“É preciso criar um amplo cinturão social de enfrentamento à pobreza”,
diz pesquisador
Se existe uma correlação entre violência e pobreza,
“é preciso esclarecer que violenta é a pobreza, não o pobre”, pontua Rafael dos
Santos da Silva na entrevista a seguir concedida por e-mail ao Instituto
Humanitas Unisinos – IHU. Para ele, o pobre é vítima da violência. “As pessoas
são violentas, na grande maioria das vezes, porque uma pobreza extrema lhes
retirou a dignidade”, assegura.
>>> Confira a entrevista.
·
Que relação podemos estabelecer entre violência e
pobreza?
Rafael dos Santos da Silva – Estou convencido de
haver uma relação umbilical entre violência e pobreza, e isso ocorre por meio
da desfiliação social. As pesquisas mais modernas nesse campo nos encaminham a
perceber que a violência emerge a partir de um ambiente marcado
fundamentalmente pela pobreza estrutural. Este ambiente insólito representa a
exata ausência de um conjunto de oferta de serviços públicos coletivos e de uma
economia equilibrada. Ou seja, um lugar onde não se dispõe de uma rede de apoio
e de infraestrutura sem a qual é impossível falar em cidadania. A ausência de
cidadania faz da pobreza ainda mais perversa e seu destino marcará, como já
dito, o processo de desfiliação do indivíduo da sociedade. Dito de outra forma,
a concretização da violência é a coletividade sendo reduzida ao nada.
Imagine que qualquer animal em situação de fome não
vai medir esforços para saciá-la. Com os seres humanos não é diferente. Se
passarmos muito tempo expostos a essa condição que está potencializada pelos
ciclos da pobreza, é natural que iremos criar estratégias por vezes pouco
racionais para saciar nossa fome. Neste cenário, não faltará quem se
disponibilize a realizar trabalhos escravos. As mulheres podem ficar mais
expostas à prostituição ou, como temos notado, o caminho do tráfico de drogas
parece ser naturalizado, especialmente para jovens.
O fato é que, uma vez desfiliado, o indivíduo topa
matar ou morrer sem que sua consciência seja efetivamente cobrada. Esse
processo é nitidamente marcado pelo rompimento do pacto social responsável por
nossa paz. Aí começa a violência.
A constatação da associação entre pobreza/violência
muitas vezes é visual. Se você circula nas periferias dos grandes centros, vai
perceber facilmente que o cotidiano é mediado por uma espécie de sociologia das
ausências – para usar a expressão de Boaventura de Sousa Santos. Nesse
ambiente, é a própria ausência e/ou excesso do Estado, na sua função de
polícia, que se estabelece como método.
Contudo, é preciso esclarecer que violenta é a
pobreza, não o pobre. Este acaba sendo vítima da violência. Dito de outra
forma, não é porque eles são pobres que são violentos, mas o contrário: as
pessoas são violentas, na grande maioria das vezes, porque uma pobreza extrema
lhes retirou a dignidade. Todavia, é regra geral que a violência seja comum a
ambientes em que a extrema pobreza igualmente a seja. Isso porque uma vez
instalada nos territórios, a pobreza acaba ressignificando a espacialidade pelo
conflito. Portanto, não tenho dúvida em afirmar que a violência, tal qual a
conhecemos hoje, tem origem na pobreza material produzida pela sociedade
desenvolvimentista.
·
Como a pobreza se converte em violência no cenário
urbano de hoje?
Rafael dos Santos da Silva – A pobreza vira
violência do mesmo jeito que o azeite vira óleo quando exposto à alta
temperatura. A temperatura para a violência é a vulnerabilidade. Ou seja, o
grau de exposição à pobreza. Do ponto de vista sociológico, o termo pobre está
relativamente ultrapassado. Estou convencido de que não é possível compreender
o indivíduo fora de uma estrutura social que, por sua vez, se revela
diariamente opressora, razão pela qual precisamos falar da pobreza sem
obviamente perder do horizonte o indivíduo empobrecido.
Isso nos leva a compreender que o garoto que faz
aviãozinho nas quebradas ou o trabalhador que é espoliado da sua força de
trabalho nas metrópoles vivem um aprofundamento das opressões sociais e, ao
cabo, irão representar maiores repressões sociais. É nesse limite tênue que a
pobreza se converte em violência. Esse tipo de cenário é cada vez mais comum em
espaços urbanos, dado ao cada vez mais complexo tecido social. Nesse campo é
preciso analisar friamente os níveis de desenvolvimento de uma determinada
sociedade. Isso significa estar atento aos padrões tecnológicos, às rupturas
das relações trabalhistas e, como já frisei, à oferta de um cinturão social
capaz de atenuar os efeitos da pobreza.
Aqui é necessário interpretar o meio urbano que sem
dúvida acabou se tornando o ambiente mais sensível à reprodução da pobreza,
dada as apostas no modelo de produção e consumo que chamamos de
desenvolvimento. Existe uma cegueira institucional, política e social, que
teima em apostar num padrão insustentável de comportamento econômico, como se o
futuro não fosse existir. Esse tal “modelo sustentável” tem se revelado
irrealizável a longo prazo, dado seu profundo caráter concentrador.
No Ceará, a realidade da distribuição da riqueza
produzida é simplesmente estarrecedora. Em um levantamento que fiz
recentemente, percebi que a riqueza de apenas seis dos maiores empresários é
maior do que o orçamento do Estado para 2024. O espaço geográfico de Fortaleza
é um desastre econômico. Esse território, composto por 113 bairros, é desenhado
por uma realidade abissal. Nota-se a presença de locais com Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) equiparado a países africanos, contrastando com
bairros luxuosos com IDH equivalente a realidades europeias. Ou seja, num espaço
curto de 300 km2 se convive com as realidades da opulência e da pobreza
extrema. Em síntese, não criar canais – públicos e coletivos – de acesso e
distribuição da riqueza socialmente produzida faz a pobreza se converter
naturalmente em violência.
·
Como compreende o conceito de desigualdade? No
Brasil, em que medida a desigualdade tem sido um alicerce à pobreza e
violência?
Rafael dos Santos da Silva – A pobreza possui três
ciclos. O primeiro é a desigualdade. A literatura especializada se refere à
desigualdade como sendo a marca de um profundo desequilíbrio de acesso,
especialmente na expectativa de vida e na educação. Como consequência da
ausência de saúde e da negação de um processo educacional sólido, a renda passa
a ser comprometida.
Mas quero lembrar que essa é apenas a ponta do
iceberg, pois, de fato, a desigualdade é algo constitutivo de um modelo
patriarcal nas relações de gênero (pleno domínio do homem), colonial, na sua
dimensão política (relação de dependência estrutural entre centro e periferia),
e capitalista, na produção econômica. Em outras palavras, para compreender a
desigualdade é preciso considerar o modelo social, político e econômico de um
lugar.
Antes que o leitor possa confundir, estamos diante
da realidade como ela é. Nesse sentido, não temos porque falar em desigualdade
“de” gênero, como se a questão fosse biológica. Não! A desigualdade é “no”
gênero, porque é confeccionada especialmente para as mulheres, por meio das
estruturas de poder e suas relações materiais.
É nesse sentido que o debate sobre a desigualdade,
em especial no Brasil, precisa ser conduzido. Porque a um só tempo ele permite
o fortalecimento do domínio masculino, das estruturas políticas e dos modos de
produção. Há, portanto, um conjunto de articulações que agem, simultaneamente,
fazendo com que as correlações de forças sociais não mudem.
>>> Inércia
A inércia é um termo interessante para falar de
descrédito. Quando se está diante de uma realidade que não muda, é normal que
isso provoque desânimo. Se você tem alguma garantia para viver, se alimentar e,
com algum nível de segurança, se deslocar, então seu desânimo tende à inércia.
Ou seja, você não se incomodará com o estado das coisas. Entretanto, caso não
consiga acessar a água potável, alimento em quantidade e qualidade, trabalho,
ou a dignidade de um lar, então será natural o seu descontentamento, de modo
que a apatia dará lugar à revolta.
Se o ponto de análise é a pobreza, a desigualdade é
o alicerce. Mas se nosso pano de fundo for a violência, então é preciso
considerar os outros aspectos estruturais da pobreza que deve ser pensado em
conjunto com a desigualdade.
·
O senhor destaca que 85% da pobreza global é
provocada pelo mau uso da economia. Quais os desafios para converter a economia
a um bom uso? Como observa as propostas da Economia de Francisco e Clara?
Rafael dos Santos da Silva – Sim, eu conheço as
propostas da Economia de Francisco que, generosamente, aqui no Brasil, ganharam
a companhia de Clara. Sou um entusiasta desta iniciativa e costumo, com
frequência, utilizar seus princípios em minhas aulas. O Papa Francisco está na
vanguarda deste debate. Isso porque ele tem sido uma das poucas pessoas, talvez
a única (nesse particular nem Lula o alcança), a chamar atenção para as reais
causas da pobreza, especialmente ao lançar luz no maior de todos os pobres: a
ecologia.
Há algo de muito novo em relacionar a pobreza com
as causas ecológicas. Ele chama abertamente a economia capitalista de “economia
da morte”. E reitera a urgência de um novo modelo de relação econômica que seja
capaz de integralizar economia com ecologia. Não vejo essas críticas nem nas
melhores páginas de Karl Marx.
Em tempo, desde a Laudato si’, passando pela
Fratelli tutti, e agora chegando à Laudate Deum, o tom é o mesmo. Nesse último
texto, do ponto de vista conceitual há um significativo avanço: Francisco não
toca no nome “desenvolvimento sustentável”. Da primeira à última publicação há
um espaço temporal de oito anos. O suficiente para o Papa perceber que não é
possível um modelo ser sustentável quando a regra é negar o desenvolvimento.
·
Causas da pobreza
É aqui que entra a crítica central que faço no
artigo publicado recentemente. Quando se estudam as causas da pobreza, a
literatura disponível indica que 85% das causas que a produz acontece em função
do mau uso da economia (as outras duas causas são as guerras e as mudanças
climáticas). Leia-se: as péssimas escolhas econômicas são determinantes para a
produção da pobreza. Não precisamos de muito para entender esta realidade.
Basta analisar o crescimento dos números da fome em meio a tanta opulência de
alimentos.
No livro “As pessoas em primeiro lugar”, Amartya
Sen e Bernardo Kliksberg atestam ser repugnante identificar que a riqueza de
apenas oito afortunados seria suficiente para evitar a morte de cinco crianças
por minuto e a fome de 800 milhões de pessoas. Estas crianças, em geral, morrem
vítimas de guerra ou de causas absolutamente evitáveis. Suas mortes poderiam
ser evitadas por acesso a drogas que custam apenas centavos. Em relação à
guerra, é preciso destacar que ela é muito mais que bombas e mísseis; há uma
verdadeira economia da guerra.
Um mercado tão poderoso quanto o do petróleo
precisa que as coisas não mudem, pois é o que mais lucra. Para se ter uma
ideia, o dinheiro investido pelos EUA no primeiro ano da guerra na Ucrânia
seria suficiente para executar todo o programa de combate à fome previsto pela
ONU. Outro ponto importante são as mudanças climáticas que provocam migrações
em massa. Ao chegar ao destino, isso para aquelas pessoas que chegam, lhes é
ofertada uma súbita economia da desigualdade, obrigando os imigrantes a um
criminoso trabalho precarizado.
·
Bom uso da economia
Para converter a economia em bom uso, gosto da
ideia do Papa Francisco. Ele aponta que a saída é a invenção de uma outra
economia. Sim, este modelo econômico capitalista está absolutamente saturado.
Numa expressão popular: está na “casa do sem jeito”. Por quê? Porque, como já
dito, é uma economia baseada na manutenção das desigualdades e espoliação da
ecologia. Sua lógica infinita não pode ser suportada num planeta finito. A
conta é simples.
A saída é uma economia em que não haja primazia do
capitalismo sobre a ecologia e sobre os pobres. Um modelo de partilha entre os
povos, comunhão e respeito com a natureza. Onde está esse modelo? Existem
vários… É verdade que não foram testados de forma massiva. Um deles é o
bem-viver dos povos andinos. A economia solidária talvez seja nosso maior
exemplo. Que esses casos careçam de adaptações para a vida urbana de grandes
proporções como as metrópoles, é claro. Mas o fato é que precisamos nos
convencer de que o modelo de produção capitalista se exauriu. Isso não
significa que o modelo a ser criado nos leve de volta às cavernas. Não! Quero
apenas dizer que a mediação econômica que faremos no próximo modelo precisará
respeitar os limites éticos de convivência humana e, sobretudo, ecológica.
·
Como analisa o impacto das mudanças climáticas na
promoção da pobreza e da fome? Teria algum caso concreto no Brasil para
ilustrar?
Rafael dos Santos da Silva – As mudanças
climáticas, como estamos observando, podem colocar por terra toda possibilidade
de uma nova economia. Isso porque, sem um clima adequado e equilibrado, não
haverá vida, logo, não podemos falar em economia. Dito isto, é preciso entender
que os mais afetados por essas mudanças são os pobres. Por quê? Porque a
infraestrutura das cidades não oferece, a esta camada da população, nenhuma
segurança ou proteção.
O Nordeste do Brasil é historicamente uma terra
famosa pela migração. Em qualquer parte do país há um nordestino emprestando a
força do seu trabalho. Essas pessoas foram obrigadas a sair de suas terras em
função das questões climáticas, em primeiro lugar, mas principalmente pela
ausência de políticas públicas que permitissem a convivência com a realidade
local. Isso tem um impacto imediato na economia, empobrecendo gerações
inteiras.
Eu vivo no Ceará e dou aulas em uma cidade chamada
Crateús, distante 360 km de Fortaleza. O clima é semiárido. Chove pouco, mas de
um tempo para cá a rede Caritas, em conjunto com várias outras experiências,
resolveu modificar a lógica de resistência, abandonando a ideia de
enfrentamento à seca para a convivência com o semiárido. Essa simples mudança
de perspectiva exigiu pensar técnicas de convivência com a ecologia local,
respeitando seus limites, aproveitando o melhor que se pode extrair da terra. E
ela, a mãe terra, mesmo limitada, muito tem a oferecer. Como resultado,
anualmente se organiza, em pleno sertão nordestino, a segunda maior feira de
economia solidária do Brasil.
·
Fenômeno global
Contudo, as mudanças climáticas são um fenômeno
global. O equilíbrio da temperatura está relacionado com os níveis do mar, com
o acesso à água potável, com a produção de alimentos. Ele se relaciona com os
problemas urbanos das periferias, como a ausência de saneamento básico,
assistência médica e acessos a medicamentos, e vacinas que podem levar ao
limite entre a vida ou a morte em casos de pandemias, como foi o caso da que
vivenciamos.
Gosto bastante da metáfora utilizada por Leonardo
Boff para relacionar a pandemia de Covid-19 e as mudanças climáticas. Na sua
sabedoria, Boff explica que “o surgimento daquele vírus se assemelha a um
reservatório de água em cujo fundo havia muita terra. Alguém de reduzida
sabedoria mexeu com o fundo do recipiente, espalhando todo o sedimento que ali
repousava. Como consequência, toda a terra acumulada ficou agitada,
misturando-se à água que estava límpida. Assim, o barro contaminou a água,
tornando-a momentaneamente imprópria. A natureza, na sua sabedoria, fará com
que a terra volte ao fundo, mas, caso novamente seja mexida, novamente liberará
suas impurezas”.
A pergunta é simples: quem mais foi afetado pelo
vírus? Qual foi a classe social que mais sofreu? Foram exatamente os pobres.
Primeiro porque não conseguiram material para fazer higienizações. Depois,
porque não tinham economia suficiente para sobreviver. Em países
subdesenvolvidos (esse termo é dito ultrapassado, mas ainda real), os pobres
morreram afetados pelo vírus, especialmente por não conseguir pagar pelo acesso
às vacinas.
Portanto, estou convencido de que as mudanças
climáticas empobrecem as pessoas porque empobrecem, em primeiro lugar, a terra.
Sem o equilíbrio ecológico, é impossível falar em economia, logo abre-se um
ciclo vicioso que tende a se aprofundar mais e mais.
·
No artigo citado, o senhor aponta que “a pobreza,
do ponto de vista geográfico, vai atingir a humanidade de forma mais intensa em
locais onde a economia é muito avançada”. Pode nos detalhar esta perspectiva?
Rafael dos Santos da Silva – Essa é a grande
hipótese que venho percorrendo nos meus estudos. Digo que “onde a sociedade é
mais desenvolvida, a pobreza é mais intensa”. Isso contraria muitos manuais de
desenvolvimento sustentável, mas indica que o modelo baseado na negação da
coletividade e da ecologia favorece a concentração de renda e riqueza. Ora,
todos sabemos que houve uma considerável redução da pobreza na renda,
especialmente nos últimos 30 anos. Então o que sustenta minha hipótese? Observe
que eu tomo o cuidado de reconhecer que houve redução dos níveis de pobreza.
Mas isso aconteceu somente na renda. A quantidade de pessoas passando fome, por
exemplo, tem aumentado drasticamente. Estima-se que um terço da humanidade está
exposta a algum tipo de pobreza material. Algo em torno de três bilhões de
pessoas não acessam água potável e apenas um bilhão acessam ao mercado de
consumo. Mas não é de quantidade que estou falando; é de intensidade. A
intensidade da pobreza tende a castigar mais aqueles que estão em modelos
econômicos altamente desenvolvidos.
Na prática, ser pobre no centro de Paris, em
Londres, em Nova York ou mesmo em São Paulo, é um desafio cada vez maior. É
disso que estou falando. Nessas cidades, o modelo de desenvolvimento econômico
é uma regra inquestionável e sua matriz política induz seus gestores a não
criaram canais efetivos de distribuição da riqueza material. É por isso que
figuras como o padre Júlio Lancellotti são imprescindíveis na região da Mooca.
Porque ele, à sua maneira, absorve aquilo que o desenvolvimento expurga:
pessoas altamente empobrecidas. Daí porque afirmo: quanto maior for o processo
de desenvolvimento econômico, mais acentuada será a pobreza naquele local.
·
Segundo sua tese, quanto maior for o
desenvolvimento econômico de um território, mais acentuada será a pobreza. Mas
como pensar nos territórios com baixo, ou até baixíssimo, desenvolvimento
econômico? Nestes casos, não são casos de pobreza generalizada?
Rafael dos Santos da Silva – Sim. Nesses ambientes
é evidente que a pobreza é generalizada. Mas não pela ausência de
desenvolvimento econômico somente. A maioria dessas experiências ocorre em
razão da má gerência econômica, quer seja por razões externas, quer seja por
razões internas. Na América Latina, existem dois casos emblemáticos: Venezuela
e Cuba. São realidades em que a pobreza é, de fato, generalizada. Mas isso não
aconteceria se não houvesse o famigerado bloqueio econômico. Se essas economias
estão em frangalhos, muito se deve à lógica da geopolítica imposta a suas realidades.
Mas vamos considerar países onde não existem
bloqueios econômicos e que, ainda assim, são obrigados a conviver com altos
índices de pobreza. Esse é o caso típico de países africanos. Nessas economias
a realidade de exploração e dependência é infinita e se arrasta há muito tempo.
O modelo extrativista de exploração dos recursos naturais, aliado à manipulação
política da elite local, praticamente submete esses países a uma dependência
generalizada à economia global. Foi exatamente esta realidade que levou o Papa
Francisco a sentenciar: “Tirem suas mãos da África”.
Há séculos os países capitalistas usam seus
conceitos de “livre mercado” para monopolizar as riquezas daquele continente.
Ora, se aumentar as tecnologias e aumentar a extração dos minérios, ou seja,
aumentar o desenvolvimento econômico dos africanos, vamos acabar com a pobreza
deles? Estou convencido que não. O mesmo vale para o Brasil. O que justifica
ter alcançado, nos últimos anos, o título de maior produtor de proteína animal
do mundo? Para um pequeno grupo de afortunados que gosta de posar para a Forbes
a cada início de ano, isso pode significar alguma coisa, mas vamos admitir: é
um acinte para os 33 milhões de brasileiros(as) que estão passando fome.
De outro lado, há registros que vêm de baixo e
podem se mostrar sustentáveis sem necessariamente se rogar ao crescimento
infinito da economia. O caso mais famoso vem da Índia. O impacto da pobreza
naquela região do globo é assustador. Mas foi ali que surgiu a experiência do
microcrédito para pôr fim ao mito de que somente se acaba com a pobreza com
crescimento econômico infinito. Não! Acaba-se com a pobreza com justiça social.
Não estou afirmando que não seja preciso algum crescimento econômico. Claro que
em locais com baixos índices econômicos é importante que ocorra uma política
para impulsionar a economia. Mas não está claro que, no seu modelo infinito, o
crescimento da economia seja a única saída.
Finalmente, quero responder sentenciando o seguinte
pensamento: “Não se combate a pobreza apenas com crescimento econômico. A
pobreza se combate com justiça social”. Isso significa mais distribuição,
equidade, respeito aos limites ecológicos e até crescimento econômico para os
lugares que nunca o experimentaram. Mas também decrescimento para os lugares
que a séculos sugam e concentram riqueza.
·
O desenvolvimento econômico, como é aferido hoje, é
um bom indicador de prosperidade de um território? Por quê?
Rafael dos Santos da Silva – Não. Depois da
resposta que dei acima, ficaria contraditório concordar que o desenvolvimento
econômico é suficiente para indicar prosperidade. Mas isso também vai depender
do que o leitor entende por “prosperidade”. Se prosperidade significar equidade
de acesso e justiça social, então temos boas razões para procurar outros
indicadores.
Nosso leitor precisa compreender que o
desenvolvimento econômico é mensurado pelo produto interno bruto (PIB) de uma
determinada sociedade. A lógica deste sistema é mensurar, ano após ano, o
crescimento deste indicador. Isso indica que neste ano o PIB deve ser maior do
que o do ano passado. Ano que vem, maior do que o deste, e assim
sucessivamente. Ao longo do tempo isso é insustentável porque o sistema
ecológico do qual ele se alimenta é simplesmente finito.
Dito isso, precisamos considerar que somos seres
coletivos e, portanto, necessitamos viver coletivamente. Nossa principal
dependência vem dos sistemas ambientais que nos cercam. Sem eles não podemos
falar em vida, quiçá vida sustentável. Se estes sistemas estão ameaçados para
garantir que o sistema econômico avance, então não podemos falar de
prosperidade.
Penso que já passa da hora de criarmos outros
indicadores. Quando avançamos mais, alcançamos o IDH que foi pensado como um
substituto ao PIB. O IDH considera outras duas realidades: saúde e educação. No
entanto, a financeirização da vida não permite que ele seja o principal
indicador social. Ninguém se importa se estamos oscilando entre o octogésimo ou
nonagésimo lugar no ranking do IDH. Mas se cairmos de sétimo para décimo lugar
no ranking do PIB, os telejornais não deixam o governo em paz. É o mercado quem
dita.
Talvez a melhor experiência nesse campo venha do
Butão, este pequeno país no leste asiático que ousou mensurar sua prosperidade
a partir do patamar da felicidade. Estão certíssimos, afinal é a felicidade o
fim último da humanidade e não o dinheiro. Mas isso para o Ocidente ainda é
muito abstrato. Para a nossa cultura, precisamos ter dinheiro para ser feliz.
C’est la vie.
·
Diante do cenário brasileiro, quais caminhos
vislumbra como possíveis para erradicar a pobreza?
Rafael dos Santos da Silva – Em primeiro lugar, é
preciso acabar com a fome. Este fenômeno é a zona mais intensa da pobreza e há
sérias razões, para além das questões éticas, que nos obrigam a fazer isso. A
principal delas é evitar a ruptura social ou, nos termos de Robert Castel, a
desfiliação social. Tendo vencido a fome, é preciso enfrentar as outras etapas.
Quem assiste minhas aulas na Universidade Federal
do Ceará talvez esteja cansado de me ouvir repetir feito um mantra que a
pobreza é fruto das escolhas sociais. Portando, produção direta da sociedade.
Nesse sentido, acabar com a pobreza deveria ser algo absolutamente fácil.
Poderia se colocar o fim nesta vergonha a canetada? Então por que não acontece?
Porque na economia da morte, para tomar emprestada novamente a expressão do
Papa Francisco, precisa que haja pobres. Sem um lugar para onde enviar os
rejeitados, não haveria ricos, ainda que isso signifique injustiça social.
Veja, não quero criminalizar os bilionários, mas a pobreza como a conhecemos,
quando analisada dentro do capitalismo, não pode prescindir desta afirmação.
>>>> Justiça social
Nesse sentido, o caminho para a superação da
pobreza somente pode ser o da justiça social. Ou, efetivamente, o da distribuição
da riqueza. Observe que falo de riqueza e não somente da renda. A distribuição
de renda já iniciamos e, sob certa medida, está pacificada na sociedade
brasileira. Até o último governo da ultradireita precisou, mesmo a contragosto,
realizar algum tipo de distribuição de renda.
Hoje, a sistematização do programa Bolsa Família é
exemplar para muitos países do mundo. Suas condicionalidades, focadas na saúde
e na educação, são, de fato, o ponto alto. Eu mesmo fui beneficiado por este
programa há pouco mais de vinte anos. Mas somente agora minha família completou
o ciclo de saída da pobreza. Pelo menos por uma geração isso está garantido
entre nós. Portanto, distribuir renda é fundamental enquanto primeiro passo.
Mas, em seguida, é preciso criar um amplo cinturão social de enfrentamento à
pobreza.
O atual governo federal vem reconstruindo
instituições neste campo. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (Consea) é o melhor exemplo. No Ceará, o governo estadual aposta no
Ceará Sem Fome. Não obstante uma parcela significativa ainda não ser alcançada,
está avançando.
>>>> Distribuição da riqueza
Agora, precisamos ousar em distribuir riqueza. O
que eu entendo por riqueza? O famoso livro da teoria socialista com o sugestivo
nome de O Capital, de Karl Marx, apontava que riqueza são os meios para se
efetivar a produção. Neste contexto, o autor portava-se especialmente para duas
formas de riqueza: o capital e a terra. Segundo este pensamento, quem possuía
terra e capital era visto como dono dos meios de produção, portanto,
capitalistas.
Hoje, precisamos ressignificar esse enquadramento.
Por isso, falar em riqueza é falar em condições elementares para uma vida
digna. Sendo mais concreto: riqueza é o acesso à terra, mas também acesso à
tributação justa, à infraestrutura necessária, como saneamento ambiental e
sanitário, acesso à educação básica e formação profissional, acesso à habitação
e à mobilidade humana e urbana, às garantias de seguridade social e,
principalmente, à ecologia equilibrada. Enfim, ser possível acessar a cidadania
significa acessar a cidade enquanto direito humano universal, segundo o
pensamento de Henri Lefebvre.
Há quem pense que isso somente seja possível com o
crescimento econômico. Esse tipo de pensamento está preso à velha questão de “fazer
o bolo crescer para depois distribuir”. Ora, as estatísticas oficiais apontam
que o Brasil foi o terceiro país que mais cresceu no século XX, ficando atrás
somente do Japão e da Alemanha. Recentemente, chegamos a figurar entre as seis
maiores economias do mundo, mas ainda assim nenhum passo foi dado no sentido da
distribuição da riqueza. Portanto, só é possível falar no fim da pobreza se, de
fato, criamos os canais necessários para distribuir a renda, mas principalmente
a riqueza. Fora isso, apenas estaremos a nos conformar com a administração da
pobreza.
·
Deseja acrescentar algo?
Rafael dos Santos da Silva – Eu gostaria de voltar
à última pergunta para fechar meu pensamento. É preciso conceber o caldo
cultural em que somos formados. Como distribuir riqueza numa cultura onde falar
em Reforma Agrária se assemelha a um insulto? De verdade, temos uma limitação
cultural. Não se trata de reproduzir aqui “o complexo de vira-lata”, tão bem
questionado por Jessé Souza, mas compreender as raízes daquilo que sustenta uma
certa leviandade de nossas elites. Uso o termo “elite” no plural por estar
convencido de que no Brasil coexistem diversas elites. As mais famosas são as
elites econômicas e as intelectuais. Mas há ainda um elemento comum a
potencializar essas forças. É o que chamo de “elite da fé”. Não se trata apenas
de uma terceira elite, mas de uma espécie de eixo intercessor a unir a forma de
pensar e a forma de concentrar riqueza.
Nesse particular, o Brasil, já faz muito tempo, é
um país elitizado. Não foi essa elite que se organizou em marcha pela família e
deu sustentação ao golpe de 1964? Não podemos pensar o Brasil sem o componente
da religião e, nesse contexto, na sua dimensão pentecostal. Isso vale para as
duas maiores tradições religiosas (os católicos carismáticos e os evangélicos
neopentecostais).
Mas efetivamente, como esse elemento ganha a
capacidade de influenciar a sociedade? Em primeiro lugar, por meio do
conservadorismo que regressa à dimensão colonial, aceitando a dependência
diante da metrópole. Muitas vezes esse processo é azeitado pela ética da
prosperidade. Em segundo lugar, está a questão do patriarcado, tendo no gênero
masculino a fonte de suas principais pautas políticas. Esse caldo social vai
ser determinante para compor o quadro do capitalismo que, conforme já
assinalei, vai incorporar a produção dos elementos da pobreza.
Nesse cenário, parece-me inocente falar em
inclusão. Estamos levando a sério o enfrentamento da pobreza ao buscar, na
lógica da inclusão, a entrada dos “excluídos”, num modelo que se retroalimenta
da fome e da miséria? Efetivamente, precisamos refletir sobre essas grandes
questões que estão na base da dinâmica social da pobreza.
Fonte: Entrevista com Rafael dos Santos da Silva,
para João Vitor Santos em IHU
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