Estelionato sentimental: o drama das vítimas do estelionato do amor
Uma mãe solteira resolve entrar no Facebook, e logo
recebe o convite de amizade de uma pessoa que não conhece pessoalmente. A
relação se aprofunda, promessas de amor são feitas até que o suposto namorado
pede dinheiro emprestado para conseguir enviar um presente de outro país,
sumindo da rede social em seguida.
Essa é a história de Maria*, mas também de milhares
de pessoas que caem no golpe conhecido como "romance scammer" ou
estelionato sentimental virtual.
Nele, grupos de estelionatários fingem ser
estrangeiros em altas posições, no caso mais comum, militares dos Estados
Unidos. Após estabelecer o que seria um romance, o bandido começa a pedir
dinheiro para as vítimas.
Este crime foca em mulheres entre 40 e 70 anos,
independentemente de classe social ou se é casada, explica Glauce Lima,
caçadora de golpistas e fundadora do Instituto GKScanOnline, de apoio a vítimas
de crimes cibernéticos.
Ela começou a procurar os bandidos online após uma
amiga ser vítima do golpe em 2011. Em 1 ano, ela conseguiu remover 1.600 perfis
falsos de rede social e em 2013 conseguiu prender o golpista que roubou sua
amiga, que vivia na Nigéria, junto da polícia local.
O relacionamento acontece inteiramente pela
internet e, atualmente, até videochamadas são feitas, usando o deepfake,
tecnologia que permite mostrar o rosto de uma pessoa em fotos ou vídeos
alterados com ajuda de inteligência artificial (IA).
Além disso, há também um outro tipo de vítima: o
dono real da foto usada por esses perfis, como o palestrante Kau Mascarenhas,
que chega a receber mensagens nas suas redes o acusando de roubar dinheiro.
Existem três fatores que podem fazer uma pessoa ser
vítima deste golpe, segundo especialistas entrevistados:
• Paixão:
deixa a pessoa em um estado similar ao hipnotismo;
• Distúrbio
psicológico: a eretomania, uma das formas de delírio, faz com que a pessoa
acredite que alguém com grande diferença social irá se apaixonar por ela, mas
existirá alguma conspiração que o parceiro precisa ser salvo;
• Costume
social: é considerado normal que a mulher entregue para o seu parceiro o
controle de seu patrimônio.
>>> Conheça essas histórias a seguir.
• O
presente que nunca chegou
Para a produtora rural Maria, de 50 anos, tudo
começou com uma simples solicitação de amizade no Facebook em 2016, ano em que
também perdeu uma irmã e o pai.
Não demorou muito para o primeiro “eu te amo” ser
trocado, seguido do pedido de dinheiro, que veio cerca de um mês após o início
das conversas.
“Ele falava muita coisa bonita”, relata. “Fiquei
desesperada e achei que era verdade. Porque a gente sem experiência de nada, a
gente acredita, né”, diz.
O golpe foi aplicado em seu jeito clássico: o
namorado afirmava que era um militar dos Estados Unidos, que estava em uma
guerra e que precisava de dinheiro.
As fotos publicadas pelo golpista eram, na verdade,
de Dragan Šutanovac, um político da Sérvia e ex-ministro da Defesa do país.
“Sabe o que
ele inventou? Que tinha uma tal de bagagem que eles mandam chegar primeiro [que
o namorado], para a gente guardar a bagagem, mala de dinheiro, joias,
documentos”, lembra. As joias seriam presentes para ela.
Segundo o golpista, a bagagem teria ficado presa na
alfândega, sendo necessário pagar uma taxa. Quando Maria explicou que não tinha
aeroporto em sua cidade para ir buscar, ele passou o número de uma conta
bancária e disse que uns amigos levariam a mala até ela.
O valor exigido foi de R$ 12 mil. A produtora rural
fez um empréstimo no banco ainda em 2016, que deve pagar até 2025.
Uma semana depois de enviar o comprovante de
pagamento, Maria foi bloqueada pelo namorado. A mala nunca chegou.
Três meses depois, um perfil com a mesma foto, mas
outro nome, voltou a mandar mensagem, solicitando mais dinheiro, mas ela afirma
não ter enviado.
Maria diz que, até hoje, perfis semelhantes mandam
mensagens para ela e ainda fazem chantagem emocional. “Ele volta e pergunta
para mim: ‘O que está acontecendo que você não responde para mim? Você não me
ama mais?’”, narra.
A produtora rural confessa que estava apaixonada,
mas parte do sentimento, hoje, foi transferida para o dono real da foto e tem o
sonho de um dia encontrá-lo.
Isso acontece com as vítimas desse tipo de golpe,
porque elas projetam um apego às imagens, em relação às conversas carinhosas
que tiveram, como se, de alguma forma, o sentimento pudesse ser verdadeiro,
explica Desiree Hamuche Montes fundadora da iniciativa de apoio a vítimas “Era
Golpe, Não Amor".
Desde que começou a ser abordada pelos bandidos,
Maria não conseguiu se relacionar com outras pessoas. Ela foi diagnosticada com
depressão e ansiedade e toma medicamento.
• Depressão
profunda
Assim como Maria, 17% das vítimas desistem dos
sites de relacionamento e 12% desistem completamente de procurar alguém, aponta
pesquisa obtida exclusivamente pelo g1 da organização “Era Golpe, Não
Amor", uma hub sem fins lucrativos para suporte a mulheres vítimas de
golpes financeiros em relacionamentos amorosos.
A iniciativa é da agência de comunicação Fresh PR,
com parceria da empresa Hibou, especializada em pesquisa e insights de mercado,
da Associação Brasileira de EMDR (nome da terapia que usa uma estimulação dupla
para ajudar os pacientes a processarem memórias difíceis) e Kickante, com apoio
do Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência (NAVV) do Ministério Público
de São Paulo.
Foram entrevistadas 2.036 mulheres de todo o país,
considerando a divisão proporcional de raça, idade e classe social, por meio de
formulários virtuais em março de 2023. O estudo apresenta 2,2% de margem de
erro e 95% de intervalo de confiança.
Além de perderem dinheiro e propriedades, 14% das
vítimas de "romance scammer" entram em depressão, diz o estudo.
Depois que a agricultora entendeu que tinha caído
em um golpe, descobriu em março de 2022 que uma colega de sua cidade estava
sendo vítima do mesmo perfil. Ela tentou alertar a amiga, que não acreditou.
O bandido chegou a pedir para a amiga pagar dívidas
de R$ 40 mil. Ela fez um empréstimo e enviou o valor. Quando o golpista também
passou a ignorar, ela percebeu que era um golpe.
“E aí essa menina ficou tão desesperada, já se
afundou em depressão”. A vítima cometeu suicídio em julho de 2022.
Apenas 12% das vítimas procuram ajuda psicológica
após sofrer um golpe de relacionamento na internet, aponta a pesquisa.
• 'Não
tem como suspeitar que é golpe'
Isabela*, de 54 anos, é casada, mas foi vítima pelo
mesmo grupo de bandidos há cerca de 4 anos e enfrenta depressão até hoje por
causa do golpe. Eles também usavam fotos de Šutanovac.
O falso militar se aproximou dela dizendo que
estava arrecadando fundos para auxiliar militares americanos em guerra. Também
tentou aplicar o golpe da mala, solicitando R$ 5 mil, que Isabela não tinha.
Mesmo após ela negar, os bandidos não desistiram
dela e a relação foi avançando até o bandido enviar fotos nuas e fazer chamadas
de vídeo. Para Isabela, os vídeos pareciam reais e ela acredita que o homem da
foto é o mesmo com quem conversava.
Ele chegou a dizer que queria que ela largasse a
família para ficarem juntos. Apesar de negar que iria fazer isso, Isabela
chegou a vender um terreno que herdou da mãe. A propriedade era avaliada em R$
50 mil, mas ela aceitou vender por R$ 20 mil por causa da pressa.
Quando foi depositar o dinheiro na conta do
bandido, seu gerente a impediu. Até hoje, seu marido não sabe que ela vendeu o
terreno.
"Olha, eu cheguei a me apaixonar por ele.
[...] A gente é carente, uma fase difícil. E, de repente, aparece uma pessoa
diferente, que você não tem como suspeitar que é isso, porque é uma pessoa que
se veste bem, se arruma bem, fala bem. Ele me ligava em vídeo e mostrava a cara
dele", explica.
• Segunda
vítima: dono da foto
“Eu fiquei tão assustado com isso”, diz o palestrante
e terapeuta Kau Mascarenhas. Ele descobriu que sua foto estava sendo usada em
golpes como os sofridos por Isabela e Maria em agosto de 2020, quando uma
vítima achou o seu perfil verdadeiro e o avisou.
“Aquilo bagunçou a minha cabeça, eu nem sabia que
aquilo existia”, conta.
Mascarenhas tem um fator que ajuda muito os
golpistas: por ser palestrante, existe muito material dele online, como fotos e
vídeos. Assim, é possível fazer montagens para as vítimas acreditarem que estão
falando com ele até por videochamada.
Hoje, ele usa uma técnica para minimizar isso:
escreve seu nome em letras pequenas no canto da foto. Quando as mulheres dão
zoom, descobrem que o perfil com quem estão conversando é falso. Ele também
evita publicar fotos de sua vida pessoal.
“Até mesmo porque uma foto que é muito usada pelos
bandidos é uma em que eu estou com a minha mãe”, diz. Os chamados scammers usam
a foto para pedir dinheiro para tratar a suposta mãe doente.
Ele também decidiu fazer um boletim de ocorrência,
para denunciar o uso indevido de sua imagem, mas foi informado na delegacia que
havia pouco que poderia ser feito, por ser um crime de escala internacional.
O terapeuta lida diariamente com mensagens de
vítimas, que normalmente são estrangeiras:
“Algumas não acreditavam que eu também era uma
vítima, que eu tive as minhas fotos e vídeos roubados. Aí elas escreviam
mensagens muito agressivas dizendo: 'Você é um perverso, você é um assassino,
você é um bandido, como você pode fazer isso comigo e o dinheiro que eu te dei?
Me devolva'”.
Há também as vítimas, assim como Maria, que
transferem o amor para o rosto dele.
“Eu ficava conversando demais com as vítimas. Elas
me escreviam, narravam as suas histórias tristes. Era muito difícil ignorar a
dor dessas pessoas. Então, eu começava a responder aquelas mensagens”, diz Kau.
“Mas elas estavam com a minha imagem associada ao
romance que elas idealizaram, um romance com uma pessoa que não sou eu”,
completa.
Ele foi alertado pelos grupos de apoio de que isso,
na verdade, prejudicava o processo de superação pelas vítimas e hoje apenas dá
orientações sobre onde elas podem conseguir ajuda.
*Os nomes Maria e Isabela são fictícios, para
proteger as vítimas.
Fonte: g1
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