terça-feira, 31 de outubro de 2023

Qualidade do ar no Cerrado está comprometida pelo excesso de agrotóxico

Respirar ar puro no Cerrado tem sido cada vez mais difícil. É o que indica um estudo recente, elaborado pelo Instituto Federal Goiano. A pesquisa constatou uma relação entre a morte de líquens e a exposição ao glifosato, um tipo de herbicida usado para impedir o crescimento de plantas espontâneas.

Os líquens são organismos formados por fungos e algas que se relacionam entre si. “Na prática, isso indica a má qualidade do ar. Em florestas tropicais, como é o nosso caso, a presença dos líquens indica boas condições atmosféricas. Por outro lado, a sua ausência indica que as condições do ar não estão adequadas”, resume Luciana Vitorino, doutora em Microbiologia, pesquisadora do Instituto Federal Goiano e uma das autoras do estudo.

As amostras analisadas foram recolhidas de uma Área de Preservação Permanente (APA) localizada no município de Caiapônia, distante 335 km de Goiânia, capital de Goiás. A APA está localizada dentro de uma propriedade privada de monocultivo de cana-de-açúcar em larga escala.

Foram recolhidos dos troncos das árvores líquens das espécies Parmotrema tinctorum e Usnea barbata (conhecida como  barba-de-velho). Essas amostras estavam no centro da APA, portanto, em tese, não haviam sofrido exposição direta  ao glifosato. Nas análises, porém, foi constatado que houve redução de células vivas e aumento de células mortas nos líquens barba-de-velho – ambos os resultados proporcionais ao tempo de exposição e à concentração do herbicida.

Segundo Luciana Vitorino, o interesse em realizar esse estudo mais aprofundado surgiu após ser encontrado cádmio, um dos metais pesados presentes no glifosato, em líquens localizados nas bordas de quatro Áreas de Preservação Permanente do município de Rio Verde, em Goiás. O levantamento feito em 2017 envolveu áreas de conservação localizadas em propriedades privadas de cultivo de commodities.

Em 2018, a preocupação dos pesquisadores aumentou. Foram encontrados líquens com metais pesados provenientes do glifosato também no Parque Nacional das Emas. Levando-se em conta que esse parque é uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, ou seja, com restrição de atividade econômica, deveria ser improvável encontrar resíduos de glifosato nestes organismos vivos.

Foi então que os pesquisadores suspeitaram de contaminação por efeito de deriva. Esse é o nome dado ao efeito que leva os agrotóxicos, por meio das águas subterrâneas e de correntes de ar, para outras áreas além do alvo da pulverização. A pulverização via aérea, a mais comum adotada em Goiás, favorece a dispersão desse agrotóxico.

“Esses estudos anteriores serviram para comprovar que havia contaminação de líquens em áreas de conservação. Já o estudo atual mostrou, de forma mais efetiva, como os líquens eram afetados”, explica Vitorino.

O município de Caiapônia foi escolhido por ser tratar de uma área bastante preservada. O ideal, detalha Luciana, era obter líquens que nunca haviam tido contato com o glifosato para observar bem a sua reação aos estímulos realizados nas análises in vitro.

A pesquisa também identificou que o glifosato compromete o processo de fotossíntese dos líquens. A fotossíntese é um processo essencial para a sobrevivência. É por meio dele que a luz solar é convertida em energia química, fornecendo alimento e oxigênio ao organismo. A figura acima mostra o resultado do teste de fluorescência.

Neste caso, a exposição dos líquens a uma luz específica mostra como está a saúde das algas que compõem os organismos, parte responsável pela fotossíntese. Observe que, na última fileira, as algas praticamente desaparecem. “Isso mostra que o glifosato compromete a capacidade de fotossíntese dos líquens”, esmiúça Luciana.

De acordo com Luciana Vitorino, a diferença entre os líquens e os outros bioindicadores está na sensibilidade e na resposta imediata. “Com esse estudo, não queremos dizer que outras espécies não estejam sendo atingidas [pelo glifosato], mas os líquens têm uma resposta mais rápida, algo que pode demorar a aparecer em outras espécies”, pondera. Ela observa que o estudo confirma a dispersão do produto para áreas de conservação e que a pulverização aérea tem um papel contundente nesse caso.

Dados do Ibama apontam que o glifosato é o agrotóxico mais vendido no Brasil, com quase 220 toneladas por ano. Apenas no estado de Goiás, onde está localizado o município de Caiapônia, local de onde as amostras foram extraídas, são comercializadas quase 20 toneladas anuais do produto, ainda segundo o Ibama. O glifosato é também o pesticida mais consumido no globo terrestre.

·         Cerrado: 70% do consumo de agrotóxicos no Brasil

Na avaliação do médico e doutor em Saúde Pública, Wanderlei Pignati, a chegada dos transgênicos foi determinante para que a quantidade de glifosato, assim como de outros agrotóxicos usados no Cerrado aumentasse de maneira exponencial. “Foi criado um tipo de soja resistente ao glifosato, a soja Roundup Ready, ou seja, o glifosato pode ser aplicado direto na soja. Ele mata as ervas espontâneas, mas não mata a soja”, explica. Além dela, outras espécies foram modificadas geneticamente para se tornarem resistentes a diversos outros tipos de agrotóxicos.

O Cerrado é responsável por 73,5% de todo o volume de agrotóxicos comercializados em todo Brasil. Esse alto volume de consumo deve-se ao fato de o bioma abrigar milhares de hectares de monocultivo de commodities, sendo, portanto, a maior fronteira agrícola do agronegócio brasileiro. Esse dado é revelado em um artigo publicado na revista “Desenvolvimento e Meio Ambiente”, da Universidade Federal Rural do Paraná (UFPR).

do Sul. Esses organismos são formados por fungos e algas, que interagem entre si, e apresentam resposta rápida sobre a má qualidade do ar. Foto: Fábio Júnio Santos Fonseca, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons

A má qualidade do ar não é a única consequência do excesso de uso de agrotóxicos que deve preocupar. Pesquisas apontam que tanto o glifosato quanto outras substâncias que vão na composição dos herbicidas são provavelmente cancerígenas.

Um exemplo é o produto Mata Mato, um herbicida que leva na sua composição, além do glifosato, polioxietileno amina (poea), nitroglifosato e formaldeído. “Enquanto o glifosato é provavelmente cancerígeno, as outras substâncias são comprovadamente cancerígenas”, explica Pignati.

Em 2015, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc), órgão ligado à Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou o glifosato como “provavelmente cancerígeno”. Um parecer técnico da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), lançado em 2019, cobra a proibição do registro de produtos à base de glifosato com base no provável potencial cancerígeno do produto.

O parecer defende que seja adotado o princípio da precaução, “critério basilar nos processos de avaliação de nocividades para a saúde humana e para o ambiente, indicando ser mister evitar a exposição diante de limitações e ou incertezas quanto aos perigos relacionados à exposição a determinados agentes”, diz um trecho da nota.

Pignati explica que a Resolução número 441 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) determina as quantidades nas quais essas substâncias podem ser administradas. O polioxietileno amina não pode exceder 20% da quantidade de produtos à base de glifosato; o nitrogenifosato, 0,001 grama por quilo de glifosato; e o formaldeído, 1 grama por quilo de glifosato. “Será que essas quantidades estão sendo respeitadas na produção do produto? É importante sabermos”, questiona Pignati.

·         O glifosato está com os dias contados?

Em dezembro deste ano, termina a licença para o uso do glifosato na produção de herbicidas na União Europeia. No último dia 13 de outubro, a Comissão Europeia decidiu prorrogar a licença do produto até 2033, porém, essa aprovação não alcançou o quorum de no mínimo 15 países, o que representa 66% dos membros suficientes para  validar a decisão. Com isso, a proposta será encaminhada ao Comitê de Apelação, que deve realizar a votação final na primeira quinzena de novembro.

Dentre os países integrantes, a Alemanha, local de origem do produto, já se posicionou contrária à renovação da licença. Áustria e Luxemburgo devem acompanhar o voto da Alemanhã, porém, Itália, Suécia e Portugal são favoráveis a extensão. Já Bélgica e Holanda anunciaram que devem se abster.

Na queda de braço, de um lado estão as empresas que temem pela perda dos lucros que somam cifras imensuráveis, que contam com países como o Brasil, um dos maiores consumidores do glifosato do mundo. Do outro, órgãos de pesquisa, médicos e ambientalistas que consideram as evidências sobre o potencial cancerígeno do produto mais do que suficiente para proibir seu uso. Havendo a proibição do glifosato, produtores brasileiros, caso queiram ter os seus produtos aceitos na União Europeia, teriam que encontrar uma solução ambientalmente sustentável para cultivá-los.

 

Ø  Pesquisa sobre contaminação de gestantes e bebês indígenas por mercúrio inicia coletas em quatro aldeias do povo Munduruku

 

A equipe do ‘Estudo Longitudinal de Gestantes e Recém-Nascidos Indígenas Expostos ao Mercúrio na Amazônia’, coordenado pelo pesquisador da ENSP/Fiocruz Paulo Basta, realizou seu primeiro trabalho de campo entre os dias 9 e 21 de outubro. Nas Terras Indígenas Munduruku e Sai Cinza, 25 gestantes indígenas foram entrevistadas e matriculadas na pesquisa que vai avaliar se elas estão sendo contaminadas pelo mercúrio resultante do garimpo ilegal e se, no caso de contaminação, haverá consequências para os bebês. A pesquisa está no âmbito do ‘Projeto Proteção de Povos Indígenas e Tradicionais do Brasil’, financiado pelo Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha por intermédio do WWF.

Composto por quatro médicos, uma farmacêutica, uma bióloga, uma psicóloga, um geógrafo e um técnico em logística, o grupo de pesquisadores visitou as aldeias Missão São Francisco, Sai Cinza, Katõ e Karapanatuba. A equipe contou com a participação de 19 profissionais de saúde, sendo 12 indígenas, que participaram do curso ‘Vigilância e monitoramento de populações expostas ao mercúrio no Brasil: aspectos práticos’.

A capacitação de profissionais de saúde de nível médio e de nível superior, incluindo enfermeiros, nutricionistas, psicólogos, técnicos de enfermagem e agentes indígenas de saúde, foi um dos preparativos para esta etapa da pesquisa. Realizado em março, o curso aprimorou ações já desenvolvidas pelas Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Rio Tapajós e possibilitou ainda a estruturação de um sistema de vigilância de base comunitária que irá acompanhar gestantes e recém-nascidos no âmbito da pesquisa. Para isso, foram doados equipamentos e insumos às EMSI que atuam nas aldeias abrangidas pelo estudo.

As 25 indígenas grávidas entrevistadas neste primeiro trabalho de campo representam 10% do total previsto para o acompanhamento nos próximos dois anos. O pesquisador Paulo Basta explicou que “a equipe de supervisão deverá realizar visitas trimestrais às comunidades incluídas no estudo para avaliar as gestantes e seus recém-nascidos, bem como para promover o aperfeiçoamento e manutenção do sistema de vigilância de base comunitária que foi instituído neste mês de outubro”. A próxima visita está agendada para o período de 4 a 16 de dezembro. Além de seguirem com as atividades nas quatro aldeias recém-visitadas no alto rio Tapajós, na próxima missão será iniciado o trabalho de entrevistas com as gestantes das aldeias Praia do Índio, Praia do Mangue, Laranjal e Sawré Myubu, localizadas na região do médio rio Tapajós.

Estão previstos quatro momentos de interação entre a equipe de pesquisadores e as gestantes participantes do estudo, um a cada trimestre da gestação e outro no momento do parto. A cada encontro, serão realizadas entrevistas sobre: a história obstétrica, condições clínicas pré-existentes, situação socioeconômica das famílias e alimentação, com destaque para o consumo de pescados, já que os peixes são considerados o principal veículo de exposição ao mercúrio.

“Além das entrevistas, serão aferidas medidas de peso e estatura da gestante e serão coletadas amostras de cabelo da gestante para avaliação da exposição pré-natal ao mercúrio, células da mucosa oral para avaliação de polimorfismos genéticos em enzimas responsáveis pela metabolização do mercúrio no corpo humanos, e amostras de sangue venoso para realização dos exames previstos no protocolo de atenção pré-natal do Ministério da Saúde, a saber: hemograma completo, tipagem sanguínea e fator Rh (quando for detectado fator Rh negativo, será realizado o teste de Coombs indireto) sorologia para sífilis, HIV, toxoplasmose, Hepatites B e C”, detalhou Paulo Basta, que acrescentou que também serão realizados testes rápidos para dosagem dos níveis de glicemia casual e hemoglobina das mulheres.

A pesquisa conta com o apoio de laboratórios de instituições parceiras. As amostras de cabelo e de células da mucosa oral das gestantes participantes serão analisadas no Laboratório de Pesquisa de Ciências Farmacêuticas (LaPesF) do Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), aos cuidados da Dra. Jamila Perini. Já as amostras de sangue, no Hospital Municipal de Jacarecanga (PA) e de Itaituba (PA), “como parte de um fluxo de encaminhamento de amostras que deverá ser incorporado à rotina das ações desenvolvidas pelas EMSI no território”, explicou o pesquisador.

 

Fonte: Mongabay/Informe Ensp

 

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