Balanço da
esquerda no final de 2024
Começando nossa análise da situação política atual pelo fim: a
eleição presidencial de 2026 deveria ser nosso ponto de conclusão, mas a
realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT,
não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para esse
pleito. Lula se consolidou como a única liderança capaz de unir dois pontos
cruciais: o compromisso com as pautas populares e a habilidade de negociação
política. A popularidade de Lula é grande, principalmente devido à sua
capacidade de comunicação e ao compromisso contínuo com as camadas mais pobres
e vulneráveis. Ele fala uma linguagem acessível a todos, independentemente de nível
cultural ou educacional.
Além de sua popularidade com as massas mais pobres, Lula
demonstrou notável habilidade em negociar politicamente, conseguindo
articular-se até com setores conservadores, algo raro para uma figura de
esquerda. Essa habilidade, constatada em seus primeiros mandatos, é essencial
atualmente, com um Congresso onde a esquerda ocupa apenas um quarto das
cadeiras. Todos esses fatores fazem de Lula um candidato inevitável à sucessão
de si mesmo. Esse sucesso, porém, levanta uma preocupação: se Lula for
reeleito, ele deixará a presidência quase meio século após emergir como grande
líder popular, algo raro em democracias complexas como o Brasil. Um caso
comparável seria Fidel Castro, mas Cuba é um país menor e menos complexo, além
de não ser uma democracia. Já alerto que não culpo Lula por o PT não haver
gerado, neste longo período, lideranças comparáveis à sua; pelo que conheço do
Presidente, ele se empenhou sempre em projetar nomes qualificados, entre eles,
Fernando Haddad. Mas é um fato: o PT é menor que o assim-chamado lulismo. E
essa situação, preocupante, se dá embora o PT seja o único partido no Brasil
digno de ser chamado de partido! Apesar de termos dezenas de agremiações, o PT
é a única com convicções políticas claras. Já tivemos, além dos sempre pequenos
partidos comunistas ou socialistas, outro grande partido com valores definidos,
o PSDB, que defendia sob o nome de social-democracia uma política considerada
por alguns como neoliberal. Essa política buscava liberalizar a economia, ao
mesmo tempo em que promovia políticas sociais melhores do que as dos governos
anteriores no Brasil. No entanto, sendo atualmente o único partido digno de tal
nome, o PT mostra o “deserto” restante de discussão política em que vivemos.
Alberto Carlos Almeida, cientista político, tem uma frase
relevante: no Brasil, cada um tem direito a um partido para chamar de seu. Isso
significa que, quando alguém perde uma disputa dentro de um partido, cria um
novo partido para defender suas ideias. Tal postura dificulta a formação de uma
educação política sólida, pois qualquer divergência se converte em ruptura,
impedindo o crescimento de ideias dentro de uma família política comum. Esse é
um dos motivos pelos quais temos tantos partidos, e a relação com eles acaba
sendo patrimonialista, ou seja, cada partido se torna uma propriedade privada. Recentemente,
o PRTB, partido sem representação no Congresso, lançou Pablo Marçal como
candidato em São Paulo. Seguiu-se uma polêmica: teria havido, antes de sua
indicação, um acordo para se entregar a direção do partido a uma pessoa
específica – o que daria a entender que o PRTB seria tratado como propriedade
privada. Essa tendência não é incomum nos partidos brasileiros – um modelo do
qual o PT escapa. Aliás, já no começo do governo Lula 1, uma divergência
irreconciliável dentro do PT resultou na criação do PSOL. É verdade que a
divergência era radical, e não cabiam os dois grupos no mesmo partido.
Em democracias mais avançadas, divergências dão vida ao próprio
partido. Em 2008, após uma disputa acirrada pela indicação presidencial entre
Barack Obama e Hillary Clinton, ambos continuaram no Partido Democrata. Hillary
Clinton tornou-se Secretária de Estado de Barack Obama e mais tarde foi
candidata dele à sua sucessão. No Brasil, essa articulação é rara. Vejam o
episódio da convenção do PMDB em 1982: quando Franco Montoro venceu a
indicação, seu adversário Orestes Quércia ameaçou mudar de partido e pôr em
risco sua vitória; Franco Montoro acabou-lhe cedendo a posição de vice em sua
chapa. No caso, porém, não foi uma composição, mas sim uma quase chantagem por
parte de Orestes Quércia. No debate que se seguiu a minha fala, uma pessoa
levantou a questão da necessidade de um partido de direita democrático – e se
nós, que não somos de direita, deveríamos lutar por isso. O problema é que,
embora seja desejável um partido de direita democrático, essa ideia é mais
defendida pela esquerda do que pela direita. Já tivemos essa sensibilidade
democrática à direita, especialmente com o grupo que se formou em torno de
Fernando Henrique Cardoso na década de 80, culminando em sua eleição
presidencial em 1994. Esse movimento buscou mostrar à direita e ao empresariado
que era possível disputar e vencer eleições sem recorrer a golpes ou ditaduras.
Em parte, devemos a essa catequese da direita por egressos da esquerda a
relativa paz institucional que vivenciamos do impeachment de Fernando Collor,
em 1992, até o de Dilma Rousseff, em 2016. Foi provavelmente, em toda a nossa
história, o único período em que tivemos uma direita democrática. Contudo, após
perderem quatro eleições consecutivas, as forças de direita apoiaram o golpe de
2016. Pagaram um preço por isso: tornaram-se um sustentáculo – subordinado – da
extrema direita. Às vezes, parece-me que a extrema direita é como um inseto que
causa uma doença incurável: é difícil, uma vez assumido o extremismo, voltar a
uma posição que se inscreva no arco democrático. Assim, durante duas décadas,
mesmo quem tinha uma sensibilidade extremista votou num partido, o PSDB, que
detinha um histórico de defesa dos direitos humanos e de preocupações sociais.
Seus líderes vinham da luta contra a ditadura. Contudo, quando, para se chegar
ao impeachment de Dilma Rousseff, o candidato por ela derrotado em 2014 se
subordinou ao presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha, mesmo sendo
este último acusado de delitos de corrupção, o peso das duas tendências se
inverteu. Em vez de termos uma pequena extrema direita votando na direita,
passamos a ter a direita seguindo a extrema direita. É o que hoje temos.
Na verdade, a educação da direita para aceitar a democracia
deveu-se a uma parte da esquerda, que foi se moderando e se convenceu, em algum
momento da longuíssima agonia da ditadura, de que a democratização não poderia
vir da esquerda, ou só da esquerda, mas precisava de uma direita civilizada.
Desta forma se estabeleceu uma divergência entre forças então progressistas,
das quais umas foram criar o que pretendia ser um “grande partido popular” (que
acabou sendo o PT), outras priorizaram uma grande aliança com a direita não
(mais?) adepta de tortura, censura e ditadura. Essa segunda família acabaria
sendo a coligação de Fernando Henrique Cardoso, que unia forças desde a direita
moderada até a centro-esquerda. Na década de 2000 e em parte de 2010, a
política brasileira era comumente dividida em três partes: um terço apoiava o
governo do PT, outro terço fazia oposição, e o último era variável, mudando
conforme a conjuntura. Eu criei as expressões “terço gordo”, para o desempenho
vitorioso do PT, que ia além dos 36% e chegava quase aos 40, o que se mostrava
suficiente para vencer eleições, ao se expandir e além disso atrair, no segundo
turno, votos do terço neutro; e a de “terço magro”, para a queda do PSDB abaixo
dos 30%. O terceiro terço era disputado, muito eleitor se convencia dele, a
partir da campanha eleitoral. Esse foi um período em que, ao longo da campanha,
a esquerda crescia. A discussão política atendia assim ao que dela esperamos:
esclarecia propostas, desfazia mentiras, aproximava o eleitor de seu interesse.
Isso parou de acontecer em algum momento – possivelmente, em 2014, quando a
avalanche de mentiras e fatos plantados disparou. O breve iluminismo se
esgotou, ante a intensidade do que ainda não se chamavam fake news,
mas já tinha seus traços. A campanha de 2014 mostrou isso, com mentiras
divulgadas na véspera da eleição e com a revista Veja espalhando
cartazes com a capa do número datado do dia do pleito, quando já era proibida a
propaganda política. Mas, para além das mentiras, esse esgotamento do debate
político já mostrava o engessamento – que em breve ocorreria – dos três terços.
Vejam que nos últimos anos, no Brasil como nos Estados Unidos, a derrota de
Jair Bolsonaro e a de Donald Trump não diminuiu, longe disso, o número de seus
simpatizantes ou partidários. Possivelmente, o deslocamento de todo o debate
político para a questão da corrupção contribuiu muito para isso. Quando se fala
de crimes, não há o que negociar. Podemos negociar políticas sociais,
econômicas, tudo, mas com criminosos não há o que tratar. A criminalização da
política, pelos lavajatistas, assim despolitizou o ambiente brasileiro,
substituindo o diálogo pelo ódio. Nos últimos dez anos, esse engessamento se
expressa no fato de que uma extrema direita assumiu o espaço da antiga direita.
No Brasil e em outros países, essa extrema direita não adota os valores
democráticos típicos da direita tradicional, como a europeia, dificultando o
diálogo e reduzindo a disposição em mudar de opinião. Esse contexto também
trouxe um desvio de foco para pautas moralistas, esvaziando a política e
afastando questões essenciais. Lula, no entanto, é uma das poucas lideranças
que conseguem transitar entre diferentes segmentos, inclusive entre setores
conservadores, como demonstrado em seus primeiros mandatos. Os governos Lula 1
e 2, seguidos por Dilma, impulsionaram o que se chamou a inclusão social
pelo consumo, permitindo que a população de baixa renda adquirisse produtos
básicos, beneficiando assim a economia nacional.
<><> Consumo ou educação política?
Contudo, houve críticas a essa política de inclusão social,
apontando que ela não gerou uma consciência política. Faltou ao PT, nos
governos de Lula e Dilma, uma educação política que explicasse melhor o que é
ser de direita ou esquerda, indo além de caricaturas e de campanhas baseadas em
acusações de corrupção ou incompetência. Uma verdadeira educação política
envolveria, em primeiro lugar, o entendimento das diferenças entre direita e
esquerda a partir das propostas e dos valores de cada lado. Esse tipo de
discussão se perde, quando as campanhas focam apenas em desqualificar o
adversário, usando-se o argumento mais comum no Brasil – o da acusação de
corrupção. (Por sinal, nos primórdios do PT, a acusação que mais se lhe fazia
era de incompetência – a tal ponto que Paulo Maluf, que se apregoava como
competente, foi certa vez ironizado por Lula, que disse que o adversário
competia, competia e perdia).
O segundo ponto da educação política diz respeito às políticas
públicas e sociais, importantes em governos social-democratas como os da Europa
Ocidental e do Canadá após a Segunda Guerra Mundial. Esses governos, ao
garantirem direitos básicos como saúde, educação, transporte e segurança
públicos, buscavam igualar as oportunidades no ponto de partida, o que tornava
e torna toleráveis as desigualdades no ponto de chegada. Vou dar exemplos de
falta de educação política observados nos governos do PT, de Lula e Dilma
Rousseff. Antes disso, lembro o comentário do cientista político Luciano
Martins, amigo pessoal de Fernando Henrique Cardoso, que nos anos 90 criticou o
PSDB por este não ter promovido uma educação política na sociedade brasileira.
Embora ele não tenha detalhado o que entendia por essa educação, é algo que
considero importante, e tentarei explicar com base em alguns exemplos. Durante
o governo Lula, ele frequentemente se mostrava feliz em seus discursos ao dizer
que as pessoas mais pobres estavam finalmente podendo fazer três refeições
diárias e, ocasionalmente, consumir carne aos fins de semana. Isso foi
simbolizado pela imagem do churrasco com picanha, representando o ganho de
conforto e prazer para a população de baixa renda. Além disso, houve uma
expansão no acesso à linha branca, com mais brasileiros adquirindo geladeiras,
fogões, micro-ondas, máquinas de lavar, que eram itens antes inacessíveis para
muitos. Contudo, esse discurso e essa imagem eram eticamente neutros. Lula
enfatizava o conforto e o prazer, mas não apresentou o combate à fome como uma
grande questão ética. A erradicação da fome foi comunicada mais como uma
conquista de bem-estar do que como um objetivo moral elevado. O PT, assim, se
distanciou da retórica ética que o caracterizava quando estava na oposição,
onde sempre defendia duas causas centrais: o combate à miséria e o combate à
corrupção. Antes de assumir o governo, o PT era considerado um partido com
forte compromisso ético, a ponto de muitos duvidarem que, ao chegar ao poder, ele
conseguisse governar. Entretanto, ao longo do governo, houve uma mudança no
discurso, mais focado em trazer conforto às classes populares e menos em
sustentar uma bandeira ética. Esse foco na satisfação material criou uma
abertura para que, na campanha de 2006, o adversário de Lula, Geraldo Alckmin,
pudesse usar o slogan “Por um Brasil decente” – algo que seria inconcebível em
outro momento. Essa abordagem foi um dos fatores que enfraqueceram a imagem do
PT, especialmente junto às classes médias, muito sensíveis ao tema da ética na
política. Esse episódio ilustra como o PT, entre 2003 e 2016, não conseguiu –
ou nem tentou – manter uma visão ética robusta em sua comunicação. Essa falta
não só afetou a percepção do partido, mas também enfraqueceu o que considero
essencial em uma política progressista: uma ética positiva. Diferentemente da
direita, que frequentemente limita a ética à ausência de corrupção – que é uma
forma do que chamo ética negativa, uma ética da contenção e não da ação –, a
esquerda deve ter uma ética afirmativa, que promova valores como alimentação
para todos e uma vida digna.
No começo de meu trabalho como Ministro da Educação, mencionei
essa visão à presidenta Dilma Rousseff, entendendo que o combate à fome e à
miséria deveria ser tratado como uma causa ética fundamental. Não deveríamos
deixar os temas éticos a cargo da oposição – que teria uma visão tímida da
ética, apenas negativa – mas precisávamos assumir de volta essa que foi uma
bandeira do PT. Dilma Rousseff gostou da ideia, e gostou de novo meses depois
quando retornei ao tema. O fato de ter gostado também da segunda vez indica,
porém, que o assunto tinha saído do seu radar: essa ideia foi perdida. Em suma, a ética é fundamental para uma
política progressista, que visa à emancipação do ser humano e à transição do
“reino da necessidade” para o “reino da liberdade”, conforme conceituado por
Marx. Outro episódio ocorreu no governo Dilma Rousseff, durante o lançamento
das obras do conjunto habitacional do Pinheirinho, em São José dos Campos, no
mês de março de 2014. Na ocasião, Dilma afirmou aos moradores que eles não
deviam nada a ninguém, mas sim a si mesmos e à própria mobilização. Embora
compreensível a intenção de evitar que políticos explorassem a entrega para
fins eleitorais, essa fala desvalorizou a importância das políticas públicas e
do papel do governo nas conquistas sociais. Dessa forma, criou-se uma impressão
de que a mobilização popular já bastaria para alcançar essas conquistas, o que
diminui o reconhecimento da política como um instrumento essencial de
transformação. Esse caso exibe a dificuldade, ainda que nutrida pelas melhores
intenções, de expor as políticas públicas como devedoras da política. É tal a
aversão dos cidadãos comuns – e da própria presidenta Dilma Rousseff – pelos
políticos que se joga fora o bebê com a água do banho. Mesmo que nossos
políticos não estejam à altura de sua missão, não temos saída fora da política.
Essa situação desperta uma dupla pergunta: por que o PT e a esquerda deixaram
de ser atraentes para jovens idealistas e também para as camadas periféricas da
população?
Dois exemplos dessa perda de apelo são a derrota do PT nas
periferias de São Paulo e a ascensão de figuras como Pablo Marçal, que
representam uma visão conservadora e individualista. Um caso interessante é o
da deputada Tábata Amaral. Trinta anos atrás, alguém com seu perfil
provavelmente se juntaria ao PT, que era o partido dos jovens idealistas
empenhados em mudar o mundo. Hoje, o PT parece não atrair mais esse tipo de
militância. Essa perda de apelo, tanto entre as camadas periféricas (em
proveito de Pablo Marçal) quanto entre os idealistas de classe média (caso de
Tábata Amaral, embora ela seja de origem pobre), que já formaram parte
significativa da militância do PT, é um ponto que deve gerar preocupação e
reflexão sobre o futuro do partido e da esquerda no Brasil. Os casos de Tábata
Amaral e Pablo Marçal são instrutivos, embora seja importante, especialmente
para um público de esquerda, lembrar que eles são diferentes e opostos. Na
recente campanha eleitoral em São Paulo, Tábata Amaral foi quem mais corajosamente
enfrentou Pablo Marçal. No entanto, ambos representam indicadores da
deficiência do PT e da esquerda em atingir públicos que historicamente seriam
seus. Tábata Amaral é jovem, idealista e assumiu a educação como bandeira. Nos
anos 1990, seria natural que visse o PT como uma plataforma para seus valores e
seu empenho. No entanto, na década passada, ela seguiu outro caminho,
encontrando espaço para atuar na educação através de institutos do terceiro
setor, financiados pelo setor privado, com foco na melhoria da educação pública
básica. Há 30 anos, seria quase impensável que alguém como Tábata Amaral não se
voltasse para o PT. Este reunia tudo o que eram propostas para um mundo melhor,
inclusive as contraditórias entre si. Mas isso não mais acontece, e tal
fenômeno deveria fazer perguntar por que o PT deixou de ser o desaguadouro para
muitos que querem melhorar o mundo. Atacar a classe média não resolve isso.
Criticá-la ou atacá-la não resolve essa questão fundamental.
O caso de Pablo Marçal é bem diferente. Ele aparenta não ter
valores éticos, como se viu na campanha, mas atraiu muitas pessoas da periferia
pobre de São Paulo, que viram nele uma solução pessoal e individualista para
seus problemas. Neste caso, também é inútil tentar desmenti-lo ou refutá-lo
(ainda menos, tentarem “explicar-me” por que ele não é um modelo positivo; eu o
sei muito bem; se alguém não entendeu que eu sei, só posso lamentar). É preciso
entender por que ele conseguiu essa conexão, enquanto o PT, que historicamente
representa esse público, não. Esse problema lembra uma crítica feita por Elio
Gaspari ao PSDB, quando esse partido estava no auge: ele dizia que, quando se
discordava dos tucanos, eles repetiam a mesma posição com outras palavras,
acreditando que a discordância se devia apenas a uma falta de compreensão.
Agora, essa retórica aparece no PT . Quando alguém critica o partido, a
resposta é explicar de forma paternalista e condescendente por que Tábata
Amaral ou Pablo Marçal estariam errados e por que a visão petista estaria
certa. Vemos assim um partido, que abriu tanto espaço à discussão e à
divergência, sendo tomado por uma ortodoxia. Simplesmente explicam, inclusive a
mim, por que Tábata Amaral estaria errada e por que Pablo Marçal seria ainda
“um pouco” pior. Como se eu não tivesse minhas divergências dos dois. E pior,
como se eu ou muita gente não soubesse pensar, e a única saída seria mais do
mesmo, muito mais do mesmo. É muito preocupante essa postura, porque,
simplificando, ela significa que quando algo não dá certo, em vez de consertar,
se insiste no erro. A radicalização no erro é algo que deve ser evitado por
quem faz política. Porque ela é um caminho seguro para a derrota! Isso ficou
evidente na campanha para a prefeitura de São Paulo, onde o presidente Lula
insistiu na candidatura de Marta Suplicy como vice, sem que isso trouxesse
impacto significativo nos votos de Guilherme Boulos. A proporção de votos foi
praticamente a mesma de quatro anos atrás, mesmo somando o histórico eleitoral
de Marta Suplicy. Portanto, é essencial compreender o que está acontecendo,
baixar o “salto alto”, respeitar a divergência e buscar entender o cenário
atual.
Finalmente, vamos falar sobre os impasses atuais – começando
pela contribuição civilizatória de dois presidentes extraordinários da história
recente do Brasil. O primeiro é Fernando Henrique Cardoso. Sei que uma simples
menção elogiosa a ele pode gerar reações, aqui, de quem não quer nem ouvir o
que será dito. Mas, a meu ver, a grande obra de Fernando Henrique não foi tanto
o Plano Real, que estabilizou a inflação e afastou do Brasil o incômodo
terrível herdado da ditadura militar, a qual deixou o poder com uma inflação
superior àquela que serviu de pretexto para a deposição de João Goulart pela
direita brasileira, 21 anos antes. A principal façanha de Fernando Henrique, em
minha opinião, foi normalizar a relação entre direita e esquerda. Lembro até
uma declaração de Luis Nassif, dizendo que a maior obra dele foi transmitir o
cargo para Lula… Em grande parte, foi isso mesmo: quando Lula transmitiu a
presidência a Dilma Rousseff, foi a primeira vez na história do Brasil que um
presidente democraticamente eleito recebeu o cargo de um igualmente eleito
e entregou para outro, no caso outra, também eleita pelo povo. E precisamos que
isso volte a acontecer, já que a deposição de Dilma Rousseff e a eleição mais
que duvidosa de Jair Bolsonaro criaram um problema na normalização
constitucional brasileira. De todo modo, a transição exemplar realizada
por Fernando Henrique talvez tenha sido sua maior realização, ao reduzir a
hostilidade política, que como se sabe tornou a crescer no governo Dilma
Rousseff.
Já a grande obra de Lula, também a meu ver, foi permitir que uma
boa parte da população brasileira alinhasse seu voto aos seus interesses ou sua
consciência política. Nas primeiras eleições presidenciais de que Lula
participou, era comum que os pobres organizados votassem nele, enquanto os
pobres não organizados votavam em demagogos de direita. Foi a época em que
estiveram no auge Paulo Maluf em São Paulo, Antônio Carlos Magalhães na Bahia e
vários outros coronéis no interior do país. Com Lula, uma série de políticas
públicas mudou a percepção de muitas pessoas mais pobres sobre sua situação,
dando-lhes a sensação de que podiam atuar diretamente, em seu próprio nome, em
vez de dependerem da sempre parca caridade dos grandes senhores oligárquicos.
Esse avanço permitiu colocar o Brasil em uma linha que caracteriza as
democracias avançadas, onde o voto se alinha com o interesse próprio. Essa
consciência dos interesses próprios geralmente é mais visível nas classes com
maior poder econômico, que votam e fazem campanhas para defender seus
interesses. Agora, se sempre fosse assim, a direita teria o voto dos ricos e a
esquerda o dos mais pobres, significando que a esquerda ganharia as eleições
sempre. Aqui no Brasil, desde 2002, em todas as eleições livres, a esquerda ou
centro-esquerda venceram, com exceção de 2018, desfigurada pela atuação
partidária da Lava Jato, que incluiu a suspensão dos direitos políticos e
prisão do candidato favorito, Luiz Inácio Lula da Silva.
Para evitar esse alinhamento de votos, a direita frequentemente
introduz outras questões no debate, como as “guerras culturais”, nos EUA, onde
pautas sobre sexualidade são trazidas com obsessão. No Brasil, tais pautas
surgiram com foco inicial na educação, alvo de fortes investimentos e expertise
dos governos petistas, especialmente Lula e Dilma Rousseff. No governo de Dilma
Rousseff, apareceram factoides como “Escola Sem Partido” e “ideologia de
gênero”, assustando famílias com receios infundados sobre a sexualidade de seus
filhos, e afastando setores que ganharam com as políticas públicas dos governos
petistas. Posteriormente, surgiram pautas como a luta contra o aborto, mesmo
nos casos previstos na legislação, como o recente projeto de lei
“pró-estuprador”, submetido por um deputado de extrema direita, que propunha
uma pena de prisão mais severa para mulheres que abortassem do que para o
próprio estuprador. Esse investimento em factoides e mentiras foi e é intenso.
Recentemente, vimos isso nas eleições dos EUA, que Donald Trump venceu
manipulando justamente esses medos, essas paixões negativas. No Brasil, a
extrema direita conseguiu até mesmo a reeleição de prefeitos que não
protegeram, das enchentes, Porto Alegre e, dos cortes de energia, como São
Paulo.
O alinhamento entre voto, participação e consciência política
foi desfigurado pela história recente – pós-2008, isto é, após a crise
econômica que dos Estados Unidos se espraiou pelo mundo, disseminando miséria,
fome e mais geralmente perda de oportunidades. Uma discussão essencial hoje,
nas redes, na mídia e nos ambientes políticos, é como o PT pode lidar com essa
situação.
Um ingrediente interessante vem de 2011, quando Fernando
Henrique Cardoso escreveu o artigo “O Papel da Oposição”, colocando a oposição
no singular e destacando a oposição do PSDB, ao custo de ignorar o
significativo desempenho de Marina Silva, na então recente eleição presidencial
de 2010. Para ele, o PSDB não teria muito a propor aos mais pobres, que
seriam eleitores do PT, mas à medida que esse contingente melhorasse de vida, o
PSDB ganharia seus votos e suas convicções. A ideia de Fernando Henrique era que
o PSDB atrairia os pobres, ao prosperarem e se tornarem de classe média. Na
prática, hoje vemos antigos eleitores do PT nas periferias votando na
extrema-direita, bem mais extremista do que o PSDB de então. Fernando Henrique
errou quanto ao beneficiário, mas acertou, há 13 anos, quanto ao deslocamento.
O que vimos nessa eleição revela a atração que a pauta do empreendedorismo
exerce, somada ao receio das pautas sexuais mais liberais.
A campanha de Pablo Marçal, em São Paulo, mostrou também uma
dificuldade do PT em atrair os trabalhadores de aplicativos. O PT denuncia a
exploração desses trabalhadores e propõe regularização trabalhista com direitos
previdenciários, mas muitos preferem a flexibilidade do trabalho com
aplicativos, que lhes permite definir horários e evitar o controle rígido (e
presencial!) do patrão, uma questão que a esquerda tende a desconsiderar. Essas
questões ilustram valores que não têm sido captados pela esquerda. As
candidaturas de Pablo Marçal e de Tábata Amaral – totalmente diferentes entre
si, até porque ela foi quem mais o enfrentou durante a campanha – mostram o que
a esquerda deveria refletir sobre seu discurso. Tábata simboliza os jovens
idealistas, que preferem o trabalho direto em projetos de melhoria da educação
pública, em vez da militância sindical tradicional, como tão bem foi conduzida
pela APEOESP. Esse ponto merece atenção. Quando fui ministro da Educação, em
2015, percebi que havia três grupos na política educacional: o governo, os
trabalhadores da educação e o terceiro setor, composto por ONGs e institutos
que discutem expertise e propõem boas práticas, inclusive do exterior. O
terceiro setor se dispõe a trabalhar com qualquer governo, o que por sinal –
ante sua colaboração com o governo Temer, quando apoiou uma reforma do ensino
médio que se mostrou confusa, e sua tentativa de cooperar com Bolsonaro, que
não quis saber dele – só aumentou a desconfiança dos sindicatos do setor
educacional público em relação ao mesmo terceiro setor. Mas o fundamental é que
a esquerda recupere a capacidade de atrair. Parece que muito da atuação da
esquerda na área educacional se resume ao clamor por mais verbas para a
educação; isso é necessário, mas não suficiente. Por que a esquerda não investe
em estratégias de mobilização e educação política, como as universidades de
verão dos partidos europeus, em especial portugueses e franceses, que são
grandes eventos de formação política para jovens? Falei disso a líderes do PT, que
não mostraram interesse. Nossa esquerda, apesar de historicamente popular, não
realiza isso. Isso atesta uma carência de novas lideranças e uma dificuldade em
atrair um público jovem idealista, que se sente motivado por outras figuras
políticas. Na prática, esse desinteresse leva a um distanciamento dos jovens,
especialmente os idealistas. É crucial que a esquerda passe a tratar esses
jovens não como “eles”, mas com dignidade e respeito. Afinal, falar sobre esses
grupos na terceira pessoa, como um entomologista falando de insetos, em vez de
como um político falando com seu interlocutor, é um grande erro. Se quisermos
mostrar respeito, devemos falar na, melhor dizendo, com a segunda pessoa. Ou
seja, para atrair e dialogar com essas pessoas, a esquerda precisa escutá-las e
respeitá-las genuinamente.
Fonte: Por Renato Janine Ribeiro, em A Terra é Redonda