Projeto que proíbe casamento homoafetivo revela os limites entre
religião e política
O polêmico debate acerca da relação entre política
e religião reacende a partir da proibição das relações homoafetivas, como
casamentos e entidades familiares, pautada pelo Projeto de Lei 5167/09 e
apoiada pela Frente Parlamentar Evangélica. A proposta vai contra a decisão do
Supremo Tribunal Federal, em 2011, que equiparou a relação de pessoas do mesmo
sexo à de sexos opostos.
Após a aprovação do projeto pela Comissão de
Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos
Deputados a medida ainda segue para outras comissões. Vitor Gonçalves Medeiros,
pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP,
comenta a aliança entre o ativismo político bolsonarista e o evangélico
conservador que permitiu uma radicalização do grupo religioso.
A partir da garantia da laicidade no Estado brasileiro,
com a presença legal limitada de representantes religiosos na política, o PL
parcialmente aprovado já é considerado inconstitucional pela Ordem dos
Advogados Brasil e tida como “discriminatória e sem qualquer respaldo
científico ou constitucional” por Vitor Gonçalves Medeiros.
• Relação
histórica
Medeiros esclarece que, já a partir do século 18,
com as revoluções democráticas e o avanço do movimento iluminista nas relações
sociais, uma separação entre as duas áreas passou a ser vista como necessária.
Ao assumir as diferentes naturezas, a percepção de que não deve haver
influências mútuas, a fim de garantir tanto a liberdade religiosa quanto a
laicidade, possibilita o convívio relativamente harmonioso de ambas.
Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos
da Violência (NEV) da USP, resgata a relação da política brasileira com a
religião, que data desde o período colonial no século 16. A continuidade dessa
combinação mais formalmente — com a presença dos grupos autointitulados
religiosos nas instituições — formulou-se durante a democratização do País, em
1988. “Passando pela República, os evangélicos começam a ganhar uma maior força
e envolvimento com a política, principalmente, depois da Constituição de 1988 e
durante a Assembleia Constituinte de 1986 por essa influência que existia na
igreja católica, que viu a necessidade de ter uma representatividade na Carta
Magna”, comenta Paes Manso.
No cenário mais recente, o pesquisador do NEV
discorre sobre o crescimento dos evangélicos na sociedade e, consequentemente,
na política brasileira. A atuação dessa parcela passa a construir uma visão de
mundo que oferece um propósito muito voltado a soluções individuais para
sobreviver nas cidades, em um ambiente em que o Estado e os direitos sociais
são frágeis e insuficientes para garantir uma vida digna. “Uma visão de mundo
que vai ser muito importante para determinar a visão da direita e da
extrema-direita do bolsonarismo”, relaciona.
Medeiros acrescenta que, apesar do ativismo
político evangélico já ter longa data, sua sincronização com a ascensão da
extrema-direita garantiu expansão. A presença de Damares Alves no Ministérios
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e do pastor Milton Ribeiro no
Ministério da Educação, ambos durante o governo de Bolsonaro, configura
exemplos dessa combinação orientada para um ultraconservadorismo moral.
“Precisa-se destacar também que essa associação entre bolsonarismo e identidade
cristã evangélica e conservadorismo evangélico foi muito criticada por um
segmento evangélico minoritário crítico ao apoio ao Bolsonaro e que tem se
autointitulado, nos últimos anos, como
sendo de esquerda ou progressista”, ressalva o pesquisador da FFLCH.
• Representatividade
e seus impactos
Mesmo com o Estado laico garantido pela Constituição
de 1988, há uma série de simbolismos, sobretudo, cristãos nas mais diversas
instituições estatais. A presença de um crucifixo no Supremo Tribunal Federal e
a citação de Deus no preâmbulo da própria Carta Constituinte são alguns
exemplos. Nesse sentido, por um lado, Vitor Medeiros afirma que a rigor não há
impeditivo legal explícito para a presença de símbolos religiosos no espaço
público. Para além disso, a própria Constituição Federal não proíbe a
participação política de grupos religiosos, a partir do artigo 19, e ainda
prevê uma colaboração de interesse público – desde que não haja uma relação de
dependência ou aliança entre as partes – como iniciativas de assistência
social.
Ao constituir uma representatividade, mesmo que não
de forma absoluta, da população evangélica, Medeiros reforça que a atuação dos
políticos deve se basear essencialmente em argumentos jurídicos. “Mesmo atuando
com base em valores e crenças religiosas particulares, eles usam argumentos
jurídicos e seculares para embasar os seus discursos e suas propostas. Então,
eles não usam a Bíblia no Congresso, eles usam a lei”, destaca ele.
Todavia, grande parte dessa representação,
sobretudo aquela na Frente Parlamentar Evangélica, vai de encontro à expansão
dos direitos civis e da cidadania do público LGBTQIAPN+, na medida em que
propaga valores conservadores. “Acho que essa postura política gera dois tipos
básicos de impacto: primeiro impacto normativo legal, ou seja, impacto
institucional como força de veto que bloqueia a expansão dos direitos do
público LGBT, e um segundo de natureza cultural, que reforça preconceitos e
discriminação dessas pessoas”, avalia o pesquisador da FFLCH.
• Limites
entre religião e política
Tais condições para uma relação harmoniosa entre a
política e a religião não se cumprem em diversos casos, como na atual
tramitação e aprovação pela Comissão de Previdência, Assistência Social,
Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados do PL 5167 acerca da
proibição dos casamentos e equiparação à unidade familiar das relações
homoafetivas.
O texto, denominado inconstitucional pela OAB,
baseia-se em argumentos jurídicos historicamente datados com princípio de
normatizar a conjugalidade e a parentalidade perante a lei, além de
justificativas religiosas baseadas na Bíblia. O artigo 226 da Constituição, que
identifica a entidade familiar composta pela união estável entre homem e
mulher, e o Código Civil de 2002, em que a noção de casamento identifica apenas
a união heteronormativa, são citados no PL.
“Toda a temática já foi atualizada por
jurisprudência do STF que, a partir de 2011, reconheceu a união civil de casais
homoafetivos. Então, soa anacrônico, no mínimo, além do projeto de lei usar
argumentos religiosos”, ressalta Vitor Gonçalves Medeiros. Dessa forma, há uma
imposição e sobreposição de convicções morais privadas em uma esfera pública
universal do Estado brasileiro que fere o princípio de laicidade.
Bruno Paes Manso comenta a necessidade de se
refletir sobre a liberdade religiosa, desde que garantida em esferas privadas e
não públicas. “O problema é quando essas
crenças privadas começam a ganhar e pautar o domínio público, justificando,
inclusive, ações que afetam os direitos de terceiros”, menciona. Assim, a
liberdade religiosa não permite que políticos na esfera pública criem leis a
partir de suas crenças e desrespeitem as minorias. Paes Manso reafirma a
importância de apontar tanto o direito das pessoas acreditarem no que querem
nos espaços privados como a necessidade de lutar pelo Estado de Direito de defesa
das minorias.
Fonte: Por Raquel Tiemi, no Jornal da Unicamp
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