(Des) governança climática
O clima do planeta está em transformação. Estamos
em uma década crítica quando se trata de evitar que o aquecimento global atinja
proporções catastróficas. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climática
(IPCC, na sigla em inglês), ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), vem
desempenhando, desde 1988, um papel importante no sentido de fornecer avaliações
científicas sobre a mudança climática global, suas implicações e os possíveis
riscos futuros. Esse tem sido um trabalho responsável por promover um
conhecimento sólido a respeito do assunto para os tomadores de decisão,
propondo opções de adaptação e mitigação. Em seu sexto relatório,
recém-publicado, o IPCC evidencia a necessidade de eliminar o consumo de
combustíveis fósseis (um dos principais contribuidores para a emissão de gases
do efeito estufa) e prevê que, nos próximos 2 mil anos, o nível médio global do
mar aumentará entre 2 e 6 metros, se o aquecimento ficar limitado a até 2ºC.
Contudo, à medida que a política climática vem se tornando mais complexa e que
os eventos climáticos extremos vêm ocorrendo em espaços de tempo mais curtos, o
IPCC é cada vez mais chamado a desempenhar papéis não previstos 35 anos atrás e
para os quais o órgão não está preparado.
Estudos desenvolvidos no Instituto de Geociências
(IG) da Unicamp analisam a atuação do IPCC. Um artigo publicado na Nature
Climate Change sugere três possíveis caminhos institucionais a serem seguidos
pelo painel, que tem como uma de suas funções assessorar governos globais. A
publicação conta com a participação dos docentes Jean Carlos Hochsprung Miguel
e Marko Synésio Alves Monteiro, do Departamento de Política Científica e
Tecnológica (DPCT) do IG e que já trabalham há algum tempo com questões ligadas
a ciência, política e meio ambiente. Os professores integram um grupo
internacional de pesquisadores do campo de estudos sociais de ciência e tecnologia
(ESCT) que publicou o livro A critical assessment of the Intergovernamental
Panel on Climate Change (uma avaliação crítica sobre o Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas). Miguel e Monteiro contribuíram
com um capítulo voltado para as epistemologias cívicas – conceito que permite
compreender como diferentes culturas políticas nacionais podem influenciar a
relação entre ciência e política. Em abril de 2023, parte do grupo de autores
se reuniu na Universidade de Cambridge (Reino Unido) para finalizar o livro. A
ideia de publicar um artigo apontando a necessidade de mudanças no órgão
originou-se desse encontro.
“O artigo especula três cenários para o IPCC, que
são derivados da avaliação crítica desenvolvida no livro e consolidada no
workshop”, explica Monteiro. “Existe um diagnóstico sobre um passado
bem-sucedido do IPCC: fez relatórios, influenciou a política global e mudou a
história da ciência e da política climática global. O painel superou todas as
controvérsias e consolidou o aquecimento global como um fato científico”,
explica Miguel. Esses três cenários apontam para caminhos bastante distintos. O
primeiro sinaliza para uma manutenção do modelo atual, com pequenas reformas
instrumentais. Já o segundo cenário acena para uma melhor incorporação das
ciências sociais e humanas, diversificando as formas de conhecimento com a
colaboração de comunidades tradicionais, da sociedade civil e do setor privado.
O terceiro supõe uma mudança profunda no IPCC, que deixaria de lado a atual
postura de neutralidade a fim de adotar a responsabilidade social como
princípio orientador.
• Responsabilidades
históricas
Duas teses, desenvolvidas no DPCT sob orientação de
Rosana Icassatti Corazza, professora do departamento, ilustram a necessidade de
mudança no painel e na governança climática. Em uma delas, o pesquisador
Guilherme Nascimento Gomes aplicou o conceito de justiça climática. De acordo
com o trabalho desenvolvido, as consequências dos impactos causados por esses
eventos podem levar a perdas e danos que afetarão de forma desigual o planeta,
os países e as suas populações. Países e comunidades vulneráveis serão os mais
impactados pelos eventos climáticos extremos do futuro, tais como ondas de
calor, aumento dos níveis dos oceanos, furacões, inundações e secas. “Países
que não contribuíram significativamente para o problema se encontram agora mais
vulneráveis aos riscos das mudanças climáticas”, explica o pesquisador.
Mesmo ao longo de mais de 30 anos de negociações
climáticas, houve um aumento exacerbado das emissões de gases poluentes. A tese
de Gomes retoma de modo mais amplo a concepção brasileira proposta para o
Protocolo de Kyoto – que não foi a vencedora. O Brasil havia proposto o
princípio das responsabilidades históricas, no qual o ônus do combate às
alterações climáticas deveria ser distribuído com base nas emissões acumuladas.
No estudo da Unicamp, Gomes aponta ser preciso reinterpretar a proposta
brasileira de modo a incluir responsabilidades históricas de atores não
estatais, como as grandes corporações poluidoras. “Diante da constatação de que
nem todos contribuíram de forma equitativa para o problema e que há
vulnerabilidades mal distribuídas entre os países, é urgente que sejam
incorporados princípios de justiça climática”, diz Corazza. “Sabemos que os
eventos climáticos extremos incidem com maior força sobre os mais vulneráveis.
Nesse sentido, é preciso que haja políticas voltadas para essas parcelas dentro
das populações de cada país”, complementa Gomes. “Infelizmente, o que se espera
é que a frequência, a intensidade e a escala desses eventos ainda se aprofundem
muito nos anos vindouros. Os Estados arcarão com a maior parte do ônus. Segundo
propusemos na tese, as grandes corporações que historicamente contribuíram
fortemente para o problema devem assumir responsabilidade também no
enfrentamento das consequências da transformação do clima. Esse é um grande
desafio para repensar a governança global do clima”, argumenta a professora.
• Desmantelamentos
Na segunda das teses, Maria Cristina Oliveira Souza
avaliou a questão da governança climática no Brasil nos setores da agricultura,
das florestas e de outros usos da terra, sob o regime do Acordo de Paris, que
substituiu o Protocolo de Kyoto. A pesquisadora examinou quatro estratégias de
desmantelamento das políticas associadas à governança climática ambiental:
desmantelamentos ativo, simbólico, por omissão e por mudança de arena. A partir
de evidências levantadas por meio da análise do comportamento de diversos
atores implicados na governança climática, Souza comprovou o caráter
sistemático do desmantelamento institucionalizado. “A ‘[des]governança
climático-ambiental’ ocorre quando há o ‘afrouxamento’ das leis ambientais – e
de seu enforcement (sua implementação, que requer fiscalização, monitoramento,
aplicação das leis, multas etc.) – e quando essa diretriz é estabelecida como
estratégia de governo, por meio da adoção de medidas legais e infralegais”,
explica. Isso não quer dizer que o governo necessariamente deixe de fazer a
governança climático-ambiental, mas significa que, por suas ações e omissões no
campo das políticas ambientais, o governo atua em favor de um conjunto de
atores, particularmente os do setor privado. “Quando as leis ambientais são
enfraquecidas, a fiscalização é afrouxada de forma institucional. Nesse
processo, o desmantelamento é absolutamente intencional – todas as chamadas de
‘estratégias de desmantelamento’ tomam uma forma organizada, articulando as
ações governamentais”, complementa.
A emissão de gases do efeito estufa está globalmente
associada à queima de combustíveis fósseis. No Brasil, no entanto, a atividade
agropecuária responde por 74% da poluição e impulsiona entre 90% e 99% do
desmatamento. “O nexo entre o desmantelamento de políticas e o afrouxamento das
metas de redução das emissões de gases de efeito estufa no Brasil para o Acordo
de Paris consistiu no que veio a ser chamado de ‘pedalada climática’”, explica
a pesquisadora.
As informações fornecidas pelo IPCC são suficientes
para que se elabore uma governança climático-ambiental focada na
sustentabilidade ambiental, social e econômica. “Para isso, porém, é preciso um
comprometimento maior em relação àquilo que vem sendo apresentado como as metas
para o Brasil. Nossa legislação ambiental é considerada muito completa por
especialistas e, principalmente no período do regime do Protocolo de Kyoto, o
Brasil foi considerado um protagonista internacional na governança climática”,
afirma Souza. “Precisamos de uma incisiva fiscalização para que a legislação
seja cumprida. Para isso, é necessário um orçamento adequado, um adensamento do
conhecimento técnico-científico, a participação cidadã, o reconhecimento e a
integração dos conhecimentos tradicionais sobre os biomas e sobre as
possibilidades de uma bioeconomia justa e com a floresta em pé. É preciso
garantir também o monitoramento, as fiscalizações, o reforço e a reorganização
das equipes técnicas competentes que sofreram com o desmantelamento recente”,
complementa Corazza.
• Há
saída?
Para a ONU, a era do aquecimento global foi
substituída pela da fervura global (global boilling). Os termos utilizados
foram mudando ao longo dos anos: de aquecimento global para mudanças
climáticas, daí para emergência climática e agora para novo regime climático.
“Já vivemos nesse padrão climático alterado com que o IPCC vem trabalhando
desde o lançamento do primeiro relatório, em 1990”, lembra Miguel. “Estamos
vivendo uma exacerbação muito forte dos efeitos, como o desastre no Rio Grande
do Sul [por excesso de chuvas] e nos Estados Unidos [na forma de queimadas]. A
efetividade política parece ter alcançado um platô”, afirma Monteiro. Para
Miguel, o IPCC está em uma encruzilhada e precisa escolher bem qual caminho
seguir. “Se o painel se mantiver como está, há o risco de seus relatórios se
tornarem politicamente irrelevantes, apesar de continuarem a ter relevância
científica”, diz.
Gomes acredita que o órgão não consiga mais
contribuir para que as metas climáticas globais sejam alcançadas. “O IPCC é uma
agência que produz a ciência capaz de dar apoio às metas individuais de cada
país. No meu entendimento, é preciso um mediador multilateral eficiente capaz
de coordenar a governança climática internacional e aplicar sanções aos países
que descumprirem os acordos. Se cada país cumprisse aquilo que prometeu nas
discussões internacionais, acredito que estaríamos com o efeito líquido das
emissões controlado”, afirma. Para Corazza, sua orientadora, “não há dúvidas
sobre o status de reconhecimento científico do painel nas questões da ciência
do clima, da vulnerabilidade, da mitigação e da adaptação. Entretanto, as
trajetórias de emissão de gases do efeito estufa continuam a acelerar”.
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BRASIL VAI SEDIAR COP 30
Em 2025 o Brasil vai receber a 30ª Conferência das
Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima – COP-30,
na sigla em inglês. Essa será a primeira vez que o país sediará o evento, e a
escolha de Belém (PA), na Amazônia, para recebê-lo é muito significativa. Essa
deve ser mais uma oportunidade de chamar atenção internacional sobre como a
governança climática vem sendo inserida nas discussões globais relacionadas ao
tema e sobre as possibilidades de um novo enquadramento da própria ideia de
desenvolvimento sustentável.
Para Corazza, “a Amazônia brasileira está se
aproximando em grande velocidade do tipping point [ponto de não-retorno] que
significa sua savanização. Ou seja, a conversão da floresta equatorial em
cerrado – uma imensa catástrofe climática”. Ainda assim, “há a esperança de uma
virada sociobioeconômica com o reconhecimento dos saberes dos povos originários
e das comunidades tradicionais e o reconhecimento de que a floresta ‘em pé’ é
uma condição para a preservação da teia da vida, que vai perdendo tessitura,
densidade e vigor. Não falamos ‘apenas’ de mudanças climáticas. Trata-se de uma
transformação ecológica de grandes dimensões”, finaliza.
ESTUDO PROJETA OS IMPACTOS CAUSADOS PELO CALOR
EXTREMO
De acordo com o 6° Relatório IPCC, publicado em
2023, prevê-se, no curto prazo, que todas as regiões do mundo enfrentem novos
problemas climáticos, aumentando os riscos para os ecossistemas e para os seres
humanos. Entre esses riscos, está o crescimento no número de mortes de seres
humanos relacionadas com o calor. Um artigo publicado na Nature Communications
trata exatamente do aumento rápido desse risco. O estudo faz um alerta para o
fato de que as estações extremas, com alta mortalidade por calor, que
costumavam ocorrer uma vez a cada cem anos, estão se tornando frequentes e
devem ser esperadas a cada dois a cinco anos. O artigo aponta também para os
impactos sem precedentes na saúde das populações se nenhuma adaptação ocorrer
da parte da governança climática global.
Segundo Micheline Coelho, pesquisadora associada do
Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina (FM)
da Universidade de São Paulo (USP), “extremos climáticos vão continuar
ocorrendo. Não se trata mais de uma questão de frear. A questão agora é de
adaptação”. Coelho, uma meteorologista que hoje cursa Medicina na International
University of Medical Sciences (EUA) e está na Unicamp para um estágio em
clínica médica, tem desenvolvido pesquisas junto com um grupo de pesquisadores
da Monash University (Austrália). A pesquisadora coordena, junto com o professor
Paulo Saldiva, da USP, a colaboração brasileira no Multi-Country Multi-City
(MCC, muitos países muitas cidades), rede internacional de equipes de
pesquisadores que visa produzir evidências epidemiológicas sobre associações
entre o clima e a saúde. O MCC produziu o artigo publicado na Nature
Communications.
“São Paulo, que é uma das cidades foco do artigo
era, até algum tempo atrás, a terra da garoa. Hoje não é mais”, constata. A
cidade tem passado por alterações no seu microclima. “Foi aplicado um modelo de
previsão de clima empírico responsável por demonstrar que, se a temperatura
aumentar 1,5°C, haverá aumento no risco de as pessoas morrerem ou adoecerem”,
complementou. Dentre os riscos à saúde ocasionados pelo calor estão a
desidratação e alterações na pressão arterial. “As pessoas não estão preparadas
para enfrentar os extremos de calor causados pela mudança climática, assim como
estão despreparadas as instalações hospitalares e as moradias construídas
quando o clima ainda não tinha mudado”, alerta a pesquisadora, prevendo a
necessidade de adaptação.
Fonte: Por Eliane Fonseca Daré, para o Jornal da
Unicamp
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