A urgência do debate do financiamento educacional no Brasil. Como ficam
os municípios pobres das regiões ricas?
Desde 1946, o Brasil possui uma contribuição
patronal voltada a suplementar os recursos públicos direcionados à manutenção e
ao desenvolvimento do ensino. Conforme a Constituição Federal daquele ano, em
seu artigo 178, II, deveriam as empresas com mais de cem empregados: “manter o
ensino para seus servidores e filhos destes”. Durante a ditadura militar, o
salário-educação, que surge formalmente por meio da Lei nº 4.440, de 27 de
outubro de 1964, é constitucionalizado em 1967 como medida substitutiva dessa
obrigação criada em 1946.Por meio da mencionada lei, adota-se inicialmente um
percentual a ser recolhido pelas empresas vinculadas à previdência social no
montante de 2% sobre o salário-mínimo, em relação a cada empregado. No ano
seguinte, esse percentual é alterado pela Lei nº 4.863, de 29 de janeiro de
1965, que foi regulamentada meses depois pelo Decreto nº 57.902, de 8 de março
de 1965, o qual reformula tanto a alíquota, quanto a base de cálculo dessa
contribuição. Sua base de cálculo passou a ser o valor total da folha dos
salários recolhidos pelas empresas e a alíquota fixada foi de 1,4%.
Desse valor, conforme o mencionado decreto
regulamentador, metade seria destinada como crédito do Fundo Estadual de Ensino
Primário, para aplicação no próprio Estado, e a outra metade seria vinculada ao
Fundo Nacional do Ensino Primário, para aplicação pela União em todo território
Nacional, na busca de realizar uma distribuição mais equitativa aos estados
mais pobres do país. No entanto, essa obrigação seria relativizada àquelas
empresas que possuíssem mais de cem empregados e mantivessem ensino primário
próprio, ou que distribuíssem bolsas de estudos aos empregados ou seus filhos,
por meio de convênios firmados com escolas privadas.
Essa substituição da obrigatoriedade criada pela
Constituição de 1946 somada à relativização dessa nova obrigação gerou um
cenário pernicioso. Conforme destaca Fábio Konder Comparato: “Esses recursos
iriam para os fundos, que os distribuiriam por meio de bolsas de estudo. Em
torno da criação das bolsas de estudo, construiu-se uma das maiores falcatruas
nacionais, o que era já previsível. Se ocorrem desvios de verbas com incentivos
à agricultura, à indústria, por que não haveria desvio de verbas em matéria
educacional? Inúmeras escolas fantasmas foram montadas, outras muitas
multiplicaram os seus efetivos numa frenética produção de ‘almas mortas’ para
se beneficiarem das bolsas de estudo”.
Essa contribuição, que já surge na ditadura militar
com um propósito deturpado de substituir uma obrigação proposta
constitucionalmente às empresas por outra que na prática retira direitos
educacionais, determinou-se a partir de então como um dos principais mecanismos
de financiamento da educação no país.
Na Constituição Federal de 1988, o salário-educação
foi previsto originalmente no artigo 212, §5 como fonte adicional de financiamento
do ensino fundamental público. A partir da Emenda Constitucional nº 53/2006,
por meio da alteração desse parágrafo, passou essa contribuição a ser destinada
à toda educação básica. Mas, mais do que isso, essa emenda adicionou ao artigo
212 o §6 que determina: “§ 6º As cotas estaduais e municipais da arrecadação da
contribuição social do salário-educação serão distribuídas proporcionalmente ao
número de alunos matriculados na educação básica nas respectivas redes públicas
de ensino”.
É sobre esse artigo que recai a discussão do
julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 188, no
qual em 15 de junho 2022, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF)
determinou, por maioria de votos, que as cotas estaduais e municipais do salário-educação
fossem integralmente distribuídas utilizando-se como critério apenas a
proporcionalidade do número de estudantes matriculados de maneira linear.
Dessa forma, o STF deixou de considerar como um dos
critérios para essa distribuição a proporcionalidade da arrecadação dos estados
a título de salário-educação, que era até então considerado na metodologia do
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), tendo em vista que este
critério não observaria como parâmetro, de maneira direta, a quantidade de
matrículas na rede pública.
O argumento utilizado pelo STF é de que a Emenda
Constitucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006, ao inserir o §6 no artigo 212
da Constituição Federal, determinou como critério para a distribuição dos
recursos da contribuição social do salário-educação apenas o número de alunos
matriculados na educação básica nas respectivas redes públicas de ensino. Dessa
forma, não recepcionou a regra utilizada pelo FNDE que se baseia nas Leis nº
9.424/1996, 9.766/1998 e 10.832/2003.
Para além da interpretação jurídica do critério a
ser adotado, que, de fato, se demonstra hermeneuticamente simples, dado que
decorre de uma interpretação literal-gramatical por parte do STF do texto da EC
nº 53/2006, que é objetivo no critério estabelecido, a questão remete a um
problema maior, dado que, também objetivamente, a insuficiência de recursos
destinados ao financiamento educacional faz com que o Poder Público necessite
fazer uma escolha a respeito de quais municípios pobres serão financeiramente prejudicados
nessa distribuição, se aqueles presentes nas regiões mais vulneráveis do país,
especialmente o Nordeste, que dada a densidade demográfica era o mais
prejudicado proporcionalmente pela regra anterior, ou se os municípios pobres
das regiões ricas que, a partir de uma decisão judicial, terão significativa
parcela dos seus recursos para o financiamento educacional comprometida.
Um caso concreto permite demonstrar o tamanho da
fragilidade no financiamento educacional do país e a iminente necessidade de
discutirmos com seriedade a efetivação do financiamento educacional. No
Município de Suzano, conforme dados disponibilizados pela Secretaria Municipal
de Educação, com a nova regra, o valor estimado para o Salário Educação em
2024, momento de início de vigência da decisão do STF, terá uma queda de
aproximadamente 42%, relativamente ao ano de 2023. Essa regra decorre da
redução do coeficiente de distribuição deste recurso, que passa de 0,0060 no
ano base de 2022 para 0,0031 em 2023.
Essa redução se agrava pelo descumprimento de uma
outra norma jurídica, a Lei nº 13.005/2014 (Plano Nacional de Educação), que
determinava até 2024 um percentual de 10% do Produto Interno Bruto (PIB)
destinado ao setor, mas que em 2022 atingiu apenas 6,37% do PIB. Caso essa norma
fosse cumprida, significativa parte do efeito dessa redução seria mitigada,
dado que é a insuficiência do financiamento educacional que faz com que os
municípios vulneráveis tenham que equacionar a divisão dessa ausência de
recursos. Em tempos de arcabouço fiscal, ou de uma reforma tributária que busca
interferir na regressividade especialmente da tributação sobre o consumo, tendo
em vista a evidente vulnerabilidade do financiamento de um setor crucial para o
funcionamento econômico, social e cultural do país, é nevrálgico colocarmos em
centralidade a pauta do financiamento da educação, neste momento em que as
tratativas para elaboração do novo Plano Nacional de Educação (2024 a 2034)
começam a ser discutidas.
A
privatização da educação superior. Por Otaviano Helene
Por causa de seu caráter estratégico e de sua
importância na construção do futuro de um país, o ensino é majoritariamente ou
quase exclusivamente público em todos os países. Mas no Brasil não é bem assim;
na média de todos os níveis educacionais, nosso país está entre os 20% mais
privatizados.
Quando examinamos a educação superior em
particular, nossa situação se mostra ainda mais extremada: de cada quatro
matrículas, três são em instituições privadas, proporção que nos coloca entre
os seis países mais privatizados do mundo em um conjunto de cerca de 160
países. É necessário observar que esta situação não está apenas muito distante
da média mundial, mas também do que se observa nos países de economia liberal.
Por exemplo, nos EUA, a situação é a inversa da nossa: lá, de cada quatro
matrículas na educação superior, três são em instituições públicas.
Entre os países com taxas de privatização na
educação superior abaixo dos 5% estão Cuba, Dinamarca, Irlanda, Luxemburgo,
Mauritânia, Síria, Tajiquistão e Uzbequistão, mostrando que a forte presença do
setor público é uma característica encontrada em países política, cultural,
geográfica e economicamente bastante diversos.
Países europeus apresentam taxas de privatização do
ensino superior tipicamente abaixo ou muito abaixo daquela dos EUA. Na América
do Sul, com exceção do Chile, todos os demais países têm taxas de privatização
menores do que a brasileira, sendo o Uruguai, com cerca de 15%, o menos privatizado,
segundo dados divulgados pela Unesco.
• São
Paulo e os demais estados
A privatização na educação superior não é uniforme
nos diversos estados brasileiros, tendo São Paulo taxas de privatização bem
superior às dos demais estados, qualquer que seja o critério usado para
defini-la. Adotando como indicador de privatização a distribuição dos
estudantes pelas diferentes instituições, vemos que em São Paulo apenas 15% das
matrículas em cursos presenciais estão em instituições públicas, contra 25% na
média dos demais estados.
Quando comparamos a oferta de vagas de ingresso na
educação superior pública com a quantidade de concluintes do ensino médio,
novamente São Paulo destoa, e muito, dos demais estados. Em São Paulo há apenas
uma vaga de ingresso em universidade pública para mais do que dez concluintes
do ensino médio; nos demais estados essa relação é de uma vaga para cada 3,7
concluintes. Se considerarmos todos os tipos de instituições e de cursos
pós-médio, em São Paulo há 5,2 formados para cada vaga contra 3,0 nos demais
estados.
É importante observar que essa alta relação entre o
número de formados no ensino médio e o número de vagas de ingresso disponíveis
no setor público não se deve ao fato de que em São Paulo a taxa de conclusão do
ensino médio seria muito mais alta do que nos demais estados, pois a exclusão
dos estudantes é muito grande em todo o país. Atualmente, cerca de um terço dos
jovens abandona a escola antes de completar o ensino médio, tanto em São Paulo
como na média nacional. A diferença da taxa de conclusão em São Paulo e nos
demais estados é muito inferior às enormes diferenças entre formados no ensino
médio e vagas públicas disponíveis.
Se adotarmos como indicador da privatização as
populações dos estados, novamente São Paulo é recordista: por aqui, temos uma
matrícula em universidade pública para cada conjunto de mais do que 210
habitantes, relação duas vezes maior do que se observa nos demais estados. Se
considerarmos todos os tipos de cursos superiores – faculdades, centros
universitários, institutos federais e cursos de curta duração (como os de
formação de tecnólogos) – a relação seria de quase 150 habitantes por matrícula
em São Paulo em comparação com 93 nos demais estados.
• Conclusão
A educação brasileira sempre foi muito ruim, mesmo
quando comparada com os países da América do Sul. No quesito alfabetização de
adultos (25 anos ou mais), apenas a Guiana apresenta uma taxa inferior à nossa.
Nossos indicadores de inclusão na educação superior, incluindo as matrículas
nas instituições privadas, estão muito aquém daqueles da Argentina, Chile e
Uruguai, colocando-nos no grupo de países com menores taxas de matrículas. Em
raríssimos países a privatização atinge a proporção vista no Brasil e talvez em
nenhum país ela seja tão alta como no estado de São Paulo.
O fato de São Paulo ter uma taxa de privatização do
ensino superior bem maior do que os demais estados mostra que o argumento de
que o setor privado atua em complementação ao setor público, dada a
insuficiência de recursos deste último, não condiz com o que se observa. Caso
isso fosse correto, a privatização seria maior nos demais estados, não naquele
com maior renda e geração de impostos per capita. O fato parece ser mais
condizente com a hipótese de que onde a população tem maior renda, o estado se
ausenta para abrir espaço para o setor privado.
Essa situação paulista e também brasileira é um dos
frutos da privatização e do subinvestimento em educação pública no Brasil e no
estado de São Paulo e um projeto político, social e ideológico. Ela não é
apenas resultado de ações de um ou outro governo, mas é parte de um projeto de
longo prazo, construído ao longo de décadas.
Educação é fundamental para a emancipação das
pessoas e para o entendimento do mundo, para o crescimento econômico e o desenvolvimento
social e cultural de um país, para o enfrentamento das desigualdades econômicas
entre pessoas e regiões e para a garantia da soberania nacional. Por essas
razões, entre outras também importantes, a educação é basicamente ou quase
exclusivamente pública na maioria dos países, e não uma mercadoria cujo acesso
dependa do poder aquisitivo e da motivação das pessoas.
Fonte: Por Sônia Portella Kruppa; Fábio Sampaio
Mascarenhas e Cintia Mara de Freitas, no
Jornal USP
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