José Martins: É a lei do valor, estúpido!
A origem dos preços e por que eles variam é um
verdadeiro mistério para os capitalistas e seus economistas em todo o mundo.
Esta dificuldade aparece sempre quando eles procuram dar uma explicação
convincente do que se passa com a inflação no mercado mundial ou nas suas
próprias economias.
Acontece que agora a coisa ficou mais misteriosa
ainda. Uma estranha criatura estende uma nuvem escura sobre os preços das
mercadorias em todo o mundo. Quando Wall Street ainda discute se o Federal
Reserve Bank (Fed, banco central dos EUA) continuará elevando ou não a taxa
básica de juros para “combater a inflação”, etc. o mercado mundial é
atormentado pelo espectro de uma criatura muito mais letal que a inflação
medida pelo popular índice de preços ao consumidor – exatamente nossa sempre
esperada e querida deflação, a indecifrável e velha dama das catástrofes
econômicas e das revoluções.
A economia chinesa é a primeira grande vítima da
velha dama. E da pesadíssima crise da produção que ela anuncia. Vejamos a coisa
mais de perto.
A figura mostra a evolução dos índices de Preço de
Produção (PPI) e do Preço ao Consumidor (CPI). Refletem, grosseiramente, o
Preço de Produção (PX) e o Preço de Mercado (PM) de Marx. O primeiro é o mais
importante na dinâmica econômica dos ciclos, pois embute endogenamente a massa
e a taxa média de lucro das empresas em diferentes ramos de produção. O PX é
formado antes mesmo das mercadorias produzidas serem vendidas e realizadas na
circulação. Como veremos mais abaixo, o PX depende de uma oferta e de uma
demanda especificamente capitalista, o que passa longe do entendimento vulgar
dos capitalistas e seus adestrados economistas de várias plumagens.
A segunda forma de preço (PM) – a única, não por
acaso, que a economia vulgar leva em conta – varia em torno da primeira (PX),
em função da popular oferta e da demanda da circulação simples, além de uma
infinidade de outras influências exógenas à produção das mercadorias, como
crédito, juros, concorrência, clima, moda, publicidade, impostos, renda
territorial, aluguéis em geral, política econômica, monetária, cambial,
expectativas, incertezas, guerras, desastres naturais etc.
A observação dos movimentos destas duas diferentes
formas de preço é um valioso recurso na prospecção e análise da conjuntura
econômica. Na dinâmica dos ciclos periódicos, a distância entre PX e PM tende a
aumentar nos pontos mais elevados da fase de expansão do capital. O PM
apresenta, então, forte autonomia relativa ao PX. Com prazo de validade, claro.
Esta autonomia começa a enfraquecer e a diminuir a distância entre as duas
formas de preços aos primeiros sinais da fase de desaceleração e, finalmente, a
convergir para PX na fase mais aberta de desvalorização e crise do capital
industrial. No momento da crise PX e PM caem juntos, em sincronia, como é
mostrado no gráfico. Como um único preço. Este é o momento exato em que o que
era apenas tendência à queda da taxa geral de lucro torna-se derrocada fatal
para todo o sistema econômico.
Como ilustrado no gráfico, a China entrou em
ininterrupta trajetória deflacionária a partir de outubro de 2021, quando o PX
atingiu o pico exuberante (Greenspan diria “irracional”) de 13,5% ao ano. Doze
meses depois já tinha caído para o território gelado das taxas negativas
(deflação). Note-se que o PM desenvolve sua autonomia relativa, mantendo uma
inércia de crescimento (2,8% ao ano) até final de setembro de 2022, quando é
“puxado” bruscamente para baixo pelo PX.
Esses movimentos de preços acontecem devido à lei
do valor envolvida no processo de produção de capital. De maneira similar à lei
da gravidade da Física, a lei do valor da Economia Política determina a
variação dos preços na totalidade do mercado mundial e, em seguida, no interior
das principais economias nacionais.
Portanto, não se deve pensar como a economia
política vulgar (e a teoria do subconsumo das massas, do marxismo burocrático)
que é o baixo consumo de bens de consumo individual, ou mesmo capitalista, que
leva à queda dos preços das mercadorias e do lucro dos capitalistas.
Acontece que os capitalistas não vendem mercadorias-simples,
como se imagina, mas, ao contrário, realizam mercadorias-capital que
materializam uma massa de valor e de mais-valia (lucro). E isso é o
determinante da dinâmica de inflação e deflação na esfera da circulação do
capital.
Em outros termos: os capitalistas não vendem um bem
ou utilidade de consumo ou de capital, para satisfazer o desejo ou necessidade
de quem quer que seja, mas vendem uma determinada taxa média de lucro para
acumularem capital. Ininterruptamente.
O momento da crise é quando esta taxa cai
abruptamente. É quando os capitalistas não conseguem mais produzir a taxa média
de lucro no nível adequado à acumulação em determinado ciclo econômico. Com a
queda da taxa de lucro e a consequente deflação dos preços os capitalistas não
se interessam mais em continuar produzindo suas depreciadas mercadorias. E
muito menos “vender com prejuízo”.
Importante repetir para não esquecer na hora de
analisar a conjuntura econômica: a taxa geral de lucro não é criada no ato de
venda da mercadoria, na esfera da circulação. Ela é criada na esfera da
produção e é apenas realizada neste ato da venda dos bens de consumo
individuais ou de consumo produtivo de capital. Esta é uma diferença básica da
economia política dos trabalhadores (Marx e Engels) com a economia política dos
capitalistas. Isso torna as duas teorias e a ideia de demanda absolutamente
inconciliáveis.
Em termos mais visíveis no dia a dia da economia:
os empresários precisam realizar ininterruptamente na esfera da circulação do
capital uma determinada receita de valor agregado e uma massa de mais-valor
(lucro) gerada na esfera da produção. Veja no gráfico abaixo da economia
chinesa as vicissitudes atuais destes bens tão valiosos.
Temos aqui uma visão bastante aproximada dos
determinantes mais profundos dos preços no modo de produção capitalista. Este
gráfico, copiado diretamente do mais recente relatório “O lucro das empresas
industriais acima do tamanho designado de janeiro a junho de 2023” do Bureau
Nacional de Estatísticas da China, mostra na linha amarela a taxa de
crescimento mensal (%) das receitas operacionais (valor e mais-valia) e na
linha azul a taxa de crescimento mensal (%) da totalidade dos lucros
(mais-valia) das empresas na economia chinesa.
Embora grosseiramente, como toda medição
estatística, a relação entre as receitas e os lucros apresentados indica a
trajetória recente da queda da taxa geral de lucro na economia chinesa. É
quando o capitalista procura vender suas mercadorias e não consegue mais
receber (realizar) essa taxa média de lucro que mantenha o seu capital e sua
propriedade de pé. Não consegue produzir com deflação. Com seu desejo de
acumular não atendido, ele paralisa a produção e joga a sociedade no inferno do
desemprego, fome e morte da classe trabalhadora.
Observa-se também que a forte queda dos lucros
durante 2022 já pressionava para a queda das receitas. O desabamento decisivo
dos lucros acontece exatamente no mês de fevereiro de 2023 (- 22.9%), mantendo
essa trajetória de catastrófico desabamento até agora.
Assim, a evolução das receitas também só é puxada
para as taxas negativas no período janeiro-junho de 2023. Mas, no mesmo período
a distância entre receitas e lucros se amplia significativamente (o lucro cai
mais rapidamente que a receita) indicando forte queda da taxa geral de lucro na
economia. Isso, como vimos a pouco, é insustentável para o capitalista.
Para concluir, vejamos outra coisa muito
importante: como essa abrupta deflação de receitas e lucros se apresentam em
diferentes tipos de empresas industriais chinesas, de acordo com sua
propriedade jurídica? O gráfico abaixo, do mesmo relatório acima do Bureau
Nacional de Estatísticas da China, pode responder nossa pergunta.
Este quadro também descreve receitas operacionais e
lucros no período janeiro-junho (1º semestre) deste ano. Surpreendentemente,
além de uma queda de 1,2% em suas receitas, as empresas estatais sofreram a
maior queda (- 21%) na massa de lucro. As empresas privadas de capital externo,
que representam aproximadamente 60% da produção e investimentos industriais na
economia chinesa, sofreram as maiores quedas (-3.2%) nas receitas, acompanhadas
de quedas também altamente impactantes (-12.6%) na massa de lucro.
Essa forte deflação sobre a produção e os
investimentos industriais externos na economia chinesa também já aparece com
mais clareza para a opinião pública. Um indicador de novos investimentos
estrangeiros na China caiu para o nível mais baixo em 25 anos, no segundo
trimestre, segundo dados divulgados em agosto pela Administração Estatal de Câmbio,
do governo chinês. Dados oficiais, como todos os demais deste artigo.
O passivo de investimento direto – indicador do
investimento estrangeiro direto na China – caiu para US$ 4,9 bilhões no período
de abril a junho. Uma merreca para quem recebia US$ 100 bilhões ou mais no ano
passado. Quase nem aparece no gráfico acima. Caiu 87% em relação ao mesmo
período do ano passado e foi o menor valor em qualquer trimestre desde 1998.
Esses dados, que medem os fluxos líquidos, refletem
aquelas tendências nos lucros de empresas estrangeiras, assim como diminuição
no tamanho de suas operações na China. “A queda no índice de Investimento
Estrangeiro Direto (IED) é alarmante”, declara à Bloomberg Michele Lam,
economista chefe da Grande China do Société Générale AS. “Isso pode significar
que ainda há novos investimentos chegando, mas algumas empresas estão
reinvestindo menos de seus lucros existentes”, à medida que as empresas falam
mais sobre “diversificação da cadeia de suprimentos”, acrescentou ela.
Tudo cai. A desglobalização e agora a deflação
chegam com toda a força. Ameaçam concretamente a própria sobrevivência do
governo chinês. Os capitalistas chineses, internos e externos, aumentam as
pressões políticas sobre seu presidente Xi Jinping. Este último é cada vez mais
inoperante. Só faz besteira.
Nas primeiras horas desta segunda-feira (21), por
exemplo, a Bloomberg, grande porta-voz e consciência dos capitalistas no
mercado mundial, estampa na principal manchete de seu portal toda a angústia do
sistema global com a situação da economia chinesa e, particularmente, com o
irritante imobilismo do governo de Pequim frente à situação: “A busca de Xi
Jinping para reescrever o manual que conduziu o milagre econômico da China por
uma geração está enfrentando seu teste mais severo até agora. A economia de US$
18 trilhões está desacelerando, os consumidores estão pessimistas, as
exportações estão lutando, os preços estão caindo e mais de um em cada cinco
jovens está desempregado. A Country Garden Holdings, com 3.000 projetos imobiliários
pendentes em todo o país, está à beira da inadimplência e os manifestantes se
reuniram no Zhongzhi Enterprise Group Co., um dos maiores bancos paralelos,
exigindo seu dinheiro quando os pagamentos foram interrompidos”.
E se desespera: “Xi Jinping está evitando grandes
estímulos, mesmo diante dos riscos de deflação. Está com o freio de mão puxado.
Por que Xi Jinping está deixando a economia da China se contorcer?”
Alguém poderia lhe responder com uma adaptação da
frase-mantra do neoliberalismo: não é vosso serviçal Xi Jinping o culpado, é a
lei do valor, estúpido!
Ø Ynae Lopes dos Santos: Taxar grandes fortunas pode ser uma medida
antirracista
Nesse mês de outubro, comemoramos o 35º aniversário
da nossa Constituição que segue em vigor. Promulgada em 1988, a nova
Constituição foi festejada de maneira ansiosa por uma parcela expressiva da
população brasileira, pois marcava o fim de mais de duas décadas de ditadura
militar no Brasil – período no qual uma série de direitos foram
sistematicamente violados, e a democracia ficou suspensa.
O desejo pela democracia cidadã organiza diversos
pontos da Constituição, numa proposta abertamente progressista (mesmo que a la
brasileira). E ali no item sete do artigo 153 que versa sobre os impostos que
compete à União instituir está: “grandes fortunas, nos termos de lei
complementar”.
É isso mesmo, o maior e mais importante contrato
social e político do Brasil previa a cobrança de imposto sobre grandes
fortunas, por meio da formulação de leis complementares e futuras. Acontece que
esse futuro nunca chegou.
Mais de três décadas se passaram e a possível
cobrança de impostos sobre grandes fortunas – que existe em diversos países
tidos como primeiro mundo, vale dizer – gera uma série de debates acalorados,
mas não se efetiva em termos legais e práticos.
O debate recente sobre a reforma tributária trouxe
uma vez mais a possibilidade de taxação das grandes fortunas do país – uma
grandeza que sequer foi dimensionada, tendo em vista que a compreensão sobre o
que seria o recorte inicial dessas grandes fortunas pode variar de um
patrimônio de 2 milhões, segundo um Projeto de Lei Complementar (PLP)
apresentado em 2008, até mais de 50 milhões, como o previsto em um PLP de 2020.
Mas o fato é que esse imposto incidiria sobre uma
parcela ínfima da população, menos de 1%. Existem diferentes propostas de
taxação, porém, nas versões que defendem alíquotas progressivas, os cálculos
apontam que a arrecadação poderia alcançar até R$ 40 bilhões por ano.
40 bilhões representa quase 25% do orçamento do
Ministério da Educação que, segundo o Portal da Transparência, terá em 2023
despesas previstas girando na casa dos 180 bilhões. Imaginem a diferença que
esse dinheiro faria se bem aplicado na educação ou na saúde pública brasileira?
Taxação antirracista
Para aqueles que defendem a criação e aplicação do
Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) existe uma argumentação importante de ser
pontuada: a frequente improdutividade dessas fortunas. E, aqui vale lembrar:
estamos tratando de fortunas de pessoas físicas, não de empresas ou indústrias
– uma dimensão que também precisa ser levada em conta frente a argumentos
tendenciosos que defendem que, se implementado, o imposto gerará uma “fuga de
capitais”.
Mas há outra faceta fundamental na defesa da
taxação de grandes fortunas: a possibilidade dela ser elaborada e aplicada
dentro de uma perspectiva antirracista. Afinal, quem são os multimilionários
brasileiros? Salvo raríssimas exceções, são homens brancos que, apesar dos
possíveis esforços pessoais e familiares, surfaram nas muitas camadas de
privilégio que a população branca usufruiu e segue usufruindo.
É preciso lembrar que durante muito tempo as
maiores fortunas do país estiveram diretamente ligadas ao tráfico de africanos
escravizados e à escravização dessas pessoas e seus descendentes. A relação é
de tal intensidade que dificilmente uma família rica do século 19 não era
proprietária de escravizados (geralmente donos de centenas deles). Só que desde
meados da década de 1830, grande parte dos africanos escravizados no Brasil
estava nessa condição de maneira ilegal, segundo as leis do próprio Brasil. Ou
seja, uma parte significativa das fortunas construídas no século 19 foi feita
na ilegalidade. E isso parece não ser um problema moral para ninguém, pois quem
pagou por essa ilegalidade é quem segue pagando o pato (e também impostos
muitas vezes desproporcionais à sua renda): a população negra.
Mesmo que a engrenagem da economia brasileira tenha
mudado com a abolição da escravidão (1888) e a proclamação de República (1889),
não podemos fugir ao fato de que ser rico segue sendo um privilégio quase que
exclusivamente de brancos. E aqui, prefiro me poupar dos discursos
meritocráticos que não têm nenhuma densidade analítica.
Não há um país menos desigual sem redistribuição de
renda. Não há aplicação de políticas públicas antirracistas efetivas que não
pressuponha redistribuição de renda. Que isso não seja perdido de vista.
Fonte: Correio da Cidadania/Deutsche Welle
Nenhum comentário:
Postar um comentário