Marc Weller: o que o direito internacional tem a dizer sobre o conflito
Israel-Hamas
A lei aceita a realidade de que a guerra é uma
característica das relações humanas. Assim, o direito na guerra pretende
encontrar um equilíbrio entre a necessidade de usar a força em circunstâncias
extremas e o desejo de reduzir a perspectiva de guerra e manter ao mínimo o
sofrimento humano associado. Este ato de equilíbrio assume duas formas. A Carta
das Nações Unidas limita o direito dos estados de fazer guerra. O direito
humanitário limita os meios de guerra.
A Carta das Nações Unidas permite a autodefesa
necessária e proporcional. Mas nem sempre é fácil determinar quanta força é
proporcional a um ataque armado e necessária para prevenir o próximo.
Na sequência dos ataques terroristas de 11 de
setembro de 2001, por exemplo, foi amplamente aceito que a América gozava do
direito de autodefesa, mesmo contra um ator não estatal como a Al-Qaeda. Mas
quanta força seria proporcional ao assassinato de mais de 3.000 pessoas em Nova
Iorque?
As forças americanas tinham o direito de perseguir
e derrotar a Al-Qaeda no Afeganistão, onde o grupo de Osama Bin Laden estava
baseado principalmente. Indiscutivelmente, isto incluía o direito de ir ao
ponto de derrubar o governo Taliban, que estava tão intimamente ligado à
Al-Qaeda que teria sido impossível derrotar um sem, ao mesmo tempo, enfrentar o
outro.
Em resposta ao terrível ataque de 7 de outubro,
Israel também tem direito à autodefesa. Mas qual é a resposta proporcional à
horrenda atrocidade que custou cerca de 1.400 vidas, principalmente civis, e
ainda expõe mais de 200 reféns ao terror incessante?
O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu,
afirma que é necessário erradicar o Hamas como força política e militar para
evitar novos ultrajes. Mesmo que a legítima defesa vá tão longe, ainda há mais
equilíbrio entre valores concorrentes a ser feito no âmbito do segundo ramo do
direito aplicável, o direito humanitário.
Uma população civil permanece protegida pelos
princípios fundamentais do direito humanitário, mesmo num conflito desencadeado
por uma indignação indefensável do tipo montada pelo Hamas, que evidentemente
não respeita as regras da humanidade. Israel aceita plenamente este fato. A
dificuldade surge, novamente, no que diz respeito à proporcionalidade – desta
vez como um elemento do direito humanitário.
O primeiro princípio do direito humanitário é o da
distinção entre combatentes e civis, juntamente com a obrigação de garantir a
proteção dos civis. Os ataques não devem ser dirigidos contra uma população
civil. Esta proibição inclui bombardeios aéreos indiscriminados de áreas civis.
Quando for impossível isolar os civis de um ataque
contra um objetivo militar legal, a proporcionalidade exige um equilíbrio entre
a vantagem militar obtida através do ataque e a extensão dos danos civis que
este irá previsivelmente causar. O direito humanitário estabelece que se “a
perda acidental de vidas civis for excessiva em relação à vantagem militar
concreta e direta prevista”, então a operação não deve ocorrer.
Israel argumenta que, dada a gravidade da ameaça à
sua segurança nacional e às vidas dos seus cidadãos, esta disposição não deve
impor restrições indevidas à sua campanha militar. Sharvit Baruch, antigo
conselheiro jurídico sênior das forças armadas de Israel, argumenta: “Mesmo que
muitos civis em Gaza sejam feridos durante os ataques”, quando comparados com o
esmagador interesse de segurança de Israel em derrotar o Hamas “isto não é
necessariamente um dano incidental excessivo e, portanto, [estes] não seriam
ataques desproporcionais que são ilegais.”
Esta visão desequilibraria a lei sobre a proteção
dos civis. A extensão da sua aplicação não pode ser relativa, dependendo do
sentimento de injustiça e ameaça sentido pelo Estado que utiliza a força. Cada
Estado que vai para a guerra sentirá inevitavelmente que os seus interesses
vitais estão em jogo. Mas isto torna-se um julgamento sobre até que ponto a
força pode ser utilizada em autodefesa ao abrigo da Carta das Nações Unidas, e
não sobre até que ponto os civis devem ser protegidos ao abrigo do direito
humanitário quando essa força é utilizada.
O direito humanitário exige que a vantagem militar
de cada operação de combate durante o conflito seja equilibrada com o risco de
vítimas civis, mesmo que estejam em jogo interesses vitais do Estado que monta
a operação.
O Coronel Baruch acrescenta que “Uma vez que o
Hamas coloca a sua infraestrutura militar no coração da população civil na Faixa
de Gaza, incluindo casas residenciais, escolas, mesquitas e empresas, é
permitido dirigir ataques a estes locais, uma vez que perderam a sua capacidade
civil.”
Mais uma vez, o fato de o Hamas operar a partir de
um território densamente povoado não priva a população civil desse território
de proteção legal. Estes não são escudos humanos voluntários, mesmo que o Hamas
tente mantê-los no seu lugar através de desinformação e propaganda. Os ataques
contra o Hamas só podem ser realizados se não houver risco previsível de causar
vítimas civis excessivas quando comparado com a vantagem militar obtida com os
ataques que estão a ser contemplados.
Israel afirma que cumpre o seu dever de distinguir
entre civis e combatentes, ao dizer à população do norte de Gaza para evacuar.
A um nível táctico, quando um edifício específico for atacado, tais medidas
podem ser legítimas ou mesmo legalmente exigidas. No entanto, mesmo onde o
Hamas possui redes de túneis subterrâneos, não é permitido retirar um milhão de
civis para gerar um campo de fogo livre em todo o norte de Gaza.
Israel não pode cumprir o seu dever de distinção
entre combatentes e civis simplesmente desejando que toda a população civil se
vá embora. Isto pode tornar muito mais difícil para Israel travar esta guerra,
mas não pode simplesmente transferir os riscos envolvidos no combate armado num
ambiente urbano dos seus soldados para os civis.
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha emitiu uma
declaração confirmando que este deslocamento é incompatível com o direito humanitário,
especialmente porque o sul de Gaza, a área para onde a população deverá
deslocar-se, também está sujeito a ataques e privado daquilo que será
necessário para aqueles que vivem ou se deslocam para sobreviver – a menos que
a ajuda chegue de forma consistente e confiável. A recusa em permitir a entrada
de quantidades suficientes de fornecimentos humanitários na área, entregues sob
controlo e supervisão internacionais, também não pode ser justificada por
qualquer vantagem militar que tal estratégia pretenda proporcionar. Mesmo que,
como afirma Israel, o Hamas mantenha secretamente os seus próprios estoques de
combustível e abastecimentos e os reserve para a guerra e não para outros
habitantes de Gaza, isso não pode justificar negar aos civis, amontoados numa
posição de extrema vulnerabilidade, aquilo de que necessitam para sobreviver.
Ø Limites da guerra: o que são
as leis que determinam como um conflito pode ser conduzido
O número crescente
de vítimas no conflito Israel-Hamas após um ataque
sem precedentes do grupo palestino ter deixado mais de 1,4 mil mortos, segundo
o governo de Israel, e a intensificação
das ações por terra e por ar de Israel contra Gaza levantaram ao redor do mundo discussões sobre quais são os
limites de uma guerra.
Basicamente, a pergunta principal nestes casos é: o
que pode ou não ser feito por cada uma das partes no caso de um conflito
armado?
Mesmo um cenário de
guerra deve obedecer regras, segundo o Direito
Internacional. E elas devem ser seguidas tanto por forças de Estados quanto por
grupos armados não estatais (leia mais abaixo).
As regras tratam de dois aspectos centrais e que
não devem ser confundidos, segundo os especialistas: uma parte determina
cenários nos quais o uso da força poderia ocorrer, e outra parte estabelece os
limites que devem ser observados durante
conflitos, principalmente para proteger
civis.
A seguir, entenda o que dizem as principais regras
sobre os limites de uma guerra.
·
'Legítima defesa': quando
uma guerra pode ser iniciada?
Uma parte dessas regras internacionais está
relacionada ao início de uma guerra – ou seja, determina se um conflito armado pode
ou não ser iniciado.
A possibilidade de legítima defesa é prevista no
artigo 51 da Carta das
Nações Unidas, assinada em 1945, que tem entre
seus objetivos manter a paz e a segurança internacionais.
O tratado proíbe o uso da força, com duas exceções:
casos de legítima defesa contra um ataque armado, e quando é autorizado pelo
Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Segundo essa regra, "quando um país é atacado,
ele tem o direito legítimo de resposta proporcional", diz Carolina Claro,
professora de Direito Internacional no Instituto de Relações Internacionais da
Universidade de Brasília (UnB).
Thiago Amparo, professor de Direito Internacional e
Direitos Humanos na FGV Direito SP, acrescenta que "a carta das Nações
Unidas deixa explícito que a ideia é que, logo que for feito um ato em
autodefesa, é necessário que se notifique o Conselho de Segurança da ONU para,
caso queira, tomar as medidas necessárias".
Ele aponta, ainda, que "o Conselho de
Segurança é o principal órgão que vai olhar se aquela autodefesa extrapolou os
seus limites, a exigir restrição e diminuição do uso da força ou a parar o uso
da força por uma autoridade específica".
Carolina Claro diz que "a legítima defesa, no
Direito Internacional, vem da ideia de guerra justa, na Baixa Idade Média, e
foi consolidada no artigo 51 da Carta da ONU".
Essa parte das normas, diz Claro, são as
"regras da guerra", que tratam sobre "o direito de um Estado
entrar ou não em guerra".
"E também há as regras na guerra, que é como
as partes devem se comportar."
·
Regras na guerra: como
limitar os efeitos de um conflito armado?
A proteção da população civil e de bens civis
durante conflitos armados está prevista no chamado Direito Internacional
Humanitário. O objetivo é limitar os efeitos dos conflitos armados uma vez que
são iniciados.
Esse conjunto de regras se aplica "igualmente
a todos os lados, independentemente de quem tenha iniciado o conflito ou dos
motivos", segundo o
Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV).
Além disso, o CICV
aponta que todos os que lutam numa guerra devem
respeitar esse conjunto de regras – tanto forças de Estados quanto grupos
armados não estatais.
Amparo também destaca que essas regras – que
protegem os civis, prisioneiros de guerra e feridos – devem ser seguidas em
qualquer contexto de conflito armado.
"As regras humanitárias devem ser respeitadas
independentemente de quais são os fundamentos da guerra – a guerra pode ser um
crime de agressão ou pode não ser um crime de agressão (...) Isso é uma outra
análise", diz o professor.
O objetivo dessas normas é chegar a um equilíbrio
entre as preocupações humanitárias e as exigências militares do conflito
armado.
Essas normas incluem proteção para combatentes
feridos e enfermos, regras para tratamento de prisioneiros de guerra, e
restrições ao uso de determinadas armas e métodos de guerra. E as regras
proíbem que civis sejam feitos reféns, conforme o
CICV.
Também proíbe o assassinato e tortura das pessoas
protegidas (civis, feridos, enfermos, prisioneiros de guerra) e estabelece que
pessoas feridas e enfermas devem ser recolhidas e tratadas e que, para garantir
isso, atividades médicas e transportes médicos devem ser respeitados e
protegidos.
Prevê também que o acesso à assistência humanitária
para a população civil afetada pelo conflito deve ser permitido e facilitado, e
que as equipes e os objetos humanitários devem ser respeitados e protegidos.
>>>> As normas do Direito Internacional
Humanitário estão baseadas em três princípios:
·
1. Distinção de civis e
militares
É a exigência de que as partes envolvidas no
conflito armado façam a distinção, a todo momento, entre civis e bens civis –
como escolas e hospitais – e combatentes e objetivos militares.
Os ataques só podem ser direcionados contra
militares – ataques contra civis ou indiscriminados (ou seja, que atingem
militares e civis) são proibidos.
"O Direito Humanitário não proíbe o ataque a
objetos e oficiais militares. Ou seja, é uma guerra. Você pode atacar objetos
militares, mas não pode exercer o uso da força (de forma) que não permita
distinguir entre civis e combatentes", explica Amparo.
·
2. Ataque proporcional
O princípio da proporcionalidade estabelece que,
"ao atacar um objetivo militar, a perda acidental de vidas civis, lesões a
civis, danos a bens civis, ou uma combinação destes, não deve ser excessiva em
relação à vantagem militar concreta e direta prevista", segundo o CICV.
Ou seja, as partes envolvidas precisam prever
“danos incidentais que possam ser causados diretamente por um ataque e os
efeitos indiretos, desde que sejam razoavelmente previsíveis”, ainda de acordo
com o CICV.
Amparo complementa: “Você tem que provar que sua
reação é minimamente proporcional à ação que você sofreu. Não pode simplesmente
receber um canhão e atacar com bomba atômica.”
·
3. Medidas de precaução
“Você tem que mostrar que tomou as medidas
necessárias para poder assegurar que você não tem vítimas civis. Por exemplo,
quando tem ordens de evacuação, em geral, os Estados utilizam isso como
justificativa para dizer que estão exercendo o princípio da precaução”, diz
Amparo.
O princípio da precaução é o que determina que as
partes de um conflito armado devem ter constante cuidado de poupar a população
civil e os bens civis durante a condução de todas as operações militares.
As partes de um conflito devem tomar precauções no
ataque (“precauções ativas”) e uma série de precauções contra os efeitos dos
ataques para proteger civis e bens civis (“precauções passivas”), segundo o
CICV.
As precauções no ataque, segundo a organização,
incluem, por exemplo, medidas para verificar se os alvos são objetivos
militares e para dar à população civil um alerta efetivo antes do ataque.
Para tomar as precauções necessárias para proteger
a população civil e os bens civis sob o seu controle contra os efeitos dos
ataques, é necessário, por exemplo, evitar objetivos militares dentro ou perto
de áreas densamente povoadas. Segundo o CICV, também pode incluir “a evacuação
temporária de civis, ou pelo menos permitir a sua saída, de uma área sitiada
onde as hostilidades estão ocorrendo”.
·
Regras internacionais
E onde estão estabelecidas essas regras?
As normas do Direito Internacional Humanitário
estão previstas principalmente nas Convenções de Genebra de 1949 e em
protocolos adicionais, além de tratados internacionais que proíbem o uso de
determinados meios e métodos de guerra e protegem algumas categorias de pessoas
e objetos contra os efeitos das hostilidades.
Além do que está estabelecido nesses documentos,
parte das regras nessa área já são uma “prática geral aceita como direito”,
como define o CICV. É considerada costume uma norma que “se tornou tão
consolidada que se tornou uma prática generalizada, aceita como direito pelos
Estados em questão”, explica Amparo.
Se regras relativas à guerra forem desrespeitadas,
há consequências previstas.
O Tribunal Penal Internacional é responsável por
julgar os crimes mais graves de interesse internacional, incluindo crimes de
guerra. O TPI não julga Estados, mas indivíduos.
A jurisdição do TPI entra em ação “somente quando
um Estado genuinamente não se mostrar capaz ou estiver relutante a processar
indivíduos suspeitos de terem cometido crimes de guerra sobre os quais tem
jurisdição”, diz o CICV.
O TPI foi criado em 1998, pelo Tratado de Roma, e
entrou em vigor em 2002.
“O TPI passou a ter competência universal para
julgar pessoas por crime de guerra, crimes contra a humanidade, crimes de
genocídio e crime de agressão desde o ano de 2002”, diz Carolina Claro.
“Antes do TPI, a gente teve outros tribunais
internacionais, mas eram tribunais de exceção – desde o tribunal de Nuremberg,
tribunal de Tóquio e dois tribunais criados pelo conselho de segurança da ONU na
década de 1990. Eram tribunais específicos para situações específicas”, explica
a professora.
Fonte: The Economist/BBC News Mundo
Nenhum comentário:
Postar um comentário