Espaço saudável pode ajudar no combate a epidemias
Janelas grandes e horizontais se abrem ao longo de
toda a fachada, trazendo o máximo de luz e ventilação para os cômodos. Dois
telhados planos, em níveis diferentes, abrigam um solário e um jardim suspenso.
Na entrada, há um lavatório e a divisão dos quartos
não utiliza paredes estruturadas, tornando possível reconfigurar o espaço. A
construção é elevada do solo por pilotis que deixam o térreo livre para
circulação. Ícone da arquitetura moderna, a Villa Savoye é uma casa de veraneio
construída em 1929 em Poissy, no norte da França.
Quando a projetou, o arquiteto suíço Le Corbusier
(1887-1965) não pretendia apenas explorar características estéticas do
modernismo. Também procurou mostrar que uma residência pode ser agente de saúde
e bem-estar.
Criar ambientes mais saudáveis tornou-se uma
preocupação de arquitetos e urbanistas. Para manter melhores condições de
conforto e higiene, a fim de reduzir o risco de contaminações, entre o fim do
século XIX e o começo do XX. À época, doenças infecciosas como a tuberculose
matavam milhões de pessoas no mundo todo.
Com a crise sanitária provocada pelo novo
coronavírus, reflexões sobre possíveis mudanças na estrutura das habitações e
na paisagem urbana tornaram-se inevitáveis. A chegada da Covid-19 reforçou a
urgência de promover acesso a serviços como saneamento básico e água potável,
mas não apenas a esses direitos básicos.
Também é
possível elaborar cenários futuros em que casas, escolas, hospitais e prédios
públicos sejam construídos ou adaptados com base em critérios que possibilitem
reduzir o risco de disseminação de novas epidemias. Arquitetos e urbanistas
dedicam-se a revisitar conceitos que permitiram o vínculo entre arquitetura e
saúde pública no século passado.
Ainda é cedo para saber qual o impacto da atual
pandemia em projetos arquitetônicos futuros. “Isso depende da duração da
crise”, disse à Pesquisa FAPESP a arquiteta espanhola Beatriz Colomina,
professora da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Também de alcance
mundial, a gripe espanhola, que teria custado a vida de estimadas 50 milhões de
pessoas, não chegou a moldar a arquitetura, afirma Colomina.
• História
Embora tenha matado mais gente do que a Primeira
Guerra Mundial, o surto de 1918 durou relativamente pouco tempo (menos de dois
anos) e não foi muito lembrado por décadas. No caso da tuberculose foi
diferente. Espaços arejados e mais iluminados, com amplos terraços e
superfícies brancas e lisas foram incorporados em obras de arquitetos
modernistas, entre eles o finlandês Hugo Alvar Henrik Aalto (1898-1976), o
alemão Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969) e Le Corbusier, como medidas
concretas para tratar ou prevenir a doença.
“A tuberculose foi uma ameaça ao longo de décadas,
que deixou efeitos duradouros na mentalidade e na cultura de várias gerações”,
ressalta Colomina, autora do livro X-Ray architecture (Lars Müller, 2019), que
trata da associação histórica entre arquitetura e medicina.
Da descoberta da bactéria Mycobacterium
tuberculosis, identificada pelo médico alemão Heinrich Robert Koch (1843-1910)
em meados de 1882, até o desenvolvimento de um antibiótico eficaz contra a
tuberculose – a estreptomicina, no início da década de 1940 – transcorreram 60
anos. “Naquele período, o enfrentamento da doença se deu por intermédio da
arquitetura”, observa a arquiteta espanhola.
Ao incorporar o trauma da tuberculose, a arquitetura
moderna estabeleceu princípios “curativos”, que foram consolidados em 1933 no
Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, liderado por Le Corbusier. O
Schatzalp, antigo sanatório no alto dos Alpes suíços, em Davos – que inspirou o
escritor alemão Thomas Mann (1875-1955) a escrever A montanha mágica –, é
resultado da colaboração direta entre médicos, arquitetos e engenheiros.
“O que a arquitetura moderna fez foi dar forma a
protocolos médicos”, diz Colomina. “A tuberculose era um problema ‘de dentro de
casa’. As recomendações sanitárias consistiam em eliminar tapetes e cortinas,
onde se acumula poeira, e abrir as janelas o máximo possível.”
• COVID
-19
“A situação agora é diferente”, ressalta a
arquiteta Doris Kowaltowski, professora da Faculdade de Engenharia Civil,
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Campinas (FEC-Unicamp).
“Com a Covid-19, o perigo está nas ruas, no transporte público e a casa passa a
ser o local seguro.” Essa noção, diz ela, assemelha-se com estratégias para enfrentar
epidemias medievais, como a peste bubônica, que atingiu grande parte da Europa
no século XIV.
“Naquela
época, a medida mais aceita para combater a peste era ficar em casa com janelas
e portas trancadas com tijolos. Obviamente não é o caso de agora.” Foi em
Dubrovnik, na Croácia, que a prática da quarentena teve origem, em 1377. Navios
com possíveis vítimas de hanseníase ou peste ficavam 40 dias atracados no porto
para supostamente evitar a propagação de doenças na cidade.
Apenas no fim do século XIX a importância da
circulação de ar em ambientes internos tornou-se consenso na arquitetura. “Hoje
temos conhecimento suficiente sobre a necessidade da ventilação natural para
orientar a construção de edificações mais saudáveis”, observa a historiadora
Diana Gonçalves Vidal, diretora do Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de São Paulo (IEB-USP). “Poderemos ver, daqui em diante, a
proliferação de espaços externos agregados a casas e edifícios e o retorno de
iniciativas como as escolas ao ar livre.”
• Bem-estar
As écoles de plein air surgiram em 1904 na Bélgica
e na Alemanha, 17 anos antes do desenvolvimento da vacina BCG, contra a
tuberculose. “O objetivo era garantir a frequência das crianças nas escolas
estabelecendo condições mais seguras de saúde”, explica Vidal, estudiosa da
história da educação.
A proposta ganhou força com o movimento Escola
Nova, que surgiu na Europa e buscava romper com modelos pedagógicos
tradicionais. Ao mesmo tempo, foi ponto de virada da arquitetura escolar. “Em
vez de salas de aula dentro de prédios, as escolas ao ar livre utilizavam
mobiliário versátil, com mesas, cadeiras e lousa leves e portáteis”, conta.
“Alunos e professores carregavam os móveis e formavam classes em parques
públicos, debaixo de árvores.”
• Escola
de Aplicação ao Ar Livre
O Brasil teve algumas iniciativas desse tipo. Uma
delas foi a Escola de Aplicação ao Ar Livre de São Paulo, instalada em 1939 no
Parque da Água Branca, na zona oeste da capital paulista.
“O contato íntimo com as estruturas do parque
favorecia, a partir da observação, a aquisição de conhecimentos científicos
sobre a natureza, além de história e geografia”, explica o pesquisador André
Dalben, professor do Instituto de Saúde e Sociedade da Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp), que se debruçou sobre o assunto em artigo publicado no ano
passado”.
“De acordo com Dalben, as escolas ao ar livre
fizeram parte de políticas de prevenção a doenças como tuberculose e
raquitismo, que incluíam terapias naturais também ofertadas em sanatórios –
entre elas a helioterapia, a incidência dos raios solares sobre a pele. “Os
estudantes assistiam a palestras sobre higiene, praticavam exercícios físicos e
ficavam alguns minutos expostos ao sol.”
Em 1952, a escola estadual precisou deixar o Parque
da Água Branca, cedendo espaço para feiras agropecuárias. Foi transferida para
o bairro da Lapa, em um edifício especialmente construído para abrigá-la. Por
mais estranho que pareça, foi possível estabelecer uma escola ao ar livre
dentro de um prédio, resultado do esforço criativo do arquiteto fluminense
Roberto Tibau (1924-2003).
“O imóvel contava com seis salas de aula térreas,
cada uma integrada a um pátio privativo a céu aberto”, descreve Dalben. Mesmo
os ambientes fechados dispunham de imensas janelas de vidro, permitindo a
circulação de ar e a entrada abundante de luz solar.
A iniciativa perdurou como modelo por muito tempo,
mas seus espaços abertos foram paulatinamente descaracterizados, dando lugar a
salas de aula convencionais. “A partir da década de 1950, em razão do
desenvolvimento de novas vacinas e medicamentos para doenças infecciosas,
grande parte dos pressupostos médicos da escola ao ar livre acabou se
perdendo”, ressalta Dalben.
Diante do fechamento de escolas e dos desafios do
ensino remoto, decorrentes da pandemia as escolas ao ar livre poderiam oferecer
condições para a retomada das atividades presenciais. Algumas limitações
persistem.
• Arranjos
Em regiões de clima frio, como em boa parte da
Europa e dos Estados Unidos, ou mesmo o Sul do Brasil, atividades ao ar livre
tornam-se mais difíceis durante o outono e o inverno. Ainda assim, o modelo
pode inspirar novos arranjos para os espaços escolares, avalia Vidal. “Sabendo
que o contágio do coronavírus é menor em lugares abertos, faz sentido considerar
o ar livre como opção não apenas para enfrentar a doença, mas também para
estimular a educação ambiental para além dos muros escolares.”
A arquitetura moderna não deixou marcas apenas na
educação, mas também em hospitais erguidos em meados do século XX. Projetado
por Le Corbusier e construído em 1965, o Hospital de Veneza, na Itália, tem
terraços-jardins que formam mezaninos sobrepostos aos leitos dos pacientes,
ajudando a ventilar e iluminar os dormitórios.
“De acordo com o filósofo francês Michel Foucault
[1926-1984], no final do século XVIII e início do XIX os hospitais foram
deixando de ser locais de isolamento de doentes terminais e indigentes, para se
tornar lugares de cura. Paredes brancas, pisos frios e acessórios de metal
foram incorporados para denotar princípios de higiene”, explica o arquiteto
Antonio Pedro Alves de Carvalho, coordenador do Grupo de Estudos em Arquitetura
e Engenharia Hospitalar da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
O grande marco da arquitetura hospitalar, contudo,
é mais antigo. Trata-se do livro Notes on hospitals, publicado em 1859 pela
enfermeira britânica Florence Nightingale (1820-1910), a fundadora da
enfermagem moderna. “A obra é referência até hoje”, comenta Carvalho. “Ela
propôs mudanças no padrão arquitetônico, como divisão dos pacientes por
enfermarias, distanciamento entre leitos e adoção de janelas amplas para
ventilação a fim de reduzir o risco de infecção hospitalar.”
• Hospitais
Em julho, o grupo liderado por Carvalho lançou uma
cartilha com recomendações para ajustar o espaço físico de hospitais durante a
pandemia de Covid-19. A renovação do ar exerce papel preponderante, uma vez que
o Sars-CoV-2 pode ser transmitido por meio de aerossóis – gotículas em
suspensão produzidas por espirro, tosse ou pela fala de pessoa infectada.
O documento indica, conforme orientação do
Ministério da Saúde, a criação de “salas de priorização”, dedicadas a acolher e
fazer a triagem de pessoas com sintomas respiratórios. “Essas salas devem ser
ventiladas, mantidas com as janelas abertas e aparelhos de ar-condicionado
desligados”, recomenda.
A pandemia também pode provocar, no longo prazo,
transformações na estrutura de hospitais e outros estabelecimentos de saúde,
avalia Carvalho. “Uma consequência importante deverá ser a flexibilização dos
projetos arquitetônicos.” Isso significa, por exemplo, utilizar divisórias
móveis ou paredes de gesso ou madeira, com o propósito de facilitar a expansão
de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em momentos de crise.
Outro efeito desejável seria a construção de
hospitais com espaços mais abertos, com jardins floridos e agradáveis. “A
questão do conforto ambiental é central na discussão sobre arquitetura e
saúde”, enfatiza Carvalho.
• Lelé
Uma referência nesse sentido é a Rede Sarah de
Hospitais de Reabilitação, presente em oito estados brasileiros. Os hospitais,
projetados pelo arquiteto carioca João Filgueiras Lima (1932-2014), conhecido
como Lelé, caracterizam-se pela busca de racionalização no uso dos espaços.
A unidade de Salvador se destaca por um sistema de
ventiladores instalados em túneis subterrâneos que mantêm a temperatura
agradável, dispensando o uso de ar-condicionado em praticamente todo o
hospital. “Ambientes naturalmente arejados contribuem para a eficiência energética
do prédio, proporcionando mais conforto aos usuários com menor gasto de
energia. Isso é relevante em um país de clima tropical”, diz o antropólogo
Antônio Risério, autor de A casa no Brasil (Topbooks, 2019).
No livro, que analisa a natureza das construções de
casas no Brasil, é possível identificar estilos de moradias que, direta ou
indiretamente, contribuíram para melhorar a qualidade de vida de seus
habitantes. É o caso das casas neocoloniais, fruto de um movimento surgido nas
primeiras décadas do século XX, que propunha uma arquitetura de cunho nacional
cujas raízes remontam ao Brasil Colônia.
• Californian
style
“São casarões com grandes varandas, alpendres e
escadarias externas. Um modelo bem agradável para os trópicos”, informa
Risério. Outro gênero que vigorou em algumas partes do país, até a década de
1950, foi o chamado californian style, que também abusava de áreas externas,
janelas grandes e jardins.
Para Risério, um dos problemas da arquitetura
moderna em todo o mundo foi tentar uniformizar e impor um modelo padronizado de
construção sem levar em consideração características ambientais locais.
“Varandas enormes não são garantia de imóvel saudável”, observa. “É preciso
também pensar no entorno da construção. Por exemplo, se há praças e espaços de
convívio coletivo e como as moradias dialogam com vias urbanas e condições
climáticas do local.”
• Cidades
utópicas
Alguns arquitetos modernistas chegaram a desenhar
cidades utópicas. Le Corbusier pensou em metrópoles cujos edifícios fossem
espaçados e distribuídos de forma regular, com grandes vias conectando quadras
que, por sua vez, seriam organizadas por setores. “Essas ideias influenciaram
diretamente o projeto de Brasília elaborado por Lúcio Costa [1902-1998]”,
explica a arquiteta Silvia Raquel Chiarelli, especialista na obra de Le
Corbusier. Anos mais tarde, percebeu-se que a setorização da cidade reforçou o
modelo “rodoviarista”, marcado pela insuficiência do transporte público.
“Do ponto de vista da segurança e da saúde, isso
não é desejável”, afirma Chiarelli. “É preciso estimular a circulação de
pessoas a fim de evitar a proliferação de espaços inóspitos dentro da cidade.
Para isso, é fundamental replicar territórios diversificados, com acesso a
comércio, moradia, centros de lazer e atividade física numa mesma área”, avalia
a pesquisadora.
A constituição de cidades mais saudáveis depende,
portanto, de ações de planejamento urbano, resume Ana Maria Girotti Sperandio,
especialista em saúde coletiva e professora da Faculdade de Engenharia Civil,
Arquitetura e Urbanismo da Unicamp. “A articulação entre urbanismo e saúde
pública não deve se voltar apenas para situações emergenciais como a atual. Há
uma missão mais ampla: transformar áreas urbanas em ambientes de promoção da
saúde”, afirma.
Em maio, o Programa das Nações Unidas para os
Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) divulgou um guia com recomendações para
agentes públicos sobre como integrar saúde e urbanismo. De acordo com o
documento, o planejamento urbano deve desempenhar papel central na prevenção de
epidemias. “É a partir de políticas públicas urbanas que definimos a qualidade
do ar que respiramos, da água que bebemos, a forma como nos movemos e como
acessamos alimentos e equipamentos de saúde”, sintetiza Sperandio.
Fonte: eCycle
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