Qualidade do ar no Cerrado está comprometida pelo excesso de agrotóxico
Respirar ar puro no Cerrado tem sido cada vez mais
difícil. É o que indica um estudo recente, elaborado pelo Instituto Federal Goiano. A pesquisa
constatou uma relação entre a morte de líquens e a exposição ao glifosato, um
tipo de herbicida usado para impedir o crescimento de plantas espontâneas.
Os líquens são organismos formados por fungos e
algas que se relacionam entre si. “Na prática, isso indica a má qualidade do
ar. Em florestas tropicais, como é o nosso caso, a presença dos líquens indica
boas condições atmosféricas. Por outro lado, a sua ausência indica que as condições
do ar não estão adequadas”, resume Luciana Vitorino, doutora em Microbiologia,
pesquisadora do Instituto Federal Goiano e uma das autoras do estudo.
As amostras analisadas foram recolhidas de uma Área
de Preservação Permanente (APA) localizada no município de Caiapônia, distante
335 km de Goiânia, capital de Goiás. A APA está localizada dentro de uma
propriedade privada de monocultivo de cana-de-açúcar em larga escala.
Foram recolhidos dos troncos das árvores líquens
das espécies Parmotrema tinctorum e Usnea barbata (conhecida
como barba-de-velho). Essas amostras estavam no centro da APA, portanto,
em tese, não haviam sofrido exposição direta ao glifosato. Nas análises,
porém, foi constatado que houve redução de células vivas e aumento de células mortas
nos líquens barba-de-velho – ambos os resultados proporcionais ao tempo de
exposição e à concentração do herbicida.
Segundo Luciana Vitorino, o interesse em realizar
esse estudo mais aprofundado surgiu após ser encontrado cádmio, um dos metais
pesados presentes no glifosato, em líquens localizados nas bordas de quatro
Áreas de Preservação Permanente do município de Rio Verde, em Goiás. O
levantamento feito em 2017 envolveu áreas de conservação localizadas em
propriedades privadas de cultivo de commodities.
Em 2018, a preocupação dos pesquisadores aumentou.
Foram encontrados líquens com metais pesados provenientes do glifosato também
no Parque Nacional das Emas. Levando-se em conta que esse parque é uma Unidade
de Conservação de Proteção Integral, ou seja, com restrição de atividade
econômica, deveria ser improvável encontrar resíduos de glifosato nestes
organismos vivos.
Foi então que os pesquisadores suspeitaram de
contaminação por efeito de
deriva. Esse é o nome dado ao efeito que leva os
agrotóxicos, por meio das águas subterrâneas e de correntes de ar, para outras
áreas além do alvo da pulverização. A pulverização via aérea, a mais comum
adotada em Goiás, favorece a dispersão desse agrotóxico.
“Esses estudos anteriores serviram para comprovar
que havia contaminação de líquens em áreas de conservação. Já o estudo atual
mostrou, de forma mais efetiva, como os líquens eram afetados”, explica
Vitorino.
O município de Caiapônia foi escolhido por ser
tratar de uma área bastante preservada. O ideal, detalha Luciana, era obter
líquens que nunca haviam tido contato com o glifosato para observar bem a sua
reação aos estímulos realizados nas análises in vitro.
A pesquisa também identificou que o glifosato
compromete o processo de fotossíntese dos líquens. A fotossíntese é um processo
essencial para a sobrevivência. É por meio dele que a luz solar é convertida em
energia química, fornecendo alimento e oxigênio ao organismo. A figura acima
mostra o resultado do teste de fluorescência.
Neste caso, a exposição dos líquens a uma luz
específica mostra como está a saúde das algas que compõem os organismos, parte
responsável pela fotossíntese. Observe que, na última fileira, as algas praticamente
desaparecem. “Isso mostra que o glifosato compromete a capacidade de
fotossíntese dos líquens”, esmiúça Luciana.
De acordo com Luciana Vitorino, a diferença entre
os líquens e os outros bioindicadores está na sensibilidade e na resposta
imediata. “Com esse estudo, não queremos dizer que outras espécies não estejam
sendo atingidas [pelo glifosato], mas os líquens têm uma resposta mais rápida,
algo que pode demorar a aparecer em outras espécies”, pondera. Ela observa que
o estudo confirma a dispersão do produto para áreas de conservação e que a
pulverização aérea tem um papel contundente nesse caso.
Dados do Ibama apontam que o glifosato é o agrotóxico mais vendido no Brasil, com quase 220
toneladas por ano. Apenas no estado de Goiás, onde está
localizado o município de Caiapônia, local de onde as amostras foram extraídas,
são comercializadas quase 20
toneladas anuais do produto, ainda segundo o Ibama. O
glifosato é também o pesticida mais consumido no globo terrestre.
·
Cerrado: 70% do consumo
de agrotóxicos no Brasil
Na avaliação do médico e doutor em Saúde Pública,
Wanderlei Pignati, a chegada dos transgênicos foi determinante para que a quantidade de glifosato, assim como
de outros agrotóxicos usados no Cerrado aumentasse de maneira exponencial. “Foi
criado um tipo de soja resistente ao glifosato, a soja Roundup Ready, ou seja,
o glifosato pode ser aplicado direto na soja. Ele mata as ervas espontâneas,
mas não mata a soja”, explica. Além dela, outras espécies foram modificadas
geneticamente para se tornarem resistentes a diversos outros tipos de
agrotóxicos.
O Cerrado é responsável por 73,5% de todo o volume
de agrotóxicos comercializados em todo Brasil. Esse alto volume de consumo
deve-se ao fato de o bioma abrigar milhares de hectares de monocultivo de
commodities, sendo, portanto, a maior fronteira agrícola do agronegócio
brasileiro. Esse dado é revelado em um artigo publicado na revista “Desenvolvimento e Meio Ambiente”, da
Universidade Federal Rural do Paraná (UFPR).
do Sul. Esses organismos são formados por fungos e
algas, que interagem entre si, e apresentam resposta rápida sobre a má
qualidade do ar. Foto: Fábio Júnio Santos Fonseca, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia
Commons
A má qualidade do ar não é a única consequência do
excesso de uso de agrotóxicos que deve preocupar. Pesquisas apontam que tanto o
glifosato quanto outras substâncias que vão na composição dos herbicidas são
provavelmente cancerígenas.
Um exemplo é o produto Mata Mato, um herbicida que
leva na sua composição, além do glifosato, polioxietileno amina (poea),
nitroglifosato e formaldeído. “Enquanto o glifosato é provavelmente
cancerígeno, as outras substâncias são comprovadamente cancerígenas”, explica
Pignati.
Em 2015, a Agência Internacional de Pesquisa em
Câncer (Iarc), órgão ligado à Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou o
glifosato como “provavelmente cancerígeno”. Um parecer
técnico da Associação Brasileira de Saúde Coletiva
(Abrasco), lançado em 2019, cobra a proibição do registro de produtos à base de
glifosato com base no provável potencial cancerígeno do produto.
O parecer defende que seja adotado o princípio da
precaução, “critério basilar nos processos de avaliação de nocividades para a
saúde humana e para o ambiente, indicando ser mister evitar a exposição diante
de limitações e ou incertezas quanto aos perigos relacionados à exposição a
determinados agentes”, diz um trecho da nota.
Pignati explica que a Resolução
número 441 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) determina as quantidades nas quais essas substâncias podem ser
administradas. O polioxietileno amina não pode exceder 20% da quantidade de
produtos à base de glifosato; o nitrogenifosato, 0,001 grama por quilo de
glifosato; e o formaldeído, 1 grama por quilo de glifosato. “Será que essas
quantidades estão sendo respeitadas na produção do produto? É importante
sabermos”, questiona Pignati.
·
O glifosato está com os
dias contados?
Em dezembro deste ano, termina a licença para o uso
do glifosato na produção de herbicidas na União Europeia. No último dia 13 de
outubro, a Comissão Europeia decidiu prorrogar a licença do produto até 2033,
porém, essa aprovação não alcançou o quorum de no mínimo 15 países, o que
representa 66% dos membros suficientes para validar a decisão. Com isso,
a proposta será encaminhada ao Comitê de Apelação, que deve realizar a votação
final na primeira quinzena de novembro.
Dentre os países integrantes, a Alemanha, local de
origem do produto, já se posicionou contrária à renovação da licença. Áustria e
Luxemburgo devem acompanhar o voto da Alemanhã, porém, Itália, Suécia e
Portugal são favoráveis a extensão. Já Bélgica e Holanda anunciaram que devem
se abster.
Na queda de braço, de um lado estão as empresas que
temem pela perda dos lucros que somam cifras imensuráveis, que contam com
países como o Brasil, um dos maiores consumidores do glifosato do mundo. Do
outro, órgãos de pesquisa, médicos e ambientalistas que consideram as
evidências sobre o potencial cancerígeno do produto mais do que suficiente para
proibir seu uso. Havendo a proibição do glifosato, produtores brasileiros, caso
queiram ter os seus produtos aceitos na União Europeia, teriam que encontrar
uma solução ambientalmente sustentável para cultivá-los.
Ø Pesquisa sobre contaminação de gestantes e bebês indígenas por mercúrio
inicia coletas em quatro aldeias do povo Munduruku
A equipe do ‘Estudo Longitudinal de Gestantes e
Recém-Nascidos Indígenas Expostos ao Mercúrio na Amazônia’, coordenado pelo
pesquisador da ENSP/Fiocruz Paulo Basta, realizou seu primeiro trabalho de
campo entre os dias 9 e 21 de outubro. Nas Terras Indígenas Munduruku e Sai
Cinza, 25 gestantes indígenas foram entrevistadas e matriculadas na pesquisa
que vai avaliar se elas estão sendo contaminadas pelo mercúrio resultante do
garimpo ilegal e se, no caso de contaminação, haverá consequências para os
bebês. A pesquisa está no âmbito do ‘Projeto
Proteção de Povos Indígenas e Tradicionais do Brasil’, financiado pelo Ministério Federal de Cooperação Econômica e
Desenvolvimento da Alemanha por intermédio do WWF.
Composto por quatro médicos, uma farmacêutica, uma
bióloga, uma psicóloga, um geógrafo e um técnico em logística, o grupo de
pesquisadores visitou as aldeias Missão São Francisco, Sai Cinza, Katõ e
Karapanatuba. A equipe contou com a participação de 19 profissionais de saúde,
sendo 12 indígenas, que participaram do curso ‘Vigilância e monitoramento de
populações expostas ao mercúrio no Brasil: aspectos práticos’.
A capacitação de profissionais de saúde de nível
médio e de nível superior, incluindo enfermeiros, nutricionistas, psicólogos,
técnicos de enfermagem e agentes indígenas de saúde, foi um dos preparativos
para esta etapa da pesquisa. Realizado em março, o curso aprimorou ações já
desenvolvidas pelas Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) do
Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Rio Tapajós e possibilitou ainda a
estruturação de um sistema de vigilância de base comunitária que irá acompanhar
gestantes e recém-nascidos no âmbito da pesquisa. Para isso, foram doados
equipamentos e insumos às EMSI que atuam nas aldeias abrangidas pelo estudo.
As 25 indígenas grávidas entrevistadas neste
primeiro trabalho de campo representam 10% do total previsto para o
acompanhamento nos próximos dois anos. O pesquisador Paulo Basta explicou que
“a equipe de supervisão deverá realizar visitas trimestrais às comunidades
incluídas no estudo para avaliar as gestantes e seus recém-nascidos, bem como
para promover o aperfeiçoamento e manutenção do sistema de vigilância de base
comunitária que foi instituído neste mês de outubro”. A próxima visita está
agendada para o período de 4 a 16 de dezembro. Além de seguirem com as
atividades nas quatro aldeias recém-visitadas no alto rio Tapajós, na próxima
missão será iniciado o trabalho de entrevistas com as gestantes das aldeias
Praia do Índio, Praia do Mangue, Laranjal e Sawré Myubu, localizadas na região
do médio rio Tapajós.
Estão previstos quatro momentos de interação entre
a equipe de pesquisadores e as gestantes participantes do estudo, um a cada
trimestre da gestação e outro no momento do parto. A cada encontro, serão
realizadas entrevistas sobre: a história obstétrica, condições clínicas
pré-existentes, situação socioeconômica das famílias e alimentação, com
destaque para o consumo de pescados, já que os peixes são considerados o
principal veículo de exposição ao mercúrio.
“Além das entrevistas, serão aferidas medidas de
peso e estatura da gestante e serão coletadas amostras de cabelo da gestante
para avaliação da exposição pré-natal ao mercúrio, células da mucosa oral para
avaliação de polimorfismos genéticos em enzimas responsáveis pela metabolização
do mercúrio no corpo humanos, e amostras de sangue venoso para realização dos
exames previstos no protocolo de atenção pré-natal do Ministério da Saúde, a
saber: hemograma completo, tipagem sanguínea e fator Rh (quando for detectado
fator Rh negativo, será realizado o teste de Coombs indireto) sorologia para
sífilis, HIV, toxoplasmose, Hepatites B e C”, detalhou Paulo Basta, que
acrescentou que também serão realizados testes rápidos para dosagem dos níveis
de glicemia casual e hemoglobina das mulheres.
A pesquisa conta com o apoio de laboratórios de
instituições parceiras. As amostras de cabelo e de células da mucosa oral das
gestantes participantes serão analisadas no Laboratório de Pesquisa de Ciências
Farmacêuticas (LaPesF) do Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), aos
cuidados da Dra. Jamila Perini. Já as amostras de sangue, no Hospital Municipal
de Jacarecanga (PA) e de Itaituba (PA), “como parte de um fluxo de
encaminhamento de amostras que deverá ser incorporado à rotina das ações
desenvolvidas pelas EMSI no território”, explicou o pesquisador.
Fonte: Mongabay/Informe Ensp
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