanas não são o único ponto
nevrálgico na relação entre as duas Coreias.
"Vai
além das bases americanas. O que incomoda a Coreia [do Norte] tem sido uma
certa movimentação por parte da Coreia [do Sul], Japão e Estados Unidos no
momento mais recente, nesta cooperação entre os três países, com relação a uma
aproximação entre esses três países, voltados para algumas operações militares
perto da Coreia do Norte."
No
entanto, ele afirma que as movimentações são uma resposta à postura belicosa
adotada pelo Norte "no sentido de avançar alguns programas voltados à sua
segurança que incomodam os países vizinhos, sobretudo a Coreia do Sul".
"O
próprio lançamento, uma primeira tentativa, em junho do ano passado, de
lançamento de um satélite espião […] não foi muito bem-sucedida, mas,
posteriormente, um outro lançamento, esse, sim, bem-sucedido, em novembro,
acabou despertando essa animosidade nesses países que eu mencionei, tanto o
Japão, quanto os Estados Unidos, quanto a Coreia do Sul."
·
Qual a situação das Coreias na atualidade?
Caicholo
diz não acreditar na possibilidade de um confronto militar entre as Coreias do
Norte e do Sul, e considera que as atuais declarações de Kim Jong-un sobre isso
são apenas retórica.
"Ele
percebeu um momento propício para poder se articular internacionalmente, então
ele está em um momento, de fato, propício, porque a gente tem um momento de
instabilidade no cenário internacional — crise em Gaza, crise na Ucrânia,
envolvendo Rússia. E o que se discute hoje, o que tem se divulgado hoje, é que
ele aproveitou esse momento, a Coreia do Norte aproveitou esse momento
inclusive para uma aproximação maior ainda com a Rússia, inclusive no sentido
de fornecimento de equipamentos, de mísseis, para que a Rússia pudesse
aproveitar e desenvolver suas atividades na guerra na Ucrânia."
Segundo
ele, mesmo que Kim Jong-un, em um cenário hipotético, decida se engajar em um
conflito militar com a Coreia do Sul, necessitaria do aval de China e Rússia
para isso.
"Sem
dúvida nenhuma, tudo que se passa na Coreia do Norte, em grande medida, eles
são muito próximos da China, muito próximos da Rússia, teriam que pedir a
bênção de ambos esses países para poder se envolver no conflito. […] Então
haveria, de fato, algum tipo de consulta prévia, porque sabe-se que isso,
acontecendo algum tipo de invasão, algum tipo de encaminhamento para uma guerra
contra a Coreia do Sul, fatalmente você teria o envolvimento tanto do Japão
quanto dos Estados Unidos."
Fonte:
Sputnik Brasil
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