terça-feira, 31 de outubro de 2023

Estelionato sentimental: o drama das vítimas do estelionato do amor

Uma mãe solteira resolve entrar no Facebook, e logo recebe o convite de amizade de uma pessoa que não conhece pessoalmente. A relação se aprofunda, promessas de amor são feitas até que o suposto namorado pede dinheiro emprestado para conseguir enviar um presente de outro país, sumindo da rede social em seguida.

Essa é a história de Maria*, mas também de milhares de pessoas que caem no golpe conhecido como "romance scammer" ou estelionato sentimental virtual.

Nele, grupos de estelionatários fingem ser estrangeiros em altas posições, no caso mais comum, militares dos Estados Unidos. Após estabelecer o que seria um romance, o bandido começa a pedir dinheiro para as vítimas.

Este crime foca em mulheres entre 40 e 70 anos, independentemente de classe social ou se é casada, explica Glauce Lima, caçadora de golpistas e fundadora do Instituto GKScanOnline, de apoio a vítimas de crimes cibernéticos.

Ela começou a procurar os bandidos online após uma amiga ser vítima do golpe em 2011. Em 1 ano, ela conseguiu remover 1.600 perfis falsos de rede social e em 2013 conseguiu prender o golpista que roubou sua amiga, que vivia na Nigéria, junto da polícia local.

O relacionamento acontece inteiramente pela internet e, atualmente, até videochamadas são feitas, usando o deepfake, tecnologia que permite mostrar o rosto de uma pessoa em fotos ou vídeos alterados com ajuda de inteligência artificial (IA).

Além disso, há também um outro tipo de vítima: o dono real da foto usada por esses perfis, como o palestrante Kau Mascarenhas, que chega a receber mensagens nas suas redes o acusando de roubar dinheiro.

Existem três fatores que podem fazer uma pessoa ser vítima deste golpe, segundo especialistas entrevistados:

•        Paixão: deixa a pessoa em um estado similar ao hipnotismo;

•        Distúrbio psicológico: a eretomania, uma das formas de delírio, faz com que a pessoa acredite que alguém com grande diferença social irá se apaixonar por ela, mas existirá alguma conspiração que o parceiro precisa ser salvo;

•        Costume social: é considerado normal que a mulher entregue para o seu parceiro o controle de seu patrimônio.

>>> Conheça essas histórias a seguir.

•        O presente que nunca chegou

Para a produtora rural Maria, de 50 anos, tudo começou com uma simples solicitação de amizade no Facebook em 2016, ano em que também perdeu uma irmã e o pai.

Não demorou muito para o primeiro “eu te amo” ser trocado, seguido do pedido de dinheiro, que veio cerca de um mês após o início das conversas.

“Ele falava muita coisa bonita”, relata. “Fiquei desesperada e achei que era verdade. Porque a gente sem experiência de nada, a gente acredita, né”, diz.

O golpe foi aplicado em seu jeito clássico: o namorado afirmava que era um militar dos Estados Unidos, que estava em uma guerra e que precisava de dinheiro.

As fotos publicadas pelo golpista eram, na verdade, de Dragan Šutanovac, um político da Sérvia e ex-ministro da Defesa do país.

 “Sabe o que ele inventou? Que tinha uma tal de bagagem que eles mandam chegar primeiro [que o namorado], para a gente guardar a bagagem, mala de dinheiro, joias, documentos”, lembra. As joias seriam presentes para ela.

Segundo o golpista, a bagagem teria ficado presa na alfândega, sendo necessário pagar uma taxa. Quando Maria explicou que não tinha aeroporto em sua cidade para ir buscar, ele passou o número de uma conta bancária e disse que uns amigos levariam a mala até ela.

O valor exigido foi de R$ 12 mil. A produtora rural fez um empréstimo no banco ainda em 2016, que deve pagar até 2025.

Uma semana depois de enviar o comprovante de pagamento, Maria foi bloqueada pelo namorado. A mala nunca chegou.

Três meses depois, um perfil com a mesma foto, mas outro nome, voltou a mandar mensagem, solicitando mais dinheiro, mas ela afirma não ter enviado.

Maria diz que, até hoje, perfis semelhantes mandam mensagens para ela e ainda fazem chantagem emocional. “Ele volta e pergunta para mim: ‘O que está acontecendo que você não responde para mim? Você não me ama mais?’”, narra.

A produtora rural confessa que estava apaixonada, mas parte do sentimento, hoje, foi transferida para o dono real da foto e tem o sonho de um dia encontrá-lo.

Isso acontece com as vítimas desse tipo de golpe, porque elas projetam um apego às imagens, em relação às conversas carinhosas que tiveram, como se, de alguma forma, o sentimento pudesse ser verdadeiro, explica Desiree Hamuche Montes fundadora da iniciativa de apoio a vítimas “Era Golpe, Não Amor".

Desde que começou a ser abordada pelos bandidos, Maria não conseguiu se relacionar com outras pessoas. Ela foi diagnosticada com depressão e ansiedade e toma medicamento.

•        Depressão profunda

Assim como Maria, 17% das vítimas desistem dos sites de relacionamento e 12% desistem completamente de procurar alguém, aponta pesquisa obtida exclusivamente pelo g1 da organização “Era Golpe, Não Amor", uma hub sem fins lucrativos para suporte a mulheres vítimas de golpes financeiros em relacionamentos amorosos.

A iniciativa é da agência de comunicação Fresh PR, com parceria da empresa Hibou, especializada em pesquisa e insights de mercado, da Associação Brasileira de EMDR (nome da terapia que usa uma estimulação dupla para ajudar os pacientes a processarem memórias difíceis) e Kickante, com apoio do Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência (NAVV) do Ministério Público de São Paulo.

Foram entrevistadas 2.036 mulheres de todo o país, considerando a divisão proporcional de raça, idade e classe social, por meio de formulários virtuais em março de 2023. O estudo apresenta 2,2% de margem de erro e 95% de intervalo de confiança.

Além de perderem dinheiro e propriedades, 14% das vítimas de "romance scammer" entram em depressão, diz o estudo.

Depois que a agricultora entendeu que tinha caído em um golpe, descobriu em março de 2022 que uma colega de sua cidade estava sendo vítima do mesmo perfil. Ela tentou alertar a amiga, que não acreditou.

O bandido chegou a pedir para a amiga pagar dívidas de R$ 40 mil. Ela fez um empréstimo e enviou o valor. Quando o golpista também passou a ignorar, ela percebeu que era um golpe.

“E aí essa menina ficou tão desesperada, já se afundou em depressão”. A vítima cometeu suicídio em julho de 2022.

Apenas 12% das vítimas procuram ajuda psicológica após sofrer um golpe de relacionamento na internet, aponta a pesquisa.

•        'Não tem como suspeitar que é golpe'

Isabela*, de 54 anos, é casada, mas foi vítima pelo mesmo grupo de bandidos há cerca de 4 anos e enfrenta depressão até hoje por causa do golpe. Eles também usavam fotos de Šutanovac.

O falso militar se aproximou dela dizendo que estava arrecadando fundos para auxiliar militares americanos em guerra. Também tentou aplicar o golpe da mala, solicitando R$ 5 mil, que Isabela não tinha.

Mesmo após ela negar, os bandidos não desistiram dela e a relação foi avançando até o bandido enviar fotos nuas e fazer chamadas de vídeo. Para Isabela, os vídeos pareciam reais e ela acredita que o homem da foto é o mesmo com quem conversava.

Ele chegou a dizer que queria que ela largasse a família para ficarem juntos. Apesar de negar que iria fazer isso, Isabela chegou a vender um terreno que herdou da mãe. A propriedade era avaliada em R$ 50 mil, mas ela aceitou vender por R$ 20 mil por causa da pressa.

Quando foi depositar o dinheiro na conta do bandido, seu gerente a impediu. Até hoje, seu marido não sabe que ela vendeu o terreno.

"Olha, eu cheguei a me apaixonar por ele. [...] A gente é carente, uma fase difícil. E, de repente, aparece uma pessoa diferente, que você não tem como suspeitar que é isso, porque é uma pessoa que se veste bem, se arruma bem, fala bem. Ele me ligava em vídeo e mostrava a cara dele", explica.

•        Segunda vítima: dono da foto

“Eu fiquei tão assustado com isso”, diz o palestrante e terapeuta Kau Mascarenhas. Ele descobriu que sua foto estava sendo usada em golpes como os sofridos por Isabela e Maria em agosto de 2020, quando uma vítima achou o seu perfil verdadeiro e o avisou.

“Aquilo bagunçou a minha cabeça, eu nem sabia que aquilo existia”, conta.

Mascarenhas tem um fator que ajuda muito os golpistas: por ser palestrante, existe muito material dele online, como fotos e vídeos. Assim, é possível fazer montagens para as vítimas acreditarem que estão falando com ele até por videochamada.

Hoje, ele usa uma técnica para minimizar isso: escreve seu nome em letras pequenas no canto da foto. Quando as mulheres dão zoom, descobrem que o perfil com quem estão conversando é falso. Ele também evita publicar fotos de sua vida pessoal.

“Até mesmo porque uma foto que é muito usada pelos bandidos é uma em que eu estou com a minha mãe”, diz. Os chamados scammers usam a foto para pedir dinheiro para tratar a suposta mãe doente.

Ele também decidiu fazer um boletim de ocorrência, para denunciar o uso indevido de sua imagem, mas foi informado na delegacia que havia pouco que poderia ser feito, por ser um crime de escala internacional.

O terapeuta lida diariamente com mensagens de vítimas, que normalmente são estrangeiras:

“Algumas não acreditavam que eu também era uma vítima, que eu tive as minhas fotos e vídeos roubados. Aí elas escreviam mensagens muito agressivas dizendo: 'Você é um perverso, você é um assassino, você é um bandido, como você pode fazer isso comigo e o dinheiro que eu te dei? Me devolva'”.

Há também as vítimas, assim como Maria, que transferem o amor para o rosto dele.

“Eu ficava conversando demais com as vítimas. Elas me escreviam, narravam as suas histórias tristes. Era muito difícil ignorar a dor dessas pessoas. Então, eu começava a responder aquelas mensagens”, diz Kau.

“Mas elas estavam com a minha imagem associada ao romance que elas idealizaram, um romance com uma pessoa que não sou eu”, completa.

Ele foi alertado pelos grupos de apoio de que isso, na verdade, prejudicava o processo de superação pelas vítimas e hoje apenas dá orientações sobre onde elas podem conseguir ajuda.

*Os nomes Maria e Isabela são fictícios, para proteger as vítimas.

 

Fonte: g1

 

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