segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Ensino domiciliar e os riscos existentes para os menores de idade

Decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) pode ter aberto uma brecha para que a prática do ensino domiciliar (o homeschooling) seja adotado no país, uma pauta defendida por bolsonaristas e evangélicos de alas mais conservadoras.

De acordo com recurso impetrado pelo governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), a Lei Complementar estadual 775/2021 não trata de educação nacional, mas de um método pedagógico por meio do qual se concretiza o direito constitucional à educação, respeitando os critérios previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Contudo, o tribunal catarinense entendeu que a matéria sobre ensino domiciliar é de competência legislativa privativa da União.

O ministro Alexandre de Moraes negou o seguimento do recurso ressaltando que a decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) está de acordo com o entendimento do STF de que o ensino domiciliar não é um direito público subjetivo do aluno ou de sua família, pois essa modalidade não existe na legislação federal.

Tal posicionamento foi adotado no julgamento do RE 888815, com repercussão geral (Tema 822), em que a Corte assentou que a Constituição não veda o homeschooling, desde que a criação se dê por meio de lei federal.

E é esse ponto que exige um pouco mais de atenção: no momento em que o STF afirma que a Constituição brasileira não veda o homeschooling, principalmente quando criado por meio de lei federal, pode-se abrir um precedente para que a proposta de educação domiciliar seja reavivada pela ala mais conservadora dentre os políticos.

Em linhas gerais, o conceito de homeschooling permite que pais ou responsáveis eduquem suas(seus) filhas(os) apenas em casa, sem as(os) matricularem na escola.

Atualmente, quem optar por essa prática pode ser incurso no Código Penal como crime de abandono intelectual (“art. 246 – Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar”), já que, de acordo com o art. 208 da Constituição brasileira, a educação básica deve ser obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade.

“De fato, a decisão (do STF) abre brechas, por exemplo, para tramitar uma lei no Congresso Nacional que defenda o homeschooling”, afirma Romualdo Portela de Oliveira, diretor de pesquisa e avaliação do Cenpec, uma ONG com foco no desenvolvimento de projetos e pesquisas voltados para a promoção da qualidade e equidade da educação pública.

“Como essa lei está com dificuldades de avançar – uma está parada agora no Senado – existe outra tramitando que não debate no nível federal, mas autoriza que estados legislem sobre o assunto e, se isso for aprovado, então o homeschooling poderia ser votado no nível estadual e ter validade jurídica”, alerta.

·         Problemas da educação em casa

Segundo Olavo Nogueira, diretor-executivo do programa Todos pela Educação, o sistema de ensino domiciliar não é capaz de atender aos objetivos da Educação que foram propostos no artigo 205 da Constituição Federal: “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Nogueira ressalta que a restrição do convívio com pessoas fora do círculo familiar, além da falta de ideias e visões contraditórias ao visto em casa e a troca de experiências, acaba por comprometer o desenvolvimento de crianças e jovens.

“Além disso, a prática dificulta e até inviabiliza habilidades como respeito às diferenças, aprendizado e trabalho coletivos, debate respeitoso, autorregulação, tolerância às visões religiosas e ideológicas distintas, para citar apenas algumas habilidades fundamentais e esperadas do processo educacional”, ressalta.

Além das questões relativas à formação das crianças e jovens em idade escolar, há outro ponto a ser levado em consideração: o do melhor uso dos recursos públicos e do esforço governamental.

“As pessoas que se dedicam ao homeschooling fazem parte de um grupo privilegiado, que têm condições financeiras para que um dos pais abra mão de trabalhar, ou trabalhe uma jornada menor, de modo a ter tempo livre para educar os filhos em casa”, afirma Romualdo Portela de Oliveira.

“É falacioso tomar esse grupo privilegiado como regra e o comparar a um conjunto de estudantes das redes públicas, que sabemos não terem as mesmas condições socioeconômicas. Assim, quando a comparação é feita adequadamente, não há evidência de melhores resultados acadêmicos das(os) homeschoolers”, ressalta.

·         Impacto na educação inclusiva

O tema do ensino domiciliar foi tratado com mais ênfase durante a pandemia de covid-19, sendo debatido inclusive na Câmara dos Deputados – e com grande mobilização contrária ao tema.

Um dos lados contrários à educação domiciliar é o da educação inclusiva, que prioriza a socialização e inclusão de crianças e jovens com algum tipo de necessidade especial.

Em entrevista concedida ao portal Cenpec Educação em 2021, a então coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes, Luiza Corrêa, lembrou que a conquista das pessoas com deficiência de estudarem em escolas comuns é muito recente: apenas em 2008 houve aumento no número de matriculas nas unidades de ensino regulares.

“Historicamente, essas pessoas foram excluídas e institucionalizadas. Elas passavam a vida inteira numa instituição que muitas vezes nem ensino tinha, oferecia mais terapias. Ou seja, é muito recente o entendimento das pessoas com deficiência como sujeitos de direitos, e que têm direito a estudar em uma escola regular e que tem direito à aprendizagem. Trata-se, portanto, de uma conquista muito frágil”, afirmou.

“A nossa hipótese é que a regulamentação do homeschooling – que pode vir com boas intenções, no intuito de proteger as crianças – muito provavelmente volte a isolar os(as) estudantes com deficiência em suas casas, principalmente considerando esse manto capacitista em que vivemos. É o que aconteceu mais frequentemente na história do mundo”, ressaltou Luiza.

·         Opinião popular sobre educação domiciliar

Pesquisa recente elaborada pelo Cenpec em parceria com a Ação Educativa traz a percepção da população sobre o homeschooling: de forma geral, cerca de 60% dos respondentes declararam estar bem informados ou mais ou menos informados sobre o assunto, em especial aqueles que chegaram a cursar o ensino superior e com renda familiar acima de cinco salários mínimos apresentaram maior nível de conhecimento sobre o tema.

A pesquisa encontrou que 21% dos brasileiros concordaram com a afirmação de que as mães e os pais devem ter o direito de retirar os filhos da escola e ensiná-los em casa. Porém, 99% e 90%, respectivamente, afirmaram que frequentar a escola é importante para as crianças e que elas devem ter esse direito mesmo que seus pais não queiram.

“Os cruzamentos das perguntas com os diferentes subgrupos mostraram que os mais jovens, os que chegaram a cursar o ensino superior e os com renda familiar acima de cinco salários mínimos concordaram, em maior proporção, com a afirmação de que os pais devem ter o direito de retirar as crianças da escola. Não houve variação com relação às outras afirmações”, afirma o levantamento, que pode ser acessado na íntegra clicando aqui.

·         Casos de violência contra crianças

Além da preocupação em torno da qualidade educacional e do acesso para crianças e jovens com algum tipo de necessidade especial, uma eventual sanção do homeschooling gera outra preocupação: um eventual aumento nos registros de violência contra crianças e adolescentes.

E tal preocupação faz todo sentido: dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam que os crimes de maus-tratos (enquadrados nos art. 136 do Código Penal e art. 232 do ECA) possuem números significativos de registros com vítimas de 0 a 17 anos.

Em 2022 foram documentados 22.527 casos nessa faixa etária, o que significa um aumento de 13,8% em relação a 2021 e uma taxa de 45,1 registros por 100 mil habitantes dessa idade. Nota-se inclusive que o aumento ocorreu em todas as faixas etárias, porém proporcionalmente maior nas faixas de 10 a 13 e 14 a 17 anos.

Em 2021 a faixa etária de 0 a 4 anos possuía um número maior de vítimas de violência física do que a faixa de 10 a 13 anos: o aumento de 19,7% dos casos nessa segunda faixa, fez com que o número de casos se aproximasse em ambos os grupos. Já a faixa de 5 a 9 anos permanece sendo a faixa etária com mais vítimas de maus-tratos, totalizando 7.697 registros em 2022, seguida pelas faixas de 0 a 4 anos e 10 a 13 anos.

O documento destaca que a maior parte dos agressores são conhecidos das vítimas (em todas as faixas etárias o percentual é maior que 90%). Porém, quando as vítimas estão na faixa de 0 a 4 anos, a fração de agressores Familiares/Conhecidos e de Mães/ Madrastas é maior se comparado às outras faixas etárias.

A partir dos 5 anos, cresce o percentual de pais e padrastos como agressores e, a partir dos 14 anos, também aumenta o percentual de desconhecidos como agressores.

“Vale recordar que os dados de maus-tratos vêm sendo compilados desde o período da pandemia de COVID-19. Desde então, o padrão de queda dos registros nos períodos de férias escolares tem se confirmado, evidenciando que não se trata de uma especificidade do período de isolamento social e indicando que, possivelmente, a rede escolar é protagonista na percepção e denúncia de casos de maus-tratos contra o público mais jovem”, ressalta o documento.

“A queda de registros nos meses que as crianças não estão na escola, portanto, reafirmam a importância dos profissionais da educação na realização de denúncias e do setor educacional como um todo, como parte fundamental da rede protetiva às crianças”

 

Ø  Alteração no Novo Ensino Médio traz avanços, mas PL do governo ainda pode melhorar; entenda

 

Enviada na última terça (24) pelo governo Lula ao Congresso Nacional, a proposta que modifica o chamado “Novo Ensino Médio” (NEM) conta com o apoio de entidades civis que atuam na área educacional em alguns dos seus trechos, mas enfrenta resistência em outros pontos. Organizações ouvidas pelo Brasil de Fato já se articulam junto ao Legislativo para tentar garantir espaço para ponderações ao texto e buscar avanços.

A medida, batizada de Projeto de Lei (PL) nº 5230/2023, começa a ser avaliada pela Câmara dos Deputados e aguarda despacho do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), para que tenha o seu percurso interno definido. Uma coisa, no entanto, já é certa: o texto tramita em caráter de urgência e por isso precisa ser apreciado dentro de 45 dias, prazo que se encerra em 11 de dezembro. A partir de então, caso não tenha sido votado ainda, o PL passa a trancar a pauta, impedindo a análise de outras medidas para que ele seja priorizado pelos parlamentares.

O modelo instituído pelo NEM está em vigor desde o ano passado, mas gera controvérsias desde 2016, quando ainda era uma proposta legislativa apresentada pelo então governo Temer. Na época, entidades civis, professores e outros especialistas do meio educacional apontaram diversos problemas na medida, entre eles a falta de um amplo e aprofundado debate sobre o assunto.

Em abril deste ano, o governo Lula suspendeu a implementação do Novo Ensino Médio por 60 dias para que fosse feita uma discussão sobre o aperfeiçoamento do modelo. A medida não interferiu no cronograma das escolas. O governo abriu, então, uma consulta pública entre o final de abril e o início de julho para receber manifestações dos diferentes segmentos a respeito do tema. Depois das discussões, a gestão formatou a proposta que foi enviada ao Congresso.

·         Conteúdo

O modelo do Novo Ensino Médio fixa um total de 3 mil horas-aula ao longo de três anos de estudo, estipulando que deve haver um mínimo de 1.800 horas para as disciplinas obrigatórias (linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas) e 1.200 para as matérias opcionais, que são os itinerários formativos escolhidos pelo aluno. No PL proposto pelo governo, a previsão é de que se mantenha o montante de 3 mil horas, mas com 2.400 horas para as obrigatórias e apenas 600 para as demais. Considerada a principal mudança no modelo, essa é a reestruturação da chamada “Formação Geral Básica (FGB)”. Além disso, o texto acaba com a possibilidade de ensino a distância, modalidade existente no formato trazido por Temer.

Para a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), o modelo implementado ano passado tem viés limitante e contribuiu para precarizar as escolas públicas, por isso a entidade vê com bons olhos a proposta redigida pelo atual governo. Como o Novo Ensino Médio autoriza as unidades de ensino a oferecerem apenas duas áreas de estudo, por exemplo, o formato comprometeu ainda mais estudantes de cidades menores, que acabam tendo um cardápio reduzido de opções para os alunos.

“Esses itinerários [do Novo Ensino Médio] não foram pensados por pessoas que viviam a realidade da escola pública, nem por professores e especialistas. Era algo não pensando nem planejado. Havia escolas que só tinham uma possibilidade de itinerário. Então, se eu quisesse me aprofundar em ciências exatas e na minha escola não tivesse, eu tinha que ir pra outra escola”, exemplifica o diretor de Escolas Técnicas da Ubes, Hugo Silva.

Outras organizações concordam com a mudança proposta pelo governo nesse aspecto em particular, como é o caso da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). A entidade considera que o modelo atual falha por não assegurar uma formação integral e entende que ele reduz a importância da educação a uma “formação precária de treinamento” voltada a interesses de mercado. A CNTE também vê com bons olhos o fato de o PL dar atenção especial a escolas indígenas, do campo, das florestas, unidades quilombolas, bilíngues e ao ensino noturno e à Educação de Jovens e Adultos (EJA), mas a organização pondera que que vê necessidade de aprimoramento em alguns trechos da proposta.

 “O projeto reintegra a língua espanhola, que é introduzida de forma obrigatória no ensino médio, embora a gente defenda que ela seja incluída [nos currículos] a partir do 6o ano do Ensino Fundamental, e não apenas no Ensino Médio, considerando inclusive os estados que fazem fronteiras com países de língua espanhola”, afirma Guelda Andrade, ao mencionar que a entidade pretende batalhar por uma modificação nesse quesito.

Outro ponto do PL bem avaliado por entidades do campo progressista é o fim da norma que permite incluir no grupo dos profissionais da educação figuras que detêm o chamado “notório saber”. O Novo Ensino Médio prevê essa possibilidade para professores da educação profissional e tecnológica.

·         Ensino técnico

A Ubes entende que o projeto enviado pelo governo ao Congresso ainda carece de mudanças no que se refere ao regramento colocado para o ensino a distância (EAD): enquanto na formação básica ele fica proibido, no ensino técnico, é estipulado limite de 20% das aulas nesse formato. Diretor de Escolas Técnicas da entidade, Hugo Silva considera que há prejuízos aos estudantes de tais cursos.

“A gente acha esse projeto muito bom, muito parecido com o que a Ubes tem defendido, mas há coisas que precisam ser adicionadas. É o caso dessa parte. A formação técnica precisa ser pautada com muito cuidado. Se a gente não fez inclusão digital até hoje no nosso país, não faz sentido oferecer um itinerário formativo que permita parte das aulas a distância, o que nem todo mundo consegue fazer. Isso seria reforçar as desigualdades”, argumenta o dirigente.

A Ubes tenta agora travar um diálogo com parlamentares sobre o texto e para buscar mudanças no conteúdo do PL. “Não temos medido esforços para colocar toda a nossa turma em Brasília pra conversar com os deputados. E queremos dialogar não só com os parlamentares de esquerda, mas também com os da direita, os conservadores, porque nós precisamos ganhar essa narrativa.”

·         Diálogo

Já a Campanha Nacional pelo Direito à Educação defende a aprovação de um outro projeto, o PL 2601/2023, apresentado em maio pela bancada do PSOL em parceira com os deputados Bacelar (PV-BA) e Túlio Gadelha (Rede-PE), que guarda diferenças em relação ao PL da gestão Lula. “Mas esse PL do governo traz avanços e significa também uma disponibilidade de diálogo a partir do que vem sendo feito desde o início do ano, desde a proposta do grupo de trabalho até a consulta pública. Estamos ainda analisando o texto que foi apresentado”, diz a coordenadora de Programa e Políticas da organização, Marcele Frossard.

Ela faz um contraponto com o método político adotado entre 2016 e 2017, quando o Congresso aprovou o texto do Novo Ensino Médio. “Quando o NEM foi aprovado, não só a gente estava num contexto político muito complicado como houve, de certa forma, um aproveitamento da situação para aprovar uma medida que não teve a participação nem dos estudantes nem da comunidade escolar, de uma maneira geral. Então, essa reforma não corresponde às expectativas do que deve ser uma atualização do Ensino Médio ou alguma coisa nesse sentido porque não houve consulta, por isso defendemos mudanças.”

 

Fonte: Jormal GGN/Brasil de Fato

 

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