Especialista em ciência política explica o conflito Israel-Palestina
Na madrugada do dia 7 de outubro, o Hamas atacou a
região sul de Israel deixando mais de mil mortos, inúmeros feridos
e 200 pessoas sequestradas — segundo os números divulgados pelo Ministério da
Saúde de Israel. Em contra ofensiva, nos dias seguintes, Israel direcionou seu
poder militar para a região de Gaza, lançando mais de 6 mil bombas na Faixa de
Gaza, onde vivem mais de um milhão de palestinos. No dia 27 de outubro, o Ministério da Saúde local informou que o número
de mortes na Faixa de Gaza era de 7.326 pessoas, sendo 41% dessa quantidade
crianças.
No episódio 94 do podcast Pauta Pública, o
professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP) e mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), Reginaldo Nasser, explica o que o momento pode significar para
a região e para a geopolítica global. Na entrevista, Nasser fala sobre a
relação dos países vizinhos de Israel — Egito, Jordânia e Arábia Saudita — com
a guerra, os Estados Unidos e a pressão popular por um cessar-fogo.
Ao falar sobre a Faixa de Gaza, Nasser lembra das
sanções econômicas que são feitas além do uso de armas, e de seus resultados em
vidas humanas. Ele lembra que, além da política, é necessário resgatar a
questão humanitária, que sofre os impactos da violência e da escassez seja
durante a guerra, seja após.
Confira os principais pontos da entrevista e ouça o
podcast na íntegra abaixo.
<<<< EP 94 O conflito
Israel-Palestina até aqui — com Reginaldo Nasser
·
[Clarissa Levy] Eu quero começar pedindo para
contar sobre o contexto dos atores desse conflito nos últimos anos. Como é que
se deu o fortalecimento do Hamas na região, e como estavam as relações entre
Israel e as autoridades palestinas? Como chegamos aqui?
Para falar do Hamas, temos que falar de Gaza. A
base do Hamas é em Gaza, o Hamas cresceu em Gaza, apesar de que, ao longo dos
anos, ele passou a ter simpatizantes e apoiadores também na Cisjordânia, mas
nunca muito consistente. O Hamas surgiu em 1987, era uma organização islâmica
que se construiu em cima do assistencialismo e caridade. Ele passou a adquirir
notoriedade no início da década de 1990, quando houve a intifada — em árabe
quer dizer revolta popular, mobilização — e essa intifada foi a primeira grande
mobilização genuinamente palestina.
A intifada se deu num contexto onde toda a
autoridade nacional palestina, a única que os representava originariamente, era
a Organização para a Libertação da Palestina. Esse foi o primeiro grupo, criado
no final da década de 1960, sobre a liderança de Yasser Arafat. Então, a
intifada trouxe um duplo movimento, que era um basta contra a ocupação de
Israel, mas também expressava um descontentamento com os encaminhamentos que
eram dados pelo Fatah, que era o grupo majoritário.
O Hamas começou a aparecer como alternativa ao que
estava caminhando, com o acordo de Oslo e os acordos anteriores à ele. [O
Hamas] começa a aparecer para as gerações mais jovens como alguém que não faz
concessão, não obtém vantagem. O Hamas canalizou isso daí, de um lado, mas por
outro, hoje há informações, documentos muito consistentes, mostrando que o
grupo teve um grande apoio de Israel.
Como a Autoridade Nacional Palestina e o Fatah eram
fortes, Israel começou a abrir uma divisão dentro do grupo, em um movimento de
apoiar [grupos] islâmicos contra a esquerda, e o Hamas cresceu baseado nisso.
No final da década de 1990, o Hamas começou a
ganhar mais visibilidade, saindo da rota de movimento popular e começou a
praticar atentados suicidas, uma série de atentados dentro de Israel com muitos
mortos, e isso foi nesse momento que Israel começou a se preocupar com o
Hamas.
Em 2005 Ariel Sharon, o primeiro-ministro de
Israel, fez o desengajamento e tirou os colonos de Gaza. A extrema-direita
ficou contra Sharon, mas a comunidade internacional viu isso com bons olhos, e
até o Hamas o apoiou. Na sequência houve eleições livres na Palestina para a
formação de um parlamento sob supervisão da comunidade internacional e tendo
como resultado: 65% das cadeiras foram eleitos para membros do Hamas. Os
Estados Unidos e Israel protestaram sobre o resultado das eleições.
Em 2007, começou o bloqueio à Gaza em terra, mar e
ar, que foi um divisor de águas e nós conhecemos até hoje. De lá para cá, com
Gaza cercada e sem comunicação, o Hamas só cresceu e administra Gaza desde
então. Se pararmos para analisar os conflitos entre o Hamas e Israel, do início
até hoje, há uma repetição, mas com duas diferenças: a forma que o Hamas saiu
do confinamento e entrou no Estado de Israel, e a intensidade da ação do Hamas
na mortalidade de civis israelenses.
Por fim, aconteceu um evento importante, mas que é
pouco comentado: entre 2018 e 2019, houve uma mobilização popular muito grande
em Gaza, sem o Hamas, foi uma movimentação espontânea, uma multidão foi para as
cercas e foram mortos 170 palestinos, com centenas e milhares de feridos. Esse
evento é importante, porque não teve a participação do Hamas, mas tendo mortes
ou não, a justificativa é a mesma, sempre é o Hamas.
·
[Andrea Dip] É uma situação
extremamente complexa e delicada, mas a geopolítica não se move apenas baseada
na preocupação com os direitos humanos. Então, como os países, sobretudo os que
são afetados pelo conflito de alguma forma, mas também potências, como os
Estados Unidos, têm se posicionado? Algo mudou? Quais são esses interesses
envolvidos?
Veja só, nesse momento há um apelo no Conselho de
Segurança, e eles estão tentando passar uma resolução que diz respeito ao
direito internacional humanitário, que é o mínimo. Este direito é diferente dos
direitos humanos: o direito internacional humanitário é pragmático, ele
estabelece um mínimo de regras para minimizar a barbárie da guerra.
Em Gaza, particularmente, não há controle. Na
geopolítica, como você comentou, há equilíbrios de poder político e militar —
se o mais fraco não tem [algum desses poderes] ele se alia a outro, para tentar
fazer o equilíbrio, são os ‘’jogos’’. Nessa situação não tem ‘’jogo’’, porque
nenhum Estado árabe vai entrar nesse conflito, nenhuma grande potência, ninguém
vai entrar nesse conflito. Então, desde o final da Guerra Fria, a questão da
Palestina foi se descolando dos Estados e se isolando, nesse aspecto.
Agora, os países árabes, apesar de não entrarem
militarmente, entram politicamente. Por causa da chamada ‘’Rua Árabe’’, os
países Egito, Jordânia, Arábia Saudita — que sempre maltrataram os palestinos —
têm lutado pelos direitos desse povo. Isso porque estão sendo pressionados, não
querem ter problema com a sua população. É o exemplo do Marrocos, que é um dos
países mais próximos a Israel e onde 500 mil pessoas se reuniram na rua [para
protestar contra a guerra]. Há uma pressão popular em função desses massacres.
Nos países do Golfo Pérsico (Arábia Saudita, Catar
e Emirados Árabes), há bases militares americanas. Poderia se considerar a
Arábia Saudita em um ‘’recanto’’ dos Estados Unidos, mas antes da Guerra da
Ucrânia o país começou a se distanciar dos EUA e se aproximar da Rússia e da
China. Com a Guerra da Ucrânia, paradoxalmente, os países se aproximaram mais
ainda. E agora, com a questão da Palestina, isso não se reverteu, pelo
contrário: a Arábia Saudita emitiu a nota, até agora, mais dura contra Israel.
E no momento que o Netanyahu foi a Nova York, porque os Estados Unidos estavam
querendo trazer a Arábia Saudita, tanto para Israel como para um grande projeto
de disputa com a China.
Já o Catar é um grande doador dos palestinos, sendo
o maior doador para Gaza. Ao mesmo tempo, tem base americana e bom
relacionamento com os Estados Unidos. Há mais outros que vieram nessa história,
Egito e Jordânia, que sempre foram aliados dos Estados Unidos. O Secretário de
Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, viajou para os países vizinhos e
colheu as impressões. Ao voltar para Israel, saindo do avião ele não parecia
bem. Conversou com Netanyahu, e a reunião durou nove horas, ou seja, a coisa
está complicada, os Estados Unidos não estão conseguindo [manter o apoio a
Israel]. E na votação do Conselho de Segurança da ONU — mesmo que
simbólica — apenas os Estados Unidos votaram contra, com seu poder de
veto.
Indo mais longe, para além da questão humanitária,
para a questão política, para negociar um cessar fogo e a liberação de reféns é
preciso conversar com o Hamas, ter credibilidade com o grupo, e também
conversar com Israel e Estados Unidos. E esses são: Arábia Saudita, Catar,
Emirados Árabes e Egito. Então é muito interessante, como de repente vem tudo à
tona e eles passam a ser um elemento chave, e não só sobre petróleo.
·
[Clarissa Levy] Uma das
coisas que, nesse banho de sangue, parece assustar muito, é ver uma certa
normalização da violência contra civis, idosos, crianças, mulheres e famílias
inteiras, que nada têm a ver, seja com o grupo terrorista, seja com as
políticas de Israel. Isso faz lembrar um pouco da Banalidade do Mal, de Hannah
Arendt. Ela fala, especificamente do holocausto, que o massacre contra os
judeus tinha sido um massacre contra toda a humanidade, que as consequências
dessa desumanização são para todo mundo. Isso me vem à cabeça quando vemos
essas imagens de pessoas sem qualquer dignidade e humanidade em Gaza. O que você
acha que essa barbárie vai gerar? E para onde isso pode escalar?
Sobre isso, eu sou muito pessimista. Não vai para
lugar nenhum, daqui uns dias vai ter um cessar-fogo, e ninguém vai lembrar de
Gaza, até a próxima crise, quando voltarmos a falar de Gaza, assim como é com
os outros lugares. A cerca de seis ou sete meses, mais ou menos, a Brown
University dos Estados Unidos — eles têm um órgão que desde os atentados
terroristas de 11 de setembro supervisiona as guerras —, faz uma pesquisa
detalhadíssima com os custos da guerra: o humanitário, econômico, mortos,
feridos, doenças. Eles soltaram o balanço dos 20 anos de guerra ao terror. Eu
nunca imaginei a estimativa de mortes diretas e indiretas, são 4 milhões de
pessoas mortas, e isso não teve impacto nenhum.
Então, como você disse, a violência contra os civis
acaba sendo naturalizada. Vemos o número de crianças mortas e um filósofo, que
escreve na Folha de São Paulo, diz que ‘’crianças morrem em guerras, é triste,
mas fazer o quê?’’. Há um cinismo e indignação seletivos, ao ficarem
extremamente indignados com algumas coisas, mas não ligarem para outras.
O que nós conseguimos tirar da guerra contra o
terror é que o Afeganistão está em uma das piores situações humanitárias do
mundo. O Biden congelou o dinheiro do governo, tem gente passando fome e ele
não libera [o dinheiro], mas quer dar esse dinheiro para as vítimas do 11 de
setembro. A população do Afeganistão não tem nada a ver com isso, inclusive tem
familiares das vítimas do 11 de setembro que falam que se recusam a receber
este dinheiro.
Dentro disso, as sanções econômicas matam demais,
como na década de 1990, quando Bill Clinton não fez guerra no Iraque, mas
lançou uma sanção econômica. A Unicef estima 250 mil crianças mortas. A guerra
econômica é violentíssima, Gaza sofre isso cotidianamente. Ao parar a guerra,
volta a escassez de alimento e água, volta a opressão. Após o cessar fogo,
ninguém olha mais, não há como reconstruir as cidades, há escassez de remédios.
Então, para além da política, temos que resgatar a questão humanitária, tem que
haver negociação, para só depois ser discutido questões políticas maiores, como
a do Estado Palestino.
Ø Conflito Israel-Hamas representa risco para economia global, afetando
mercado de petróleo
O agravamento do conflito israelo-palestino ameaça
afetar 15% do comércio mundial e 45% do comércio de petróleo cru que passa pelo
canal de Suez, podendo também levar a um aumento da inflação em todo o mundo e
afetar seriamente o crescimento da economia global, disseram especialistas à
Sputnik.
Algumas das rotas marítimas mais movimentadas do
mundo, como o canal de Suez, o mar Vermelho, o golfo Pérsico e o estreito de
Ormuz, estão localizadas no Oriente Médio. Uma possível escalada do conflito
representa um risco para a economia mundial, causando o aumento nos preços da
energia elétrica e interrompendo o tráfego nas principais rotas comerciais do
mundo.
"A escalada ameaça afetar 15% do comércio
mundial e 45% do comércio de petróleo cru que passa pelo canal de Suez",
ressaltou o especialista Pavel Shashkov do centro analítico Yakov &
Parceiros.
O conflito no Oriente Médio afeta
significativamente o mercado de petróleo, principalmente por causa da ameaça de
entrada direta do Irã na guerra, destacou o chefe do departamento analítico do
banco BKF russo, Maksim Osadchy.
Assim, a produção de petróleo nesse país, que é o
oitavo maior produtor de petróleo bruto do mundo, pode estar em risco,
"especialmente se Teerã for sujeita a um novo agravamento das
sanções",acrescentou Pavel Shashkov.
O preço dos alimentos no mundo vai subir devido ao
aumento dos preços do petróleo, portanto, podemos "esperar que a inflação
se acelere nos países que fazem fronteira com Israel", acrescentou Maksim
Osadchy.
Os vizinhos de Israel também poderiam enfrentar
dificuldades econômicas se se envolverem no conflito. O Líbano, a Síria, o
Egito e a Tunísia podem enfrentar uma queda do comércio, aumento nos preços da
energia e crescimento mais lento de suas economias. Além disso, também há
riscos relacionados às sanções, de acordo com o comunicado de Shashkov.
O conflito pode se tornar uma fonte de
instabilidade política, econômica e financeira no Oriente Médio. Se isso se
arrastar e outros Estados se envolverem, "o crescimento da economia
mundial pode desacelerar", resumiu o especialista.
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Economia de Israel deve encolher 11% no final do
ano em meio à guerra com o Hamas, diz mídia
Analistas citados pela mídia norte-americana
preveem um forte golpe na economia israelense entre outubro e dezembro, o que
contrasta com semelhantes conflitos anteriores.
A economia de Israel pode encolher 11% em termos
anuais no último trimestre do ano em meio ao conflito com a Faixa de Gaza,
previu no domingo (29) a agência norte-americana Bloomberg, citando um
relatório do banco norte-americano JPMorgan.
Os analistas dizem que as previsões feitas pelo
banco na última sexta-feira (27), sobre o impacto econômico do conflito, que
começou em 7 de outubro, quando militantes do Hamas atacaram Israel, eram
"demasiado otimistas". O novo relatório foi publicado antes de o
primeiro-ministro Benjamin Netanyahu anunciar que a ofensiva militar de Israel
em Gaza estava entrando em um segundo estágio, na forma de uma operação
terrestre.
De acordo com os especialistas, o PIB de Israel
poderia crescer 2,5% neste ano e 2% em 2024, mas os riscos "poderiam
permanecer inclinados para o lado negativo".
O relatório estima que "medir o impacto da
guerra na economia de Israel segue difícil, tanto por causa da incerteza ainda
muito grande sobre a escala e a duração do conflito quanto pela falta de dados
de alta frequência disponíveis".
Os conflitos recentes de Israel, incluindo um com o
Hamas em 2014, que durou cerca de sete semanas e incluiu um ataque terrestre a
Gaza; e uma guerra em 2006 com o grupo xiita libanês Hezbollah, "quase não
afetaram a atividade" econômica, notaram os analistas, sublinhando que
"a guerra atual teve um impacto muito maior sobre a segurança e a
confiança internas".
Fonte: Por Andrea DiP, Clarissa Levy e Ricardo
Terto, da Agencia Pública/Sputnik Brasil
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