As negociações de um Tratado Vinculante
internacional sobre empresas transnacionais e direitos humanos na ONU
Em 1972, Salvador Allende faz um discurso histórico na Assembleia
Geral das Nações Unidas sobre o acúmulo de poder nas mãos de empresas
transnacionais. Naquele momento, países reunidos no projeto político do
Terceiro Mundo disputavam os sentidos políticos das Nações Unidas e contestavam
a presença das desigualdades sociais e do colonialismo, permitindo o avanço de
iniciativas para regulação das empresas transnacionais.
Assim como Allende caiu no golpe de 1973, os demais governos progressistas foram
sufocados pelo avanço da onda neoliberal no mundo. Na América Latina, a crise
da dívida externa foi asfixiando as economias nacionais e estrangulando
governos. Com isso, os espaços do multilateralismo foram cada vez mais ocupados
pelo imperialismo norte-americano.
Já em 1999, havia um
consenso do papel que as corporações tinham no rumo do desenvolvimento, firmado
no Pacto Global. Esse foi apenas o primeiro passo na colonização do imaginário
das empresas como atores-chave do desenvolvimento. Dessa forma, expandiu-se a
crença de que as empresas transnacionais já não seriam parte do problema das
violações aos direitos humanos, mas que teriam as soluções a elas. Por isso, a
aposta por mecanismos de voluntariedade ao invés de marcos normativos que
responsabilizem as empresas.
Em 2011, esse ideal se
consolidou com a edição dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos
Humanos, o chamado Marco Ruggie. Somente em 2014, com a presença de governos
progressistas na América Latina no Equador, Bolívia, Venezuela, e na África,
especialmente na África do Sul, retoma-se as críticas à atuação das empresas
transnacionais. O resultado foi a aprovação da Resolução 26/9 que cria o Grupo
Intergovernamental para a construção de um Tratado Juridicamente Vinculante
sobre Empresas Transnacionais.
Entre as várias sessões,
incluindo ofensivas de boicote, chegamos na 9ª reunião do Grupo de Trabalho, que acontece nesta semana. Dessa vez, é a
presidência do grupo, o Equador, que conduz, de maneira arbitrária e sem
transparência, para o esvaziamento do conteúdo do texto. Nos últimos anos, o
Equador tem cumprindo o papel de retirar conteúdos considerados pelos
movimentos sociais e comunidades atingidas como fundamentais para a
proposta, tais como a previsão de obrigações diretas às empresas
transnacionais pelas violações aos direitos humanos; o foco nas empresas
transnacionais; a previsão de uma Corte Internacional. Em sua última movimentação, apresentou
um novo borrador para a negociação no qual, de forma antidemocrática, aceita sugestões de determinados países e exclui de
outros, sem qualquer justificativa.
Segundo a Campanha Global
pelo Desmantelamento do Poder Corporativo e pela Soberania dos Povos, é preciso
focar na atuação das empresas transnacionais, as quais são responsáveis por
gerir uma escala global de impunidade, não havendo normas internacionais que as
responsabilize. Essas empresas se beneficiam da falta de normativas para
promover uma violação estrutural aos direitos humanos. Para a Campanha, é
importante inverter a lógica atual do lucro sobre a vida, afirmando a primazia
dos direitos humanos frente aos acordos comerciais e de investimento e ao
direito econômico. Os anos de voluntariedade não produziram modificações na
efetivação dos direitos humanos. Empresas seguem violando, mesmo com suas
certificações, relatórios de sustentabilidade, diretrizes e mecanismos de
devida diligência. Assim, é preciso equiparar as forças, por isso, avançar para
regras para empresas transnacionais.
Movimentos populares e a
sociedade civil brasileira estão interessados em visualizar as posições do
governo brasileiro. Até agora, o Brasil compôs o Grupo sem apresentar
contribuições relevantes às negociações. Inclusive, nos anos pós-golpe e de
governo Bolsonaro, a postura foi de cerceamento da presença e atuação da
sociedade civil durante as negociações. Além de comentários vexatórios sobre
aspectos de gênero no texto. Existem altas expectativas, que durante o Governo
Lula, o país possa ter uma postura mais atuante, tanto na abertura para construção
com a sociedade civil como num texto que supere a arquitetura da impunidade
corporativa efetivamente.
Recentemente, o
Ministério das Relações Exteriores recebeu lideranças da Campanha Global e suas
propostas para o Tratado. Continua, em aberto, quais delas serão incorporadas
nas negociações, e como o ministério dará continuidade aos diálogos com as
comunidades, a sociedade civil e os movimentos populares.
No cenário nacional, o
Ministério dos Direitos Humanos tem realizado debates sobre o PL nº.572/2022,
que versa sobre direitos humanos e empresas, sinalizando a importância de
avançar em marcos normativos. Muito embora sua gestão ainda seja marcada por um
intenso diálogo com mecanismos como o Pacto Global e empresas. Resta saber qual
será a postura do ministério e como influenciará nas negociações do Tratado.
As atuações do governo em
espaços internacionais repercute com falas históricas sobre o combate às
desigualdades, a preservação do meio ambiente, a proteção dos povos indígenas e
comunidades tradicionais, bem como a aproximação Sul-Sul. Vale ressaltar, nas
últimas semanas, o papel desempenhado pelo Brasil na busca por um cessar-fogo
na faixa de Gaza, dentro do Conselho de Segurança da ONU.
E sobre esse tema, não
podemos deixar de mencionar que dentre as principais empresas transnacionais
está a indústria armamentista, uma das maiores consumidoras de minerais, por
exemplo. Há tempos, campanhas como a do Movimento BDS denunciam a atuação
dessas corporações nos territórios ocupados. No caso da Palestina, empresas
como G4S, de Israel, utilizam o conflito como laboratório de práticas, que depois serão vendidas para gestão de
presídios, construção de muros e empresas de segurança privada. Dificilmente,
essas empresas são responsabilizadas pelo seu papel nos conflitos.
Inclusive, a Palestina é
uma das nações mais aguerridas na defesa dos direitos dos povos nas negociações
do Tratado. Em 2022, a representação Palestina defendeu firmemente a
participação da sociedade civil e a continuidade das negociações sobre o texto
acumulado ao longo dos anos. Em meio à grave situação de violência humanitária
de Israel contra a Palestina, certamente este será um tema que virá à mesa na
9ª Sessão; esperam-se manifestações de solidariedade internacionalista das
organizações presentes, assim como as discussões das transnacionais de
segurança na Palestina.
Recordamos a Resolução 31/36 do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que determinou um estudo
sobre a atuação de empresas na faixa de Gaza, e os resultados corroboram com
sua cumplicidade com esse crime contra o povo palestino. No entanto, o sistema
internacional de proteção aos direitos humanos segue fazendo vista grossa à
Israel, por pressão dos EUA (Estados Unidos).
Regular o poder
corporativo é uma necessidade para continuidade das formas de vida na Terra,
sejam humana, animal, vegetal. As corporações, em sua regulação privada, não
conseguiram superar os problemas que elas mesmas causam. Esse caminho já foi
experimentado e não deu resultados. É hora e momento de experimentarmos uma via
de controle e de responsabilização, sob pena de nos aprofundarmos ainda mais
nas mazelas do capitalismo.
Direitos para os povos,
regras para as empresas!
Fonte: Brasil de Fato
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