Ensino domiciliar e os riscos existentes para os menores de idade
Decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF)
pode ter aberto uma brecha para que a prática do ensino domiciliar (o
homeschooling) seja adotado no país, uma pauta defendida por bolsonaristas e
evangélicos de alas mais conservadoras.
De acordo com recurso impetrado pelo governador de
Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), a Lei Complementar estadual 775/2021 não
trata de educação nacional, mas de um método pedagógico por meio do qual se
concretiza o direito constitucional à educação, respeitando os critérios
previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Contudo, o tribunal
catarinense entendeu que a matéria sobre ensino domiciliar é de competência
legislativa privativa da União.
O ministro Alexandre de Moraes negou o
seguimento do recurso ressaltando que a decisão do Tribunal de
Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) está de acordo com o entendimento do STF de
que o ensino domiciliar não é um direito público subjetivo do aluno ou de sua
família, pois essa modalidade não existe na legislação federal.
Tal posicionamento foi adotado no julgamento do RE
888815, com repercussão geral (Tema 822), em que a Corte assentou que a
Constituição não veda o homeschooling, desde que a criação se dê por meio de
lei federal.
E é esse ponto que exige um pouco mais de atenção:
no momento em que o STF afirma que a Constituição brasileira não veda o
homeschooling, principalmente quando criado por meio de lei federal, pode-se
abrir um precedente para que a proposta de educação domiciliar seja reavivada
pela ala mais conservadora dentre os políticos.
Em linhas gerais, o conceito de homeschooling
permite que pais ou responsáveis eduquem suas(seus) filhas(os) apenas em casa,
sem as(os) matricularem na escola.
Atualmente, quem optar por essa prática pode ser
incurso no Código Penal como crime de abandono intelectual (“art. 246 – Deixar,
sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar”), já
que, de acordo com o art. 208 da Constituição brasileira, a educação básica
deve ser obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade.
“De fato, a decisão (do STF) abre brechas, por
exemplo, para tramitar uma lei no Congresso Nacional que defenda o
homeschooling”, afirma Romualdo Portela de Oliveira, diretor de pesquisa e
avaliação do Cenpec, uma ONG com foco no desenvolvimento de projetos e
pesquisas voltados para a promoção da qualidade e equidade da educação pública.
“Como essa lei está com dificuldades de avançar –
uma está parada agora no Senado – existe outra tramitando que não debate no
nível federal, mas autoriza que estados legislem sobre o assunto e, se isso for
aprovado, então o homeschooling poderia ser votado no nível estadual e ter
validade jurídica”, alerta.
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Problemas da educação em
casa
Segundo Olavo Nogueira, diretor-executivo do
programa Todos pela Educação, o sistema de ensino domiciliar não é capaz de
atender aos objetivos da Educação que foram propostos no artigo 205 da
Constituição Federal: “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Nogueira ressalta que a restrição do convívio com
pessoas fora do círculo familiar, além da falta de ideias e visões
contraditórias ao visto em casa e a troca de experiências, acaba por
comprometer o desenvolvimento de crianças e jovens.
“Além disso, a prática dificulta e até inviabiliza
habilidades como respeito às diferenças, aprendizado e trabalho coletivos, debate
respeitoso, autorregulação, tolerância às visões religiosas e ideológicas
distintas, para citar apenas algumas habilidades fundamentais e esperadas do
processo educacional”, ressalta.
Além das questões relativas à formação das crianças
e jovens em idade escolar, há outro ponto a ser levado em consideração: o do
melhor uso dos recursos públicos e do esforço governamental.
“As pessoas que se dedicam ao homeschooling fazem
parte de um grupo privilegiado, que têm condições financeiras para que um dos
pais abra mão de trabalhar, ou trabalhe uma jornada menor, de modo a ter tempo
livre para educar os filhos em casa”, afirma Romualdo Portela de Oliveira.
“É falacioso tomar esse grupo privilegiado como
regra e o comparar a um conjunto de estudantes das redes públicas, que sabemos
não terem as mesmas condições socioeconômicas. Assim, quando a comparação é
feita adequadamente, não há evidência de melhores resultados acadêmicos
das(os) homeschoolers”, ressalta.
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Impacto na educação
inclusiva
O tema do ensino domiciliar foi tratado com mais
ênfase durante a pandemia de covid-19, sendo debatido inclusive na Câmara dos
Deputados – e com grande mobilização contrária ao tema.
Um dos lados contrários à educação domiciliar é o
da educação inclusiva, que prioriza a socialização e inclusão de crianças e
jovens com algum tipo de necessidade especial.
Em entrevista
concedida ao portal Cenpec Educação em 2021, a
então coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes, Luiza Corrêa,
lembrou que a conquista das pessoas com deficiência de estudarem em escolas
comuns é muito recente: apenas em 2008 houve aumento no número de matriculas
nas unidades de ensino regulares.
“Historicamente, essas pessoas foram excluídas e
institucionalizadas. Elas passavam a vida inteira numa instituição que muitas
vezes nem ensino tinha, oferecia mais terapias. Ou seja, é muito recente o
entendimento das pessoas com deficiência como sujeitos de direitos, e que têm
direito a estudar em uma escola regular e que tem direito à aprendizagem.
Trata-se, portanto, de uma conquista muito frágil”, afirmou.
“A nossa hipótese é que a regulamentação do homeschooling –
que pode vir com boas intenções, no intuito de proteger as crianças – muito
provavelmente volte a isolar os(as) estudantes com deficiência em suas casas,
principalmente considerando esse manto capacitista em que vivemos. É o que
aconteceu mais frequentemente na história do mundo”, ressaltou Luiza.
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Opinião popular sobre
educação domiciliar
Pesquisa recente elaborada pelo Cenpec em parceria
com a Ação Educativa traz a percepção da população sobre o homeschooling:
de forma geral, cerca de 60% dos respondentes declararam estar bem informados
ou mais ou menos informados sobre o assunto, em especial aqueles que chegaram a
cursar o ensino superior e com renda familiar acima de cinco salários mínimos
apresentaram maior nível de conhecimento sobre o tema.
A pesquisa encontrou que 21% dos brasileiros
concordaram com a afirmação de que as mães e os pais devem ter o direito de
retirar os filhos da escola e ensiná-los em casa. Porém, 99% e 90%,
respectivamente, afirmaram que frequentar a escola é importante para as
crianças e que elas devem ter esse direito mesmo que seus pais não queiram.
“Os cruzamentos das perguntas com os diferentes
subgrupos mostraram que os mais jovens, os que chegaram a cursar o ensino
superior e os com renda familiar acima de cinco salários mínimos concordaram,
em maior proporção, com a afirmação de que os pais devem ter o direito de
retirar as crianças da escola. Não houve variação com relação às outras
afirmações”, afirma o levantamento, que pode ser acessado na íntegra clicando
aqui.
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Casos de violência contra
crianças
Além da preocupação em torno da qualidade
educacional e do acesso para crianças e jovens com algum tipo de necessidade
especial, uma eventual sanção do homeschooling gera outra preocupação: um
eventual aumento nos registros de violência contra crianças e adolescentes.
E tal preocupação faz todo sentido: dados do Anuário
Brasileiro de Segurança Pública revelam
que os crimes de maus-tratos (enquadrados nos art. 136 do Código Penal e art.
232 do ECA) possuem números significativos de registros com vítimas de 0 a 17
anos.
Em 2022 foram documentados 22.527 casos nessa faixa
etária, o que significa um aumento de 13,8% em relação a 2021 e uma taxa de
45,1 registros por 100 mil habitantes dessa idade. Nota-se inclusive que o
aumento ocorreu em todas as faixas etárias, porém proporcionalmente maior nas faixas
de 10 a 13 e 14 a 17 anos.
Em 2021 a faixa etária de 0 a 4 anos possuía um
número maior de vítimas de violência física do que a faixa de 10 a 13 anos: o
aumento de 19,7% dos casos nessa segunda faixa, fez com que o número de casos
se aproximasse em ambos os grupos. Já a faixa de 5 a 9 anos permanece sendo a
faixa etária com mais vítimas de maus-tratos, totalizando 7.697 registros em
2022, seguida pelas faixas de 0 a 4 anos e 10 a 13 anos.
O documento destaca que a maior parte dos
agressores são conhecidos das vítimas (em todas as faixas etárias o percentual
é maior que 90%). Porém, quando as vítimas estão na faixa de 0 a 4 anos, a
fração de agressores Familiares/Conhecidos e de Mães/ Madrastas é maior se
comparado às outras faixas etárias.
A partir dos 5 anos, cresce o percentual de pais e
padrastos como agressores e, a partir dos 14 anos, também aumenta o percentual
de desconhecidos como agressores.
“Vale recordar que os dados de maus-tratos vêm
sendo compilados desde o período da pandemia de COVID-19. Desde então, o padrão
de queda dos registros nos períodos de férias escolares tem se confirmado,
evidenciando que não se trata de uma especificidade do período de isolamento
social e indicando que, possivelmente, a rede escolar é protagonista na
percepção e denúncia de casos de maus-tratos contra o público mais jovem”,
ressalta o documento.
“A queda de registros nos meses que as crianças não
estão na escola, portanto, reafirmam a importância dos profissionais da
educação na realização de denúncias e do setor educacional como um todo, como
parte fundamental da rede protetiva às crianças”
Ø Alteração no Novo Ensino Médio traz avanços, mas PL do governo ainda
pode melhorar; entenda
Enviada na última terça (24) pelo governo Lula ao
Congresso Nacional, a proposta que modifica o chamado “Novo Ensino Médio” (NEM)
conta com o apoio de entidades civis que atuam na área educacional em alguns
dos seus trechos, mas enfrenta resistência em outros pontos. Organizações
ouvidas pelo Brasil de Fato já
se articulam junto ao Legislativo para tentar garantir espaço para ponderações ao texto e buscar avanços.
A medida, batizada de Projeto de Lei (PL) nº
5230/2023, começa a ser avaliada pela Câmara dos Deputados e aguarda despacho
do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), para que tenha o seu percurso
interno definido. Uma coisa, no entanto, já é certa: o texto tramita em caráter
de urgência e por isso precisa ser apreciado dentro de 45 dias, prazo que se
encerra em 11 de dezembro. A partir de então, caso não tenha sido votado ainda,
o PL passa a trancar a pauta, impedindo a análise de outras medidas para que
ele seja priorizado pelos parlamentares.
O modelo instituído pelo NEM está em vigor desde o
ano passado, mas gera controvérsias desde 2016, quando ainda era uma proposta
legislativa apresentada pelo então governo Temer. Na época, entidades
civis, professores e outros especialistas do meio educacional apontaram diversos problemas na medida, entre
eles a falta de um amplo e aprofundado debate sobre o assunto.
Em abril deste ano, o governo Lula suspendeu a
implementação do Novo Ensino Médio por 60 dias para que fosse feita uma
discussão sobre o aperfeiçoamento do modelo. A medida não interferiu no
cronograma das escolas. O governo abriu, então, uma consulta pública entre o
final de abril e o início de julho para receber manifestações dos diferentes
segmentos a respeito do tema. Depois das discussões, a gestão formatou a
proposta que foi enviada ao Congresso.
·
Conteúdo
O modelo do Novo Ensino Médio fixa um total de 3
mil horas-aula ao longo de três anos de estudo, estipulando que deve haver um
mínimo de 1.800 horas para as disciplinas obrigatórias (linguagens, matemática,
ciências da natureza e ciências humanas) e 1.200 para as matérias opcionais,
que são os itinerários formativos escolhidos pelo aluno. No PL proposto pelo
governo, a previsão é de que se mantenha o montante de 3 mil horas, mas com
2.400 horas para as obrigatórias e apenas 600 para as demais. Considerada a
principal mudança no modelo, essa é a reestruturação da chamada “Formação Geral Básica (FGB)”. Além disso, o texto acaba com a
possibilidade de ensino a distância, modalidade existente no formato trazido
por Temer.
Para a União Brasileira dos Estudantes
Secundaristas (Ubes), o modelo implementado ano passado tem viés limitante e
contribuiu para precarizar as escolas públicas, por isso a entidade vê com bons
olhos a proposta redigida pelo atual governo. Como o Novo Ensino Médio autoriza
as unidades de ensino a oferecerem apenas duas áreas de estudo, por exemplo, o
formato comprometeu ainda mais estudantes de cidades menores, que acabam tendo
um cardápio reduzido de opções para os alunos.
“Esses itinerários [do Novo Ensino Médio] não foram
pensados por pessoas que viviam a realidade da escola pública, nem por
professores e especialistas. Era algo não pensando nem planejado. Havia escolas
que só tinham uma possibilidade de itinerário. Então, se eu quisesse me
aprofundar em ciências exatas e na minha escola não tivesse, eu tinha que ir
pra outra escola”, exemplifica o diretor de Escolas Técnicas da Ubes, Hugo
Silva.
Outras organizações concordam com a mudança
proposta pelo governo nesse aspecto em particular, como é o caso da
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). A entidade
considera que o modelo atual falha por não
assegurar uma formação integral e entende que ele reduz
a importância da educação a uma “formação precária de treinamento” voltada a
interesses de mercado. A CNTE também vê com bons olhos o fato de o PL dar
atenção especial a escolas indígenas, do campo, das florestas, unidades
quilombolas, bilíngues e ao ensino noturno e à Educação de Jovens e Adultos
(EJA), mas a organização pondera que que vê necessidade de aprimoramento em
alguns trechos da proposta.
“O projeto
reintegra a língua espanhola, que é introduzida de forma obrigatória no ensino
médio, embora a gente defenda que ela seja incluída [nos currículos] a partir
do 6o ano do Ensino Fundamental, e não apenas no Ensino Médio, considerando
inclusive os estados que fazem fronteiras com países de língua espanhola”,
afirma Guelda Andrade, ao mencionar que a entidade pretende batalhar por uma
modificação nesse quesito.
Outro ponto do PL bem avaliado por entidades do
campo progressista é o fim da norma que permite incluir no grupo dos
profissionais da educação figuras que detêm o chamado “notório saber”. O Novo
Ensino Médio prevê essa possibilidade para professores da educação profissional
e tecnológica.
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Ensino técnico
A Ubes entende que o projeto enviado pelo governo
ao Congresso ainda carece de mudanças no que se refere ao regramento colocado
para o ensino a distância (EAD): enquanto na formação básica ele fica proibido,
no ensino técnico, é estipulado limite de 20% das aulas nesse formato. Diretor
de Escolas Técnicas da entidade, Hugo Silva considera que há prejuízos aos
estudantes de tais cursos.
“A gente acha esse projeto muito bom, muito
parecido com o que a Ubes tem defendido, mas há coisas que precisam ser
adicionadas. É o caso dessa parte. A formação técnica precisa ser pautada com
muito cuidado. Se a gente não fez inclusão digital até hoje no nosso país, não
faz sentido oferecer um itinerário formativo que permita parte das aulas a
distância, o que nem todo mundo consegue fazer. Isso seria reforçar as
desigualdades”, argumenta o dirigente.
A Ubes tenta agora travar um diálogo com
parlamentares sobre o texto e para buscar mudanças no conteúdo do PL. “Não
temos medido esforços para colocar toda a nossa turma em Brasília pra conversar
com os deputados. E queremos dialogar não só com os parlamentares de esquerda,
mas também com os da direita, os conservadores, porque nós precisamos ganhar
essa narrativa.”
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Diálogo
Já a Campanha Nacional pelo Direito à Educação
defende a aprovação de um outro projeto, o PL 2601/2023, apresentado em maio
pela bancada do PSOL em parceira com os deputados Bacelar (PV-BA) e Túlio
Gadelha (Rede-PE), que guarda diferenças em relação ao PL da gestão Lula. “Mas
esse PL do governo traz avanços e significa também uma disponibilidade de
diálogo a partir do que vem sendo feito desde o início do ano, desde a proposta
do grupo de trabalho até a consulta pública. Estamos ainda analisando o texto
que foi apresentado”, diz a coordenadora de Programa e Políticas da
organização, Marcele Frossard.
Ela faz um contraponto com o método político
adotado entre 2016 e 2017, quando o Congresso aprovou o texto do Novo Ensino
Médio. “Quando o NEM foi aprovado, não só a gente estava num contexto político
muito complicado como houve, de certa forma, um aproveitamento da situação para
aprovar uma medida que não teve a participação nem dos estudantes nem da
comunidade escolar, de uma maneira geral. Então, essa reforma não corresponde
às expectativas do que deve ser uma atualização do Ensino Médio ou alguma coisa
nesse sentido porque não houve consulta, por isso defendemos mudanças.”
Fonte: Jormal GGN/Brasil de Fato
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