quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Thiago Trindade Lula da Silva: O ego do tirano pode até favorecer a democracia

Bolsonaro será preso, inevitavelmente. Mas como ficará a configuração da direita sem sua presença no tabuleiro?

A prisão de Bolsonaro se aproxima, as investigações da Polícia Federal deixam isso claro, o cerco está se fechando e sua ida para a cadeia é inevitável. Sabemos disso e até ele e sua turma sabem também. A manifestação chamada pelo próprio, no último domingo (25), foi apenas mais um sinal de desespero. Foi feita com o intuito de demonstrar força e um pedido desesperado de anistia, pois, antes de domingo, Bolsonaro disse que só queria uma foto para mostrar ao Brasil e ao mundo sua força política. No entanto, durante seu discurso, pediu anistia e para que o passado fosse esquecido. Bem, não será esquecido nem por nós brasileiros, nem pela Justiça.

Muitos entenderam como uma demonstração de força para a esquerda e para o STF, como um modo de dizer “aqui está o meu exército e se eu for preso haverá convulsão social”. Não entrarei no mérito da força exibida, se funcionou ou se flopou, ou ainda se o STF e as instituições recuarão diante da foto. Ou também se a manifestação em si configura crime, se saiu de lá mais enfraquecido, enfim. Como disse, independentemente de tudo o que ocorrera no domingo, ele será preso.

Mas o que me chama atenção é exatamente o recado oculto que Bolsonaro passou. O recado para a direita brasileira. Bolsonaro deixou claro para seus aliados que é ele quem tem o apoio dos conservadores brasileiros. É ele que tem o poder de mobilizar parcelas da população, e esse poder não será naturalmente passado para frente. Bolsonaro não quer e nunca quis dividir seu lugar de líder da direita, tendo, inclusive, ao longo dos anos, queimado quem ousou crescer debaixo de sua bota. Já deixou claro que ele é o líder e ninguém mais.

Muitos acreditam que a democracia brasileira só foi salva exatamente por conta da incompetência (ou da burrice mesmo) de parte dos golpistas. Acredito que continuando na mesma inércia, o ego do tirano pode ser mais um elemento que favorece nossa democracia.

Com isso, os próximos movimentos da direita brasileira podem ficar dispersos sem uma liderança central. A corrida será para pegar o máximo possível do espólio deixado por Bolsonaro. Ao deixar um grande vácuo, os candidatos a receber a “herança” brigarão entre si. A direita se desestabilizará por um curto período de tempo, quem sabe até apenas as próximas eleições, ou mais. Talvez o mais provável é que ela se descentralize, dividindo o poder e a liderança em vários centros menores, o que pode trazer consequências importantes para a vida política nacional, já que sem uma narrativa centralizada, o método das fake news se enfraquecerá.

Aí talvez esteja a oportunidade que a esquerda, os progressistas, os democratas e as instituições tanto precisam para restabelecer a verdade no país.

Digo isso pois o método das fake news pressupõe uma centralidade, uma organização. Não à toa, um dos organismos mais importantes do governo Bolsonaro era o chamado “gabinete do ódio”. Agora imagine, no meio do caos, o famoso “barata voa”, cada deputado conservador, cada governador, prefeito, vereador, jornalista, influencer, grupo do Whatsapp/Telegram, cada um criando sua própria versão dos novos fatos para crescer entre os seus, disputando um novo lugar de privilégio dentro deste espólio. A briga será feroz, e é nesse período que a parte civilizada do Brasil deve aproveitar para tomar de volta as rédeas, pelo menos no que diz respeito à disputa de narrativa.

Mesmo com toda sua organização e poderio financeiro, a derrocada do líder maior sempre causará turbulência. A aposta é que essa turbulência seja grande o suficiente para abrir espaços, afrouxando os laços ideológicos de sua militância.

O país não voltará a ser o mesmo que era antes da Lava Jato, do golpe e o do combo desumano visto na pandemia e no governo Bolsonaro, embora vigore no momento um excelente governo Lula III. As fake news não cessarão, mas um ambiente favorável pode tornar essa prática menos eficiente e dar um “respiro” nessa atmosfera de mentiras.

A prisão de Bolsonaro não é necessária apenas para punir o bandido que ele é, nem apenas servirá de exemplo. Essa prisão é necessária também para que haja um novo momento para o Brasil, novas configurações no tabuleiro político e novos movimentos que possam, porventura, aparecer.

O movimento fascista do bolsonarismo se formou de tal forma que cooptou e englobou toda a direita, não deixando espaço para alternativas como a terceira via. E não foi por falta de tentativa. Isso criou a tal percepção de “polarização”.

Há aqueles que erroneamente dizem que o PT ajudou a criar a polarização, pois seria do seu interesse. Bem, quem diz isso não conhece a história do Partido dos Trabalhadores e esteve distante da política brasileira nos últimos 40 anos. O PT precisa de democracia. Lutou, construiu e se fortaleceu nela como partido.

Já o movimento fascista bolsonarista não aguentou duas eleições sem a tentativa de um golpe de Estado. Sem Bolsonaro a polarização tende a acabar, e o PT segue em frente.

Evidentemente que tudo ficará mais claro com o decorrer do tempo. As eleições municipais serão o cenário desse embate e indicarão as novas movimentações de reconfiguração da direita. Quem sabe não viveremos um novo momento em que a direita/centro-direita seja mais republicana e menos fascista, conseguindo assim se apresentar como uma alternativa?

A queda de Bolsonaro antes das eleições municipais de 2024 terá um impacto muito grande na disputa. Até 2026 muita coisa pode acontecer. Quem garante que Tarcísio, que é o candidato a presidente natural do bolsonarismo, não terá nenhum adversário disputando seu espaço político?

Tendo a crer, pessoalmente, que qualquer face da direita que não seja fascista e golpista, e que ajude a elevar minimamente o nível do debate político nacional, já será um grande avanço.

Assim como em qualquer dimensão da vida, a política é muito traiçoeira na hora em que fazemos análises e previsões sobre o que virá mais à frente, sobretudo no Brasil, onde a terra plana capota quase toda semana. No entanto, esse é um exercício de imaginação sadio e que, no mínimo, gera bons debates.

Enquanto isso não ocorre, veremos o que acontece. Até lá, continuamos acompanhando e comemorando a Justiça sendo feita e cada vitória da democracia.

 

Ø  Falar sobre 64 não é remoer o passado. É discutir o futuro

 

“Em entrevista para o jornalista Kennedy Alencar, o presidente Lula afirmou que seu governo não pretende pautar o tema dos 60 anos do golpe, porque ele deseja olhar para o futuro, não “remoer o passado”.

Entendemos que a fala do presidente é equivocada, e gostaríamos de convidar o governo e a sociedade civil a refletir sobre a questão.

Queremos começar destacando que falar sobre os 60 anos do golpe de Estado não se trata de remoer o passado. Pelo contrário, trata-se de colocar em debate o que queremos para o futuro do Brasil.

Lula apresenta um contraponto entre falar sobre o passado ou reconstruir o Brasil e fazer o país se desenvolver economicamente. Pois então, presidente, o golpe de 1964 foi dado para impor um projeto econômico ao país, defendido pelos mesmos setores que seu governo busca enfrentar hoje.

A verdade é que as elites econômicas do Brasil nunca tiveram problema em abraçar o fascismo para impor sua agenda econômica regressiva e de aprofundamento das desigualdades. Foi assim em 1964, em 2016 contra Dilma e em 2018 com Bolsonaro. E é por isso que setores dessas elites financiaram a tentativa de golpe do 8 de janeiro de 2023.

Por isso, falar sobre 1964 é falar sobre os projetos autoritários e elitistas da sociedade que continuam ameaçando a possibilidade de o Brasil se afirmar como um país soberano, capaz de produzir desenvolvimento econômico e socioambiental com inclusão e democracia. É, portanto, falar sobre o futuro.

O segundo ponto da fala do presidente que gostaríamos de discutir é sua fala de que ele está mais interessado em discutir o 8 de janeiro do que 1964. Pois nós queremos defender que é impossível falar de um sem abordar o outro.

É a tradição histórica de não punir os golpistas e torturadores do passado que faz com que essas elites econômicas e setores amplos das Forças Armadas se sintam à vontade para continuar buscando soluções de força para impor seus projetos ao país, ao largo da democracia e da soberania popular.

Não é à toa que a nova palavra de ordem do Bolsonarismo seja por “Anistia”. Bolsonaro e seus aliados sabem que o instrumento da anistia sempre funcionou, na história do Brasil, para perdoar os que atentam contra a democracia. O que eles querem é repetir esse padrão histórico.

Por isso, repudiar veementemente o golpe de 1964 é uma forma de reafirmar o compromisso de punir os golpes também do presente e eventuais tentativas futuras.

Lula tem razão quando diz que pela primeira vez militares de alta patente estão sendo chamados para depor e para responder por seus atos. E temos convicção de que o governo não aceitará qualquer chantagem por uma anistia a Bolsonaro e seus cúmplices.

Ao mesmo tempo, porém, Lula diz que a política adotada pelo seu Ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, é “adequada”. Pois aqui há uma contradição gritante: de nada adiantará a punição a indivíduos específicos se o Brasil não colocar na mesa definitivamente um debate sobre as necessárias reformas institucionais nas Forças Armadas. Punir meia dúzia de generais mas não promover mecanismos de adequação da caserna à democracia e de subordinação dos militares ao poder civil significa, em última instância, que o pedido de Bolsonaro por uma “borracha no passado” estará sendo atendido.

Gostaríamos de enfatizar que o próprio presidente faz uma ressalva em sua fala, ao admitir que ainda há desaparecidos no país. Pois bem, presidente, está em suas mãos enfrentar esse tema. É urgente a recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, cujo decreto está na Casa Civil há quase um ano. O processo de reparação não foi plenamente reconstruído: a Comissão de Anistia está julgando menos que o governo Bolsonaro, não retomou os projetos de memória das gestões passadas, como: Marcas da Memória, Caravanas da Anistia, Memorial da Anistia, Clínicas do Testemunho. Nessa seara a reconstrução não chegou. E ainda, falta avançar na implementação das recomendações da Comissão Nacional da Verdade e no cumprimento das sentenças internacionais ao redor do tema da Anistia como impunidade. Ademais, como pedir às filhas, filhos, irmãos, irmãs, netos e netas, sobrinhos e sobrinhas de desaparecidos políticos, cujos corpos jamais foram encontrados, que esqueçam os seus entes queridos numa vala qualquer desconhecida e abandonada pela própria história?

Ao mesmo tempo, chamamos atenção para o fato de que essas não são as únicas pendências do Brasil em relação à ditadura militar. Localizar os desaparecidos deve ser parte de uma agenda mais ampla, que passa inclusive por uma discussão sobre o quanto inúmeros setores da sociedade foram atingidos pela ditadura e até hoje nem foram reconhecidos como vítimas do regime. Indígenas, camponeses, moradores de favelas e periferias, a população negra, os LGBTQIA+, os trabalhadores – é fundamental que reconheçamos, enquanto pais, o quanto o golpe de 1964 impactou esses setores da sociedade, que historicamente foram e continuam sendo alvos preferenciais da violência do Estado. Nesse sentido, há uma pendência enorme do Brasil em termos de memória, verdade, justiça e reparação em relação a essas violações.

Não aceitaremos que, mais uma vez, os governos negociem ou abdiquem dos direitos das vítimas para poder contemporizar com os militares. Não aceitaremos mais essa tutela cujo preço histórico quem tem pago são os familiares, todos os que foram atingidos por atos de exceção, todos que trabalham pela construção da memória para a defesa da democracia.

Por isso tudo, presidente, falar sobre o golpe de 1964 não é remoer o passado. É algo fundamental para que o senhor e seu governo continuem avançando em uma agenda voltada para transformar definitivamente o futuro do país, com vistas a construir um país cada vez mais justo e democrático.”

 

Fonte: Fórum/Coalizão Brasil Memória Verdade Justiça Reparação e Democracia

 

 

VALERIO ARCARY: Incêndio bolsonarista

1 - A mobilização deste domingo, dia 25 de fevereiro, foi muito grande. A rigor, sejamos rigorosos, foi imensa. Foi assombrosa, quantitativa e qualitativamente. O bolsonarismo colocou na rua mais de cem mil pessoas muito exaltadas, durante mais de três horas, sob um calor escaldante. A composição social não surpreendeu: foi de classe média branca, meia-idade, furiosamente anticomunista, arrastando setores populares evangélicos. Mas a dimensão e o ardor, sim. O uniforme das camisetas amarelas da CBF, as incontáveis bandeiras de Israel, o ódio contra Lula, o ressentimento pela derrota eleitoral, a adesão explícita ao projeto golpista, a excitação com o discurso emocionado de Michelle, a adulação do chefe, a empolgação com o extremismo de Malafaia, o cenário meio avassalador e apocalíptico. A moral do neofascismo estava em alta. Saíram às ruas para lutar. A Paulista pode ter sido só o início de uma campanha. O impulso deste domingo deve alimentar novas manifestações.

2 - Não reagiram quando Bolsonaro ficou inelegível, quando estava muito acuado, mas agora voltaram com força. Ocuparam a Paulista no maior ato desde o 7 de setembro de 2021, quando estava na presidência. Só que num contexto, incomparavelmente, mais difícil: uma avalanche de provas está sendo reunida pela Polícia Federal desde a delação premiada de Mauro Cid, confirmando seu comprometimento com a preparação de um golpe de Estado. A presença de quatro governadores – de Minas Geais, Santa Catarina, Goiás e ninguém menos do que Tarcísio de Freitas, mais de cem deputados federais, centenas de prefeitos, entre eles o de São Paulo, além de incontáveis vereadores, revela que tem um respaldo institucional enorme. Sentiram-se vitoriosos.

3 - Parece espantosa esta disposição de incondicional solidariedade pública, um perigoso cálculo de riscos, quando é conclusivo que a investigação sobre os crimes de Bolsonaro, e seu círculo de generais de quatro estrelas, já reuniu provas irrefutáveis de culpa. Mas estavam todos lá. Por quê? Porque seus destinos são indivisíveis do de Bolsonaro. Todos os que foram à Paulista, no chão e no palanque, foram cúmplices do golpismo. O grito que os uniu foi um só: não prendam Bolsonaro. Não nos enganemos, deu para ouvir bem. Saíram reforçados.

4 - O cerco policial-jurídico sobre Bolsonaro apertou desde a operação na casa de Angra dos Reis em meados de janeiro e, um mês depois, quando atingiu os generais, e a extrema-direita decidiu ir para o contra-ataque. Por quê, agora? Porque confiaram que conseguiriam. Não foi somente uma convocação de sua base social para “fazer uma foto”. Foi uma demonstração de força em uma conjuntura defensiva. Quais são os seus objetivos? Não quer ser preso, por isso, dissimulou a chantagem com a fórmula da Anistia. Bolsonaro mostrou os dentes para provar que, se necessário, sabe morder. Ameaçou os Tribunais Superiores e o governo, apoiado na força das redes sociais, nas ruas e no Congresso. Quer a garantia de preservação da legalidade de seu movimento. O centro da tática, para quem ainda vacilava ou duvidava é: Prisão para Bolsonaro e os generais golpistas.

5 - Subestimar o inimigo é autoengano. Diminuir o impacto da concentração da ultradireita, em linha “negacionista” de uma parte da esquerda - o ato não “muda nada”, Alexandre de Moraes “não vai recuar” – não é, somente, uma superficialidade. Não é somente uma análise enviesada dos objetivos de Bolsonaro. Resume uma miopia estratégica. Nunca é “tudo ou nada” e “agora e já” na luta social e política. O combate ao bolsonarismo será um complexo e, talvez, longo processo de luta político-ideológico que tem dimensão internacional, e o desfecho permanece incerto. A subestimação da força social de choque dos neofascistas é um erro de análise e, taticamente, equivocada, porque desarma para necessidade de construir mobilizações de massas nos próximos 8 e 24 de março. Só serve para que se mantenha a atual “hibernação” do povo de esquerda e, também, das direções majoritárias. Tampouco as conclusões “psicologizantes” que pretendem explicar a iniciativa da mobilização porque Bolsonaro está com “medo” de ser preso. Zoar o inimigo é legítimo, e até divertido, mas não é sério. Bolsonaro é um monstro com “instinto” de poder, mas ainda tem força. Está ferido, acuado, na defensiva, mas não menos perigoso.

6 - Ser preso seria uma derrota, mas não irreversível, se conseguir preservar a influência de massas que conquistou. A linha do discurso foi uma manobra apostando na possibilidade de ampliação de alianças com a direita liberal. Já sabemos que há uma posição consolidada em frações da burguesia liberal, que defendeu a terceira via nas eleições, que denuncia Alexandre de Moraes pelos “excessos” das longas penas de prisão contra os “arruaceiros” do 8 de janeiro. Anistia, pacificação política, e defesa da legitimidade da extrema-direita como corrente eleitoral foram as bandeiras de Bolsonaro na Paulista. Explora uma brecha delicada. Não pode ser condenado, sem que os generais de quatro estrelas que estiveram até o fim ao seu lado, sejam, também, colocados na prisão. No Brasil generais golpistas nunca foram julgados e condenados.     

7 - A ultradireita está realizando um giro tático ou reposicionamento político, desde a derrota eleitoral e, sobretudo, desde o fracasso da sublevação do 8 de janeiro do ano passado. O seu projeto é garantir uma presença legal do “movimento” que assegure o direito de participar nas disputas eleitorais deste ano, e acumulação de forças para concorrer com Bolsonaro à presidência em 2026, como Trump está fazendo este ano nos Estados Unidos. Mesmo se for preso, portanto, qualitativamente, enfraquecido, Bolsonaro quer ser candidato. O ato obedece ao cálculo de que tem força social e política para tentar escapar da prisão. Bolsonaro quer negociar, mas a partir de uma posição de força.  

8 - A conjuntura colocou nas mãos da esquerda o desafio da luta pela Prisão de Bolsonaro e dos generais golpistas. O maior perigo agora seria a divisão da esquerda. A esquerda não pode recuar da bandeira Sem Anistia, sem que uma desmoralização irreparável nos atinja. Aqueles que argumentam que a luta pela prisão de Bolsonaro é uma armadilha, porque a ida para a cadeia o “martirizaria” estão errados. A base social do bolsonarismo tem várias camadas. Há um “núcleo duro”, em torno de 10% neofascistas no país, algo em torno de 15 milhões de pessoas, que é inexpugnável. Mas uma simpatia menos ideológica pela extrema-direita alcança mais 15% ou até 20%. O impacto dos julgamentos vai produzir uma erosão em dezenas de milhões de pessoas, em especial nas camadas populares. A Prisão de Bolsonaro não será somente uma batalha jurídica. Não pode repousar somente na autoridade do STF. Será uma campanha pela consciência popular. Não podemos desistir nunca da parcela da classe trabalhadora que foi atraída pelo bolsonarismo. A condenação de Bolsonaro e dos generais seria a maior vitória democrática desde a vitória eleitoral de Lula, ou até desde o fim da ditadura.

9 - Na esquerda devemos ter a lucidez de compreender que a relação social de forças não inverteu. O país continua fragmentado, e a extrema-direita mantém mais peso na parcela politicamente ativa da sociedade, mais ativista nas redes e, também, nas ruas. Mas a relação política de forças mudou, favoravelmente, porque Lula venceu as eleições. Evoluiu para melhor com a firmeza de Alexandre de Moraes contra os golpistas. Só que nada permanece estático, e o que não avança, recua. Quando foi a última vez que a esquerda botou tanta gente na Paulista? Dia da vitória de Lula, em 2022? Tsunami da educação, em 2019? Ele não, em 2018? Vai ser difícil? A única resposta honesta é sim. Mas o bolsonarismo não pode continuar mantendo hegemonia nas ruas e redes, indefinidamente. A pior derrota, já sabemos, é aquela sem luta. Todos os partidos de esquerda, os movimentos sociais populares do campo e cidade, de mulheres e negros, estudantis e da cultura, LGBT’s e ambientais estão chamados a dar um passo em frente e organizar a resposta nos dias 8 e 24 de março.

 

Ø  Lula ‘tranquiliza’ Bolsonaro: “primeiro você vai ser julgado”. Por Aquiles Lins

 

O presidente Lula concedeu entrevista ao jornalista Kennedy Alencar e criticou o pedido de anistia feito por Jair Bolsonaro na manifestação de domingo (25) na avenida Paulista. Durante entrevista à revista Oeste, Jair Bolsonaro defendeu a insólita possibilidade de o governo Lula propor ao Congresso uma anistia aos golpistas que participaram do 8 de janeiro. “No fechamento [do ato de domingo], fui para cima do apaziguamento, com anistia, e isso precisa vir do lado de lá. Eu sei que o Parlamento é o ente que decide essa questão, mas, partindo do Executivo, seria muito bem-vindo”, disse Bolsonaro, que em seguida admitiu achar “muito difícil” que o governo fizesse tal medida. Ora vejam, pedir que o presidente Lula, que assim como o povo brasileiro foi vítima de uma tentativa de golpe contra sua eleição legítima, protagonize um pedido de impunidade contra os principais responsáveis pelo levante fracassado de 8 de janeiro é uma ousadia acima da média para o bolsonarismo. E é também o desespero de alguém que está com medo da prisão. 

Diante da aflição do líder da extrema direita, o presidente Lula respondeu que Bolsonaro está confessando crimes ao pedir anistia e lembrou da trajetória judicial que aguarda o capitão. "Primeiro você vai ser julgado, você cometeu muita barbaridade. Você vai ser julgado, apreciado. Vai ter seu advogado de defesa. Eu só quero que você tenha a presunção de inocência que eu não tive. Quero que você tenha pra você dizer o que fez e o que não fez. É um direito seu, um direito da democracia. E é isso que eu garanto para o meu melhor amigo e para o meu pior inimigo: o direito de defesa pleno", afirmou o presidente na entrevista. "Está pedindo anistia? Você quer apagar a bobagem que fez? A bobagem é que ele se acovardou, pensou o golpe, não teve coragem. Foi embora para os EUA com antecedência, achando que ia acontecer [o golpe], que a sociedade iria sair todo mundo apavorado e ele ia voltar ungido pelas massas. E não foi isso o que aconteceu. O que aconteceu é que as instituições assumiram a responsabilidade pela democracia e você agora está em um processo de investigação", continuou Lula. 

A prisão de Jair Bolsonaro será uma consequência da Justiça diante de todos os crimes cometidos por ele contra o povo, a democracia e a economia do país. Seja a resposta sobre a tentativa de golpe de estado, sejam os crimes na pandemia de Covid que matou 700 mil brasileiros, seja a apropriação de joias e presentes. Anistiar Jair Bolsonaro está fora dos propósitos do sistema político e do sistema judiciário do país. Não vivemos mais na ditadura, nem Bolsonaro nem os militares receberão atestado de impunidade por atentarem contra a soberania do povo. Entretanto, a reafirmação do lema Sem Anistia deve estar na pauta política do dia. É necessário deixar cada vez mais claro que a população não irá aceitar outro desfecho que não a responsabilização de todos os golpistas, incluindo o seu líder.

 

Fonte: Fórum/Brasil 247

 


 Lula na Guiana: o que está em jogo para o Brasil na 'Dubai da América do Sul'?

Nesta quarta-feira (28/02), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) desembarcou em Georgetown, capital da Guiana, para participar da reunião da cúpula de líderes da Comunidade do Caribe (Caricom).

Lula chega como convidado ao evento e deverá fazer o discurso de encerramento da reunião.

Especialistas em relações internacionais e diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam, no entanto, que a visita de Lula ao país está longe de ser uma mera formalidade ou apenas a retribuição de um convite. Para eles, Lula chega à Guiana em um momento crucial na relação entre os dois países.

No campo político, Lula chega ao país na condição de um dos principais líderes da América do Sul e três meses depois ter colocado a diplomacia brasileira para tentar diminuir a temperatura na crise entre a Venezuela e a Guiana em torno da região de Essequibo, uma área disputada há séculos pelos dois países e que é rica em minérios e petróleo.

A ida de Lula ao país tem sido vista pela diplomacia brasileira como uma forma de consolidar a posição de liderança do Brasil na região e manter a tensão entre os dois países em situação contornável.

No campo econômico, porém, a visita acontece em meio ao boom econômico vivido pela Guiana desde 2019, quando começou a exploração petrolífera no país. Desde então, a Guiana saiu da condição de um dos países mais pobres do hemisfério ocidental para a de uma das economias que mais cresce no mundo.

Entre 2019 e 2023, o Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que o PIB do país tenha saído de US$ 5,17 bilhões (R$ 27,7 bilhões) para US$ 14,7 bilhões (R$ 68,2 bilhões), um salto de 184%. Tanto crescimento é visto como uma oportunidade de negócios que o país não pode ignorar.

Nesse período, o fluxo comercial entre Brasil e a Guiana aumentou 2.700%.

E é nesse cenário descrito como de desafios geopolíticos e oportunidades econômicas que Lula chega ao país.

·        Essequibo, influência e liderança

Guiana fica no norte da América do Sul e faz fronteira com o Suriname, Brasil e Venezuela. Ele tem aproximadamente 800 mil habitantes. Segundo o governo, 39,8% da população é composta por pessoas de origem do leste indiano, 30% são negros de descendência africana, 10,5% são indígenas e 0,5% são de outras origens como chineses, holandeses e portugueses.

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a visita de Lula gera oportunidades de ganho político junto à Guiana e ao Caribe, uma região que é historicamente área de influência de países como os Estados Unidos e Reino Unido, mas que, recentemente, também passou a ser alvo de nações como a China.

"A participação do presidente nas cúpulas da Caricom e da Celac mostra uma dinâmica de reaproximação do país com o Caribe e com a América Latina. Nos últimos anos, houve fechamento de embaixadas em alguns países caribenhos. Esse movimento demonstra que o Brasil tem, sim, um olhar especial para a região", disse à BBC News Brasil a secretária de América Latina e Caribe do Ministérios das Relações Exteriores, Gisela Maria Figueiredo Padovan.

A menção à Celac acontece porque, após a visita a Georgetown, Lula deverá participar da cúpula de chefes-de-Estado da Celac, que acontecerá em São Vicente e Granadinas.

Nos últimos meses, a Guiana passou a chamar atenção das autoridades brasileiras por conta da crise entre o país e a Venezuela.

Em meados de novembro, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, anunciou um referendo sobre a incorporação do território conhecido como Essequibo ao mapa do país. Maduro chegou a apontar um general para governar o futuro estado e determinou que agências e empresas estatais desse início ao processo de exploração e pesquisa petrolífera em áreas atualmente exploradas por empresas autorizadas pela Guiana.

O governo da Guiana, por sua vez, criticou a medida e levou a questão para a Corte Internacional de Justiça, na Holanda, que emitiu uma decisão demandando que a Venezuela não tomasse nenhuma medida unilateral que resultasse na mudança das fronteiras do país.

A Venezuela rechaçou a decisão e não reconheceu a autoridade do tribunal para mediar a crise.

A região de Essequibo é disputada pelos dois países há pelo menos 150 anos, mas a escalada de tensão entre os dois países gerou temor no governo brasileiro de que a crise poderia sair de controle.

A tensão foi tanta que as Forças Armadas reforçaram a quantidade de tropas e blindados em Roraima, Estado que faz divisa com a Guiana e com a Venezuela.

Em paralelo, o governo brasileiro enviou emissários como assessor especial para Relações Internacionais do presidente Lula, o embaixador Celso Amorim, à Venezuela para tentar dissuadir Maduro em relação à escalada.

Em dezembro, os dois países concordaram em cessar as declarações hostis sobre o tema, diminuindo a tensão e voltar a dialogar. O Brasil chegou a se colocar como um dos intermediários dessa conversa.

Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes, o principal "motor" dessa visita de Lula ao país é a tentativa de consolidar o esfriamento da crise em torno de Essequibo.

"O que move o Brasil é a ameaça de um conflito na nossa região. E um conflito aqui é tudo o que não se quer", disse o professor à BBC News Brasil.

O professor afirma que a atuação do Brasil na crise até o momento pode gerar dividendos políticos ao Brasil e a Lula.

"A capacidade de o Brasil liderar os esforços para moderar essa crise sobre Essequibo pode se converter em capital político. Isso significa liderança regional. A crise entre Guiana e Venezuela foi uma oportunidade para o Brasil se projetar como grande líder da sua região", afirmou Lopes à BBC News Brasil.

Na avaliação do professor, a crise ainda não está totalmente debelada e pode voltar a causar preocupação com a aproximação do período eleitoral na Venezuela. Há previsão de eleições presidenciais no país ainda neste ano.

"Não acho que a crise de Essequibo esteja definitivamente resolvida. É perfeitamente possível que o tema seja requentado e que Maduro resgate essa história para buscar legitimação e buscar os dividendos eleitorais fáceis. Todo cuidado é pouco", disse o professor.

A professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Carol Pedroso também avalia que a crise em Essequibo não está totalmente solucionada e que o Brasil ainda terá um papel importante nesse tema.

O entendimento é de que diante da imprevisibilidade sobre o cenário político venezuelano, o Brasil tenha um papel mais relevante na região.

"É preciso que a comunidade internacional, especialmente o Brasil que tem tomado à frente nesse processo de diálogo entre Venezuela e Guiana, siga acompanhando de perto a situação, até porque estamos falando também de um território fronteiriço e não nos interessa mais instabilidades que possam nos atingir", disse a professora à BBC News Brasil.

Gisela Padovan disse que um dos objetivos do Brasil na região é manter o diálogo em torno dessa crise aberto.

"Em relação a Essequibo, o objetivo é consolidar os termos da declaração de Argyle e manter espaços de diálogo entre os dois países", disse a embaixadora em menção à declaração conjunta entre Guiana e Venezuela assinada em Argyle, capital de São Vicente e Granadinas, em 14 de dezembro do ano passado e que foi responsável pela redução da temperatura da crise.

·        Negócios com a 'Dubai sul-americana'

No campo econômico, os especialistas em relações internacionais ouvidos pela BBC News Brasil apontam que o crescimento da economia guianense representa uma série de oportunidades para o Brasil.

"Como a Guiana está no caminho de se tornar uma potência petroleira, já sendo chamada de 'Dubai sul-americana', as possibilidades comerciais já têm se ampliado bastante. Nos últimos anos, o comércio bilateral cresceu saindo da casa dos milhões e alcançando os bilhões de reais", disse a professora Carol Pedroso.

Dados levantados pela BBC News Brasil junto ao Ministério da Indústria, Comércio, Desenvolvimento e Serviços (MDIC) mostram a evolução do fluxo comercial entre os dois países.

Em 2019, ano em que começou a exploração de petróleo na Guiana, a balança comercial entre o Brasil e a Guiana era de US$ 46,3 milhões.

Em 2023, esse valor saltou para US$ 1,313 bilhão. A explosão no fluxo comercial se deu, especialmente, pelo aumento das exportações da Guiana para o Brasil. Em 2023, por exemplo, o país exportou US$ 986 milhões em produtos para o país. Desse total, 99,7% era composto por petróleo que o Brasil passou a comprar do país vizinho.

Atualmente, o saldo dessa balança é favorável à Guiana. A diferença entre o que o Brasil exporta e o que importa do país é de US$ 659 milhões. Dos US$ 327 milhões exportados pelo Brasil ao país, a maior parte era composta por produtos manufaturados como torneiras, tubulações e revestimentos.

Apesar disso, a professora Carol Pedroso avalia que há oportunidades a serem exploradas pelo Brasil no país.

"Países que passam a dedicar a sua economia ao petróleo tendem a abandonar outras pautas produtivas, o que também abre a possibilidade para que o Brasil se torne fornecedor de outros bens e serviços [...] caso esse crescimento econômico espetacular seja traduzido também em aumento do poder de compra de sua população, o potencial de fortalecimento do comércio bilateral se torna ainda mais relevante", disse a professora.

A avaliação é parecida com a da embaixadora Gisela Padovan.

"Um dos nossos principais focos é a integração física entre o Brasil e a Guiana, especialmente pela estrada de terra que desejamos ver pavimentada entre Lethem e Linden. O outro foco é na oportunidade de expandir nossa presença comercial no país. O Brasil tem uma economia diversa e a Guiana está crescendo. Isso representa oportunidades para o país, sobretudo para a Região Norte", disse a diplomata.

Em meio ao crescimento sem precedentes da economia do país, a Guiana se transformou em uma espécie de canteiro de obras global com obras públicas sendo disputadas por empreiteiras de diferentes países. Entre eles estão a China, os Estados Unidos, Índia e o Brasil.

É de olho nesse mercado que a diplomacia brasileira aponta que um dos focos comerciais do Brasil é a integração regional com o país.

Atualmente, uma das principais obras de infraestrutura da Guiana é tocada por uma empreiteira brasileira, a Álya Construções, novo nome da Queiroz Galvão.

A empresa já foi uma das maiores empreiteiras do Brasil, mas foi alvo da Operação Lava Jato.

A empresa é responsável pela construção de um trecho de 121 quilômetros de uma rodovia que, quando concluída, deverá cruzar o país ligando as cidades de Lethem a Linden. A obra de US$ 190 milhões (R$ 939 milhões) é financiada por entidades brasileiras, mas pelo Banco de Desenvolvimento do Caribe.

Procurada pela BBC News Brasil, a Álya Construções informou que não iria fazer comentários sobre as perguntas feitas pela reportagem.

A rodovia é vista como importante para o Brasil porque Lethem fica na divisa com Roraima e poderá ser usada como via de escoamento de produtos brasileiros para o país.

Além de obras de infraestrutura, empresários brasileiros, especialmente os que vivem em Roraima, já passam a olhar para o país vizinho como um potencial mercado consumidor.

Em outubro, por exemplo, uma comitiva de 40 empresários brasileiros de Roraima foi a Georgetown para encontrar com executivos e possíveis clientes da Guiana.

Outro setor que aparentemente também está de olho no crescimento da Guiana é o agropecuário. Roraima é conhecido pela produção de produtos como arroz e soja em áreas do chamado "lavrado", um bioma semelhante ao Cerrado e que também existe na Guiana. Em canais do YouTube, já há produtores roraimenses buscando parcerias com produtores guianenses para produzir commodities agrícolas no país vizinho.

Para além das oportunidades comerciais, tanto Dawisson Lopes quanto Carol Pedroso avaliam que uma maior atenção do Brasil em direção à Guiana também teria o objetivo de melhorar as condições do país na competição global por negócios e influência na região.

"A Guiana e a Venezuela têm uma economia política do petróleo que é absolutamente pulsante e que tem uma escala muito importante e é claro que isso desperta interesse não só no Brasil, mas em outros atores regionais e extra-regionais. Não é à toa que os Estados Unidos e o Reino Unido se envolvem na crise de Essequibo. A aproximação brasileira pode ser reverter em ganhos econômicos para o país", disse Lopes.

A avaliação de Carol Pedroso é semelhante.

"Justamente pelo fato de que a Guiana já ter as suas particularidades e possuir uma inserção internacional mais consolidada junto ao mundo anglo-saxão, isso reforça a importância de recolocarmos este país no nosso radar diplomático, pois trata-se de uma oportunidade importante para nós no âmbito político, econômico e estratégico", disse a professora.

 

Fonte: BBC News Brasil

As doenças 'esquecidas' que deixam 28 milhões de brasileiros sob risco

Todos os anos, 28,9 milhões de brasileiros correm o risco de sofrer com alguma das doenças tropicais negligenciadas que ainda assolam o país. Isso representa 14% da população total.

Essa estimativa praticamente dobrou no período entre 2016 e 2020 — até 2015, acreditava-se que esses problemas de saúde poderiam afetar cerca de 15 milhões de pessoas (ou 7,3% da população).

Esses são alguns dos dados que aparecem em um boletim epidemiológico publicado pelo Ministério da Saúde no final de janeiro.

Entre as condições que aparecem na lista, algumas possuem diagnóstico e tratamento disponíveis há anos na rede pública, como a hanseníase e o tracoma.

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Outras estão diretamente relacionadas às condições precárias de moradia ou à falta de saneamento básico e acesso à água potável, casos de esquistossomose e filariose linfática.

Como mostrou o Censo 2022, 49 milhões de brasileiros (24% da população) ainda vivem em residências sem descarte adequado de esgoto, 18 milhões (9%) não têm coleta de lixo, 6 milhões (3%) não têm abastecimento de água adequado e 1,2 milhão (0,6%) não têm banheiro ou sequer um sanitário.

Há algumas doenças que se espalham praticamente por todo o território nacional, como os acidentes ofídicos (as mordeduras de serpentes), e outras que estão restritas a pouquíssimos municípios, como a raiva humana.

Em editorial divulgado recentemente em uma publicação acadêmica, representantes do Ministério da Saúde admitiram que a existência dessas doenças no país — e o fato de elas afetarem principalmente populações socialmente vulneráveis — "nos envergonha como nação".

Mas um projeto lançado pelo governo federal nas últimas semanas promete eliminar ou controlar muitas dessas enfermidades.

·        Problemas esquecidos

Em linhas gerais, as doenças tropicais são definidas como aquelas que acontecem nos trópicos ou nas regiões mais quentes do planeta.

Embora o conceito seja um tanto impreciso — algumas dessas condições também aparecem nas zonas temperadas, por exemplo —, é tradicionalmente usado para reunir uma série de quadros diferentes, que vão desde a malária e a dengue até a dracunculíase e as micoses profundas.

Mas quando uma doença tropical pode ser considerada como negligenciada?

"São aquelas condições em que não existe um investimento importante, principalmente no que diz respeito à inovação tecnológica e à descoberta de novos medicamentos, vacinas ou testes diagnósticos", diz o infectologista Julio Croda, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Essas enfermidades também costumam estar relacionadas à pobreza e são "esquecidas" do ponto de vista do poder público. Geralmente, não há programas para prevenção, detecção precoce ou tratamento delas.

"Falamos de doenças negligenciadas, mas o correto seria falar de doenças que acometem populações negligenciadas", argumenta Croda, que também é professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.

"Isso porque elas estão associadas a desigualdades sociais e econômicas, o que também leva ao baixo interesse da indústria farmacêutica em produzir inovações, pois do ponto de vista financeiro não se trata de um mercado lucrativo."

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que as doenças tropicais negligenciadas afetam 1,7 bilhão de pessoas no planeta e estão relacionadas a 200 mil mortes todos os anos.

A organização aponta que, além dos custos à saúde e da perda de produtividade, essas enfermidades "são responsáveis por outras consequências, como deficiências, estigmatização, exclusão social e discriminação, que colocam uma pressão considerável sobre os pacientes e as famílias deles".

A OMS inclui na lista das doenças tropicais negligenciadas 25 condições diferentes.

Destas, dez são citadas diretamente no mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde sobre o tema.

A maioria delas são causadas por vermes, protozoários, bactérias ou vírus.

"O tracoma, por exemplo, tem diagnóstico e tratamento simples, que se baseia em uma dose única de antibiótico. Não é possível que nós ainda tenhamos casos de brasileiros que ficam cegos por causa dessa infecção", diz Croda.

·        Vulneráveis duplicados

O número de brasileiros sob risco todos os anos, que se refere ao período de 2016 a 2020, praticamente dobrou em relação ao estimado para 2015.

Mas o que explica um salto tão grande?

Para o médico André Siqueira, do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI-Fiocruz), não há um único fator que esteja por trás desse aumento.

"Primeiro, tivemos uma melhora nos sistemas de detecção e informação, que permitem conhecer os cenários em que as pessoas estão mais expostas", diz.

Ou seja, anteriormente, quando nem se sabia ao certo a verdadeira situação dessas doenças — número de casos e mortes, locais com mais transmissão, etc. — era ainda mais difícil estimar o impacto delas na população.

"Em segundo lugar, existem condições que podem favorecer a ocorrência dessas doenças", diz o especialista, que é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.

Entre essas condições, não é possível ignorar o impacto das mudanças climáticas.

O aumento médio da temperatura do planeta favorece o espalhamento de insetos transmissores de doenças, como a leishmaniose.

Embora não apareçam na lista de doenças negligenciadas do Brasil, o calor também representa uma boa notícia para o mosquito por trás de dengue, zika e chikungunya — o Aedes aegypti.

A epidemiologista Ethel Maciel, secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, cita ainda dois outros elementos que ajudam a entender este cenário.

"O próprio aumento da pobreza que vivenciamos nos últimos anos no Brasil também impactou esses números", diz Maciel.

"Na Amazônia, tivemos secas recentes, o que fez muitas populações ficarem desassistidas do ponto da saúde, porque há lugares onde você só chega de barco."

A especialista ainda aponta que o garimpo ilegal "restringiu ou dificultou o acesso à água e aos alimentos no território yanomami e em muitas outras regiões".

·        Como resolver esse problema?

Para lidar com as doenças negligenciadas e outras condições de saúde, o governo federal anunciou no início de fevereiro o programa Brasil Saudável.

A partir do lançamento do projeto, que contou com a presença do biólogo Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, o Brasil se tornou o primeiro país do mundo a lançar uma política que pretende eliminar ou reduzir o impacto de 14 doenças ou infecções que têm um componente social, relacionado à pobreza ou às populações vulneráveis.

O Brasil Saudável visa erradicar até 2030 doenças como malária, Chagas, tracoma, filariose, esquistossomose, oncocercose e algumas verminoses intestinais.

Além disso, há metas para reduzir casos de tuberculoseHIVhanseníase e hepatites virais — e acabar com a transmissão vertical (quando o agente infeccioso passa da mãe para o bebê na gestação, parto ou amamentação) de HIV, sífilis, hepatite B, Chagas e HTLV.

O Brasil Saudável é liderado pelo Ministério da Saúde, mas conta com a participação de 14 ministérios reunidos em um comitê, porque muitas das ações não envolvem apenas a prestação de serviços médicos, mas também questões de saneamento básico, moradia e combate à pobreza.

"Precisamos do Ministério da Justiça, porque algumas das doenças se concentram no sistema prisional. Precisamos do Ministério dos Povos Indígenas, porque algumas dessas populações são mais afetadas por determinadas condições. Precisamos do Ministério da Igualdade Racial, uma vez que parte das enfermidades acomete desproporcionalmente a população negra. E assim por diante", exemplifica Maciel.

"O Brasil pode ser protagonista no enfrentamento de muitas dessas doenças".

Alguns dos problemas negligenciados que aparecem no boletim epidemiológico já estão bem próximos de virar coisa do passado.

É o caso da filariose linfática, também conhecida como elefantíase. O Brasil tinha poucos focos, em cidades pernambucanas, e não registrou casos nos últimos anos.

Com isso, as autoridades sanitárias fizeram um dossiê no final do ano passado pedindo que a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), o braço da OMS nas Américas, conceda o certificado de eliminação dessa verminose ao país.

Maciel espera que o Ministério da Saúde consiga fazer ainda em 2024 uma requisição parecida sobre a oncocercose e o tracoma, para que esses quadros também estejam oficialmente fora do mapa brasileiro.

Siqueira pondera que a eliminação de uma moléstia não significa que a história acabou.

"É possível, sim, eliminar essas doenças, e nosso país já fez isso em outras ocasiões. Mas a fragilidade dos sistemas de saúde locais podem fazer com que elas voltem", observa ele.

"Para muitas delas, precisamos de estratégias conjuntas que ultrapassam o setor da saúde e estão relacionadas às condições de vida e de habitação melhores."

Croda também vê com bons olhos a iniciativa do governo e chama a atenção para a necessidade de investimentos.

"É importante existir uma vontade política para eliminar essas doenças, mas precisamos ir além", aponta ele.

"Necessitamos de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, porque não há interesse da indústria farmacêutica em criar tratamentos, vacinas ou testes diagnósticos para essas condições."

O infectologista lembra que, há alguns anos, existia uma grande dificuldade em se obter exames para detectar a doença de Chagas — e isso só mudou quando o poder público decidiu que o Brasil iria liderar essa busca por testes.

"Sem investimentos destinados para isso, não conseguiremos atingir as metas de eliminação", alerta Croda.

Maciel pontua que haverá financiamento para o projeto, e os valores serão maiores ao que é historicamente gasto com as doenças negligenciadas.

"Além disso, o Novo PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] também tem os vazios assistenciais como alvo, com foco especial no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, onde muitas dessas condições têm maior concentração."

 

Fonte: BBC News Brasil