"Mudanças na Lei de Cotas são bem-vindas e pontuais", afirma
professor da UERJ
O Senado aprovou nesta semana o projeto de lei com
mudanças na Lei de Cotas. A proposta, que ainda precisa da sanção do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, traz modificações na legislação que visa ampliar o
acesso de pessoas pretas, indígenas e com deficiência ao ensino superior
Entre as mudanças previstas estão a inclusão de
quilombolas, que terão direito às vagas na mesma proporção da população que
ocupam no respectivo estado. A lei atual estipula esse direito a autodeclarados
pretos, pardos e indígenas.
Houve alteração também no recorte socioeconômico,
com a limitação de benefício para candidatos que em famílias com renda de até
um salário mínimo por pessoa, atualmente R$ 1.320 e não mais 1,5 salário
mínimo.
O novo texto estipula ainda que os candidatos
cotistas também vão concorrer às vagas de ampla concorrência. Eles só entrarão
nas vagas reservadas caso não alcancem a média entre os demais estudantes. Isso
faz com que a chance de novos alunos cotistas entrarem nas universidades seja
ainda maior, dizem especialistas.
"Todas as mudanças aprovadas pelo Congresso
são bem-vindas”, disse à DW Brasil Luiz Augusto Campos, professor de sociologia
e ciência política no IESP-UERJ Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), onde coordena o Grupo de
Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA).
A Lei de Cotas foi sancionada em 2012 e sua
reavaliação deveria ter acontecido no ano passado. Os defensores da proposta,
no entanto, foram ao Congresso salientar que a legislação poderia sofrer
retrocessos em um ano marcado pela disputa eleitoral e a polarização política.
A atualização da lei estabelece ainda relatório anuais
elaborados pelo Ministério da Educação sobre a efetividade do projeto, como
dados sobre acesso, permanência e conclusão dos alunos, assim como avaliações a
cada 10 anos, e não mais revisões como prega o texto atual.
LEIA A ENTREVISTA:
• Quais
foram as principais mudanças aprovadas no Congresso?
Luiz Augusto Campos: Todas as mudanças são
bem-vindas, primeiro porque são pontuais e entendem que o grosso da lei é
bem-sucedido. Mas resolvem disfuncionalidades específicas.
• Por
exemplo?
A mudança no corte de renda. Essa mudança é
importante por vários motivos. O primeiro deles, um pouco marginal, é que ela
simplifica o cálculo. Os estudantes têm que fazer um cálculo relativamente
difícil, que primeiro entender o que que é o conceito de salário mínimo familiar
per capita: somar a renda dos seus familiares, multiplicar por 1.5, reunir
todos os documentos que comprovem esse valor… Então, Quando há essa alteração
para um salário mínimo facilita o processo.
Mas o principal avanço dessa medida é que ela
focaliza melhor nas pessoas que de fato são de baixa renda. Na redação
anterior, uma família de cinco membros, por exemplo, e que ganhasse uma renda
total de R$ 9 mil era considerada a baixa renda. Nós podemos discutir se esse
valor é um salário bom ou ruim ou não, mas fato é que dentro dessa cota de
baixa renda essas famílias que ganhavam mais acabavam tendo vantagem sobre as
famílias que ganhavam menos. As famílias com renda per capita de mais ou menos
R$1.980 eram privilegiadas pelo sistema e mais de 70% do ensino público no
Brasil é composto por grupos familiares com esse tipo de renda. Portanto, a
limitação a um salário mínimo alcança mais os alunos de baixa renda.
• Os
candidatos passaram a concorrer nas vagas de ampla concorrência. Essa é uma
forma de garantir a entrada de mais pessoas dos grupos minoritários?
Sim. Algumas universidades interpretaram as cotas
não como piso mínimo, mas como teto máximo. A Universidade Federal da Bahia,
por exemplo, que já tinha uma quantidade de negros importantes em determinados cursos,
sofreu uma redução na entrada desses estudantes. Ela entendeu que, se a
população negra no estado era de 80%, logo a nossa cota racial tem que ser a
metade disso: 40%. Então, se um curso de pedagogia tinha 70% negros, esse
percentual caía para 40%. A cota que foi pensada para funcionar como piso
estava excluindo as pessoas. Agora, todo mundo estará na ampla concorrência. Se
o aluno tiver nota, ele entra. Se não conseguir, eles vão preencher o
percentual de cotistas.
• Qual
a importância na valorização da população quilombola na redação da nova lei?
É importante sinalizar para que esse grupo tem
direito ao benefício, para que isso não seja esquecido. Um efeito pouco
discutido das cotas é de que elas aumentaram a procura pela Universidade pelos
grupos beneficiados. Quando nós analisamos a aprovação da Lei de cotas em 2012,
houve um aumento substancial na procura pelo Enem (Exame Nacional do Ensino
Médio). Esse é um efeito não-intencional do programa e que pode se repetir
entre a população quilombola.
• O
período de 10 anos para avaliações do programa é bem-vindo? E o ministério da
educação tem capacidade para estabelecer relatórios anuais do programa? E quais
são os benefícios desse tipo de periodização?
Período de avaliação de 10 e é importante. O Ministério
da Educação tem capacidade, senão de estabelecer relatórios anuais, de
disponibilizar os dados para que outros grupos dentro da academia e das
universidades e formados pela sociedade civil façam essa avaliação. A vantagem
de pensar em 10 anos é que a Lei de Cotas tem efeitos muito incrementais. E
mais ainda: nós precisamos entender que o sucesso da legislação não está só no
seu preenchimento, mas na verdade na inclusão de profissionais de nível
superior no mercado de trabalho. É aí que nós precisamos ver se a medida está
de fato funcionando.
• Como
avalia a extensão da lei para os programas de pós-graduação nas universidades?
Fundamental. Primeiro, basicamente, porque os
estudantes que ingressam nos cursos de pós-graduação do Brasil são, em sua
maioria, brancos. Segundo porque a pós-graduação possibilita a produção de
conhecimento em diferentes áreas. Assim, a entrada de grupos desfavorecidos e
discriminados neste ambiente pode mudar significativamente a agenda de pesquisa
da ciência brasileira e reduzir a desigualdade nesse campo, que é muito alta
neste momento.
• Quais
são os dados atualizados sobre a presença de alunos negros nas universidades
nesses 11 anos de atuação?
Os dados indicam, por exemplo, que hoje pretos e
pardos são maioria no ensino superior de modo geral e no ensino superior
público. Eles já passaram de 50%. Os indicadores mostram também que as cotas
mudaram substancialmente o perfil dos ingressantes, sobretudo no ensino
público. Os grupos de renda com C, D e E são maioria nesse espaço.
• A
medida também diz que os estudantes terão favorecimento no recebimento do
auxílio estudantil. Isso é suficiente para garantir a permanência estudantil?]
A lei recomenda a facilitação do acesso às bolsas
permanência e isso é importante, mas não é suficiente. As Universidades
precisam desburocratizar os processos de bolsa permanência. O estudante
normalmente já tem que mobilizar uma grande burocracia para se beneficiar das
cotas, com comprovantes de renda, histórico escolar e enfrentar comissões de
classificação racial. Quando ele entra na universidade e vai pedir uma bolsa
permanência, ele tem que passar de novo por essa burocracia. O ideal é a
universidade entender que esse cotista tem direito a bolsa permanência, já que
ele provou sua hipossuficiência.
Outra coisa é que a bolsa permanência no Brasil tem
um valor baixo. Estamos falando de algo em torno de R$ 400 a R$ 600. Elas são
importantes e garantem a presença de muita gente na sala de aula, mas elas não
são suficientes, e eu acredito que nós temos que avançar nessa discussão para
um financiamento que venha do mundo privado, algo que acontece nos EUA. Lá,
quem faz esse tipo de ação são as empresas privadas, as universidades privadas,
não o Estado. Aqui esse debate não é feito e isso gera um gargalo.
• O
GEMAA mostrou um avanço das cotas sociais em relação às raciais. Ao mesmo
tempo, é comum ouvir o discurso de que apenas cotas sociais resolveriam o
problema da desigualdade na educação. Por que esse argumento não se justifica?
Os estudos feitos até agora indicam que só cotas
socioeconômicas não resolveriam os problemas raciais, por conta da existência
de discriminação. Sempre que nós analisamos dados sobre a competição no mundo
social entre brancos e negros que provém da mesma origem de classe social, brancos
levam vantagem. Quando verificamos a mobilidade social e comprarmos um
indivíduo branco e o negro pobres, o branco pobre tem mais chance de ascensão
social. Se nós não tivéssemos cotas raciais, qual seria o resultado? As
pesquisas mostram que entrariam mais brancos do que negros.
• O
grupo de estudos também constatou uma queda na oferta de vagas nas
universidades públicas, em especial as relacionadas às medidas de inclusão. O
que explica esse cenário e como não permitir que isso se repita?
A queda na oferta das vagas de cotas reflete, em
primeiro lugar, uma queda na oferta das vagas gerais das universidades. Isso
acontece a partir do estrangulamento econômico que as universidades passaram no
governo anterior. Outro ponto tem relação com a queda da procura pelo Enem, o
que prejudica também a presença desses estudantes cotistas. Torço para que isso
se reverta, mas é um cenário de alerta e que precisamos ficar atentos.
Fonte: Deutsche Welle
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