Bruxaria: em um movimento díspar, o elo é o fazer mágico
Ofenômeno da bruxaria há muito foi estudado e
explorado em áreas como a Antropologia, a História e as Ciências da Religião.
Investigar esse fenômeno é sempre um grande desafio, pois, além de serem muitas
as camadas que envolvem essa temática, bruxaria é um termo extremamente
complicado de se tratar, devido ao fato de ser um campo em disputa que é
acionado tanto por estudos sócio-históricos, pelo âmbito das religiosidades e
pelos estudos socioculturais, bem como, pelos próprios praticantes, uma vez que
são esses sujeitos – as bruxas (neo)pagãs – que delimitam os traços
caracterizadores de suas práticas. São as bruxas, enquanto agentes da
transformação, que irão ressignificar os engendramentos em torno do fenômeno da
bruxaria, trazendo consigo antigos conceitos como feitiçaria, paganismo, magia
e religião. Esses conceitos são pontos-chaves para refletir sobre as concepções
dos grupos e coletivos de bruxaria (neo)pagãos no Brasil, bem como sobre o que
pensam os sujeitos que fazem parte deles, tendo em vista que a bruxaria, sob
seus pontos de vistas, é atravessada por essas ideias.
Por mais que a bruxaria tenha sido um fenômeno
construído fundamentalmente no medievo e, por conseguinte, tenha associada a si
as noções de diabolismo e heresia, ainda assim, ela foi reativada e
ressignificada ao longo do tempo pelos próprios praticantes. A bruxaria, tal
como pensada e dinamizada pelos grupos e coletivos (neo)pagãos, é composta por uma
heterogeneidade de forças e movimentos que regulam e atualizam sua pluralidade.
Por esse motivo, ressalto a importância de investigar diferentes grupos levando
em consideração seus diferentes contextos, pois cada grupo de bruxaria
(neo)pagão opera de formas distintas e tem concepções distintas. Todos os
conceitos, significados e dinâmicas relacionados à bruxaria e ao paganismo são
mobilizados pelos próprios coletivos e seus integrantes, não se restringindo
apenas a um único grupo ou a uma única pessoa e, sim, pelos movimentos, ações e
discursos dos praticantes e grupos existentes. É dessa forma que se torna
possível compreender suas especificidades e realçar suas diferenças,
semelhanças e singularidades.
Utilizo a categoria de bruxa (neo)pagã, pois, além
de ser uma maneira de diferenciar pessoas que se submeteram a um processo
iniciático dentro de um sistema mágico/religioso por meio de um grupo de
bruxaria (clã, coven, concluío, tradição, conclave ou qualquer outra
nomencaltura que o grupo venha a adotar), é assim também que os meus
colaboradores e interlocutores se referem a si mesmos, como bruxas, pagãos,
sacerdotes e sacerdotisas. Essas categorias são importantes para compreender o
processo de identidade de pessoas que atualizam conceitos e dinamizam suas
conceitualizações, tal como a própria noção de bruxaria. No paganismo
contemporâneo – vertente vinculada aos Novos Movimentos Religiosos –, os
cientistas da religião enfatizam a importância de legitimar práticas e
experiências autênticas, vivas e atuantes que permeiam a contemporaneidade.
Desse modo, as categorias aqui acionadas partem desse conjunto de mobilizações,
buscando, sobretudo, levar a sério o que as pessoas pensam quando se
autoafirmam enquanto bruxas e pagãos.
Durante minha pesquisa no mestrado com coletivos e
grupos de bruxaria (neo)pagãos da cidade Manaus, no Amazonas, um dado que irei
identificar com a realização de oficinas, eventos, entrevistas e conversas é se
o que diferencia as concepções que cada grupo e individuo tem a respeito da bruxaria
é principalmente o discurso. O discurso vai ser o marcador de diferenças entre
as concepções que cada grupo e indivíduo tem sobre o universo da bruxaria, que
inclusive podem divergir entre si, e esses mesmos discursos estão em constante
movimento e transformação, assim como as práticas e aprendizados das bruxas. As
práticas e experiências, tanto as individuais quanto as coletivas, serão os
principais marcadores do processo de identidade e identificação dos grupos. Uma
observação importante em relação a esse aspecto, é o fato de as práticas
realizadas no âmbito coletivo, rituais e celebrações, podem diferir do âmbito
individual. Mesmo que o praticante faça parte do corpo de integrantes do grupo,
isso se dá por conta das experiências que fazem parte do repertorio “mágico” do
praticante.
A bruxaria, como dito anteriormente, é um campo de
disputa que vem sendo reconfigurado a cada novo olhar que lhe é lançado. Uma
afirmação recorrente no discurso e na prática diária das bruxas e bruxos de
Manaus é que a bruxaria é, sobretudo, um fenômeno que fala sobre magia e
espiritualidade. Os estudos da história social da bruxaria, em suas buscas
incessantes pelos mecanismos sociais, acabaram bloqueando e repelindo outras
abordagens analíticas, desprezando o mais amplo significado ambíguo, criativo,
intelectual e espiritual da bruxaria. Por meio de suas práticas e experiências,
as bruxas contemporâneas têm traçado linhas que nos conduz efetivamente para o
caminho da experiência humana, forjando rituais em que a criatividade, a
autoexpressão e o pertencimento têm um papel fundamental onde as subjetividades
e as vulnerabilidades são compartilhadas em corpo, mente e espírito.
Em uma perspectiva macro, no Brasil, alguns grupos
de bruxaria, bem como bruxas que não são adeptas de coletivos, irão reivindicar
diferentes vertentes existentes desse fenômeno. Dentre toda essa diversidade
podemos destacar algumas linhas que fazem o uso do termo “bruxaria” em suas
definições, tal como a Wicca, que é entendida como religião e também como a
“Bruxaria Moderna”, sendo inclusive a religião (neo)pagã mais conhecida e
estudada no Brasil, possuindo também algumas sub-vertentes como a Wicca
Diânica, Wicca Tradicional e Wicca Eclética; a Bruxaria Tradicional que tem
como sub-vertente a Bruxaria Tradicional Moderna, que vem ganhando bastante
força e adeptos no Brasil; a Bruxaria Natural, com a qual boa parte da
comunidade pagã ou não-pagã se identifica, explorando conhecimentos e práticas
advindos das ervas e plantas e de um saber herdado hereditariamente, e a
Bruxaria Contemporânea, a qual alguns coletivos encontraram uma forma de se
articularem e se sentirem livres para se organizarem internamente, mediante as
demandas da contemporaneidade.
Atualmente é possível encontrar diversas obras
escritas pelos próprios praticantes sobre essas várias vertentes de bruxarias
e/ou sobre suas experiências pessoais. Não obstante, são essas literaturas,
escritas por quem “é de dentro”, as mais consumidas pelos coletivos Pagãos e
seus integrantes, e são essas mesmas obras que irão delinear os elementos
constituidores da prática da bruxaria. Embora esse conjunto de linhagens e
vertentes existentes não defina a heterogeneidade do fenômeno da bruxaria no
Brasil, esse mapeamento nos ajuda a ter uma ideia desse campo que vem sendo
construído pelos próprios praticantes, fruto de aspirações pessoais, de
esforço, trabalho e resistência. Além de forjarem um campo bastante complexo e
heterogêneo, as bruxas potencializam caminhos e constroem legados.
O que todas as vertentes e linhas de bruxaria que
aqui foram destacadas têm em comum, é o fato de fazerem feitiço e de algum modo
trabalharem com a feitiçaria — entendida aqui como procedimentos mágicos. Dessa
forma, é o fazer que irá ligar todas essas linhas soltas. Se você perguntar a
três bruxas diferentes o significado da bruxaria, você vai obter três
diferentes respostas, pois, a bruxaria é um movimento díspar, e não se enquadra
em definições fechadas e resolvidas, está em constante movimento e
transformação. A bruxaria é moldada de acordo com a experiência pessoal do
praticante, adaptando-se aos mais diferentes contextos, discursos e práticas,
tendo como elo fundador e aglutinador a magia. Como ressaltado por uma de
minhas interlocutoras, “é a magia que faz a minha realidade a realidade que ela
é”. A bruxaria é um fenômeno que fala, sobretudo, de espiritualidade, de
diálogo com o universo invisível e com as forças e seres que dinamizam as
materialidades e imaterialidades dos mundos. Com o olhar acróstico da bruxa, é
possível compreender experiências enquanto potência de subjetivação. A
coletividade, tão cara aos grupos de bruxaria, é um lembrete de que não estamos
sozinhos na terra, humanos e não-humanos compartilhando a política de habitar o
mundo. E a bruxa, enquanto ser liminar, caminha entre mundos e reconhece o que
está além das fronteiras do desconhecido, do desqualificado, do obliterado.
Emergindo nas asas do sonho e na potência de agir, pensando e sentindo de outra
maneira.
Fonte: Por Jeferson Bastos, no Jornal da USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário