“Produzimos as desigualdades que condenamos”, diz socióloga
A pretensão da sociologia clássica de incluir a
experiência dos indivíduos no funcionamento do sistema estava exposta a que o
peso deste a esmagasse ou demonstrasse que o sujeito nunca escapa do sistema,
para o bem e para o mal. Há anos, o sociólogo francês François Dubet, ex-diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales de
Paris, interessa-se pela forma como as pessoas vivenciam as desigualdades sociais e os seus sentimentos
de injustiça.
Dubet acredita que esta experiência não é um simples reflexo das
desigualdades “objetivas”, mas que tem um impacto direto nos movimentos sociais e na vida política. Em seu último
livro, El nuevo régimen de las
desigualdades solitarias. Qué hacer cuando la injusticia social se sufre como
un problema individual (Siglo
XXI), tenta oferecer uma visão global das transformações das desigualdades, que mudam profundamente
conforme saímos da sociedade industrial.
A questão central do texto gira em torno do modo
como as novas experiências de
desigualdade podem se expressar politicamente, em uma sociedade
democrática, no momento populista e autoritário que
atravessamos. Mais uma vez, e em um texto mais duro que os anteriores, Dubet retorna às suas
preocupações sociológicas.
>>> Eis a
entrevista.
·
Qual é a razão da mutação
social básica (a transformação do regime de desigualdades) que você descreve no
livro?
Na França, Europa Ocidental e América do Norte, a
causa fundamental da mudança nas
desigualdades é o surgimento, a partir da sociedade industrial, de um sistema de classes sociais que
opõe a classe operária às burguesias nacionais. O mundo do trabalho se transformou
profundamente, o capitalismo
nacional se globalizou e o consumo de massa substituiu as barreiras de classe por uma
infinidade de níveis que distinguem os indivíduos.
Para além das mudanças no capitalismo, a própria
imagem do que costumávamos chamar de sociedade está mudando, porque as sociedades industriais costumavam
ver a si mesmas como sociedades
nacionais, mais ou menos homogêneas, com um Estado soberano. No entanto, hoje, vivemos em sociedades multiculturais, com
múltiplas identidades, o que dá lugar a profundos sentimentos de crise e
conflitos que já não são verdadeiramente conflitos de classe.
·
Por que tendemos às
assimetrias?
Em geral, estamos muito apegados à igualdade. Contudo, no capitalismo atual, geralmente
competimos e preferimos as desigualdades,
não em nossas ideias, mas em nossas práticas. Esta preferência pela desigualdade é especialmente
visível no campo da educação.
Na medida em que sabemos que o desempenho escolar de nossos filhos é decisivo
para o seu futuro social, todas as famílias que podem pagar, escolhem a melhor
escola, a melhor formação, aulas particulares... Preferem as desigualdades, mesmo que isso
signifique condenar as desigualdades
sociais em geral.
Esta contradição se manifesta em todas as esferas
da vida, da moradia e as atividades de lazer às amizades. Assim, produzimos desigualdades que também
condenamos. Enquanto na sociedade
de classes a redução
das desigualdades era considerada um projeto coletivo, no novo sistema de desigualdades, cada
pessoa precisa lutar por sua própria igualdade, mesmo que isso signifique aumentar a desigualdade dos
outros. Reduzir esta contradição é um desafio político essencial.
·
Por que a justiça social
é encarada como um problema individual?
No sistema
de classes sociais, todas as desigualdades convergem em torno do trabalho: determina a renda, o estilo
de vida, a cultura, o voto, a escolaridade, a religião etc. A classe social é a consciência de classe e uma identidade coletiva.
Hoje, cada um de nós se percebe como igual ou
desigual em uma infinidade de dimensões. Somos mais ou menos iguais ou
desiguais de acordo com o nosso trabalho, claro, mas também de acordo com o
nosso sexo, sexualidade, saúde, idade, local de residência, origens...
Então, cada um de nós se sente desigual de uma
forma singular. Dizemos que “nós” somos desiguais, menos que “eu” sou desigual.
Nas palavras dos sociólogos, somos todos “interseccionais” e cada um de nós
pode se sentir discriminado, invisível ou desvalorizado.
·
Até que ponto é possível
atribuir a culpa ao crescimento indefinido e à concentração de riqueza?
A concentração
da riqueza é um problema social e econômico fundamental. Esta
riqueza não é apenas um escândalo moral, os muito ricos escapam do controle
governamental, dos impostos e manipulam a opinião pública controlando certos
meios de comunicação. No entanto, a sociedade não confronta o 1% ou o 0,1% mais
rico com o restante de nós. As desigualdades que
importam para os indivíduos são as desigualdades
“menores”, aquelas que estão mais próximas de casa.
As próprias classes médias são muito desiguais e também existem grandes
desigualdades entre os trabalhadores
qualificados e os pobres e desempregados. Portanto, é preciso
lutar contra as grandes riquezas,
mas não parar aí. Para conseguir uma autêntica redistribuição social da riqueza, não basta fazer os
muito ricos pagarem. Os 10% ou 20% mais ricos também devem contribuir para a
redistribuição. E é aí que começam as dificuldades, porque a igualdade social envolve muitos
outros sacrifícios. É necessário fazer os muito ricos pagarem, mas a demagogia
consiste em dizer que isto seria o suficiente.
·
Você fala dos sentimentos
gerados por um mundo desigual. O futuro se vê cada vez pior. Qual é o ideal de
sociedade hoje? Como alcançar uma sociedade melhor e igualitária? Ou de agora
em diante devemos só pensar que tudo que é bom ou melhor é utopia?
As sociedades
industriais deram origem a utopias otimistas: a confiança
no progresso, o comunismo,
o socialismo social-democrata.
Hoje, essas utopias estão mortas. A confiança no progresso enfrenta a crise climática. O comunismo foi
um totalitarismo economicamente
ineficaz, e a maioria das antigas sociedades comunistas tem regimes autoritários. As social-democracias que reduziram
muito as desigualdades vão mal. No entanto, o desejo de igualdade continua sendo forte
como sempre, ainda que já não tenhamos uma utopia igualitária.
Ainda que sejam menos ambiciosas do que as utopias,
é preciso construir políticas
igualitárias para reforçar a igualdade entre grupos sociais, entre
maiorias e minorias, entre sexos... É difícil, porque sem um forte crescimento
– e sob a ameaça ecológica –,
o chamado à solidariedade é
um chamado aos sacrifícios: é preciso distribuir a riqueza, consumir menos e de uma
forma diferente.
Contudo, é uma questão essencial e vejo poucas
soluções além do fortalecimento da
democracia, o reforço dos sindicatos e das associações de cidadãos.
Devemos também lembrar que as sociedades relativamente igualitárias são
melhores: são menos violentas, possuem uma saúde melhor, a tolerância é
maior... Todos nós ganhamos com maior igualdade.
·
Se transformamos o
sofrimento, as indignações e as raivas em movimentos políticos e sociais, por
que não podemos fazer o mesmo com os sentimentos positivos?
São tempos de raiva. Os eleitores de Trump e de Bolsonaro estão com raiva, os
britânicos que votaram pelo Brexit estão
com raiva, os franceses que se manifestam estão com raiva, os argentinos que
apoiam Javier Milei estão com raiva... Mas estas raivas não são
suportadas pelos movimentos sociais
organizados e reivindicativos. Não são “racionalizadas”, nem
“esfriadas” pelos atores políticos.
É necessário lembrar, no entanto, que a democracia é um processo em que a
raiva se torna parte de um sistema
político. Caso contrário, a única coisa que se interpõe entre a raiva e
o poder é a demagogia. Deste ponto de vista, a crise atual não é apenas
econômica e social, é também, e talvez acima de tudo, democrática e política.
Os sindicatos e
os partidos políticos devem
ser a expressão da cólera, mas de uma cólera “negociável” e “discutível”. É
necessário almejar que tenham sucesso, como os sindicatos americanos da indústria do automóvel, como os sindicatos
franceses mobilizados contra a reforma das pensões e, mais além,
pela igualdade de gênero e
contra a discriminação.
Contudo, é um trabalho que deve ser feito passo a passo, para transmitir a cólera,
mas também para resisti-la.
·
Podemos construir outros
mecanismos e outros imaginários de solidariedade?
Solidariedade significa aceitar fazer sacrifícios por pessoas que você não
conhece, mas com as quais sente um vínculo. Nas sociedades industriais modernas, este sentido de solidariedade se apoia em dois
pilares. O primeiro é o que Durkheim chamou de divisão do trabalho: todos os trabalhadores dependem uns dos
outros e, portanto, são solidários entre si, e a sociedade deve lhes devolver
parte da riqueza que produzem. A solidariedade deriva das relações de classe. O segundo
pilar é a nação, o vínculo
imaginário com os semelhantes, um vínculo que envolve sacrifícios
através da guerra.
Hoje, com as mutações do capitalismo e das nações, estes dois tipos de vínculo
estão muito fragilizados. Contudo, não vejo por que deveriam desaparecer.
O trabalho continua
sendo essencial e não há razão para degradá-lo e precarizá-lo. Da mesma forma,
o imaginário nacional deve
ser redefinido, sobretudo para que os migrantes encontrem o seu lugar nele.
Por último, parece-me que podemos desenvolver uma solidariedade prática e local, baseada
nos direitos das pessoas e nos problemas comuns. Sem solidariedade, o chamado à igualdade é uma quimera. Vemos
que esta questão é atualmente uma guerra ideológica entre os partidários de
uma solidariedade restritiva,
contra os estrangeiros,
os imigrantes, os pobres, e os partidários de uma solidariedade inclusiva, aberta ao
mundo e generosa.
·
No texto, você fala da
França e diz que os eleitores de esquerda não só parecem estar diminuindo, como
também que a esquerda mobiliza mais as camadas urbanas e os vencedores da
meritocracia. Ao mesmo tempo, os perdedores se sentem desprezados e esquecidos.
Podemos dizer o mesmo da Argentina, neste momento? A esquerda já era?
Quando as sociedades se tornam cada vez mais
meritocráticas e valorizam a igualdade
de oportunidades, mesmo que isso signifique não alcançá-la, conferem às
escolas um monopólio virtual no momento de classificar os indivíduos e definir
seus méritos. Os melhores graduados conseguem os melhores empregos e os demais,
os piores. Embora este sistema reproduza as desigualdades sociais, muda o seu significado. Coloca os
vencedores, que “merecem” o seu êxito, contra os perdedores, que “merecem” o
seu fracasso.
Os derrotados se sentem humilhados e desprezados e
deixam de votar ou votam em partidos de extrema direita que se
opõem às “elites” que votam em partidos
social-liberais e ambientalistas. Deste ponto de vista, a frente
política que confronta a direita e
a esquerda se inverteu
completamente. Vale dizer que para recuperar um eleitorado popular, a esquerda deve se desprender de
sua crença na meritocracia.
O mesmo está acontecendo na maioria dos
antigos países industriais.
Não conheço a política argentina o suficiente para saber o que acontece aí, mas
tenho a impressão de que a longa decomposição do peronismo não está alheia a este processo.
·
Por que o modelo de igualdade
de oportunidades meritocráticas tende a se impor como a concepção central da
justiça social?
Nas sociedades
industriais europeias, o movimento
operário defendeu a igualdade
de lugar: a justiça social visa
reduzir as desigualdades entre
as posições sociais. Contudo, quando as injustiças se individualizam, o sentido
da justiça social muda.
Dado que todos têm direito a ter acesso a todas as posições sociais, a justiça
consiste antes de tudo em lutar
contra as discriminações: racismo, machismo, obstáculos ao êxito.
A sociedade justa não é mais a da igualdade de oportunidades, mas a do
acesso equitativo a posições desiguais. A luta contra a discriminação substituiu a luta pela igualdade social. Nem é
preciso dizer que a igualdade de oportunidades é um princípio indiscutível de
justiça e que estas lutas são legítimas.
No entanto, é preciso lembrar que a ausência
de discriminação pode
justificar grandes desigualdades, se a concorrência é percebida como leal. É o
caso dos Estados Unidos, onde as desigualdades são
mais bem toleradas porque as pessoas acreditam mais na igualdade de oportunidades.
Em segundo lugar, aqueles que não são
discriminados, mas são pobres e vivem mal, sentem-se vítimas da injustiça e,
muitas vezes, deslocam-se para a extrema
direita. Por último, deve-se lembrar que as sociedades socialmente
igualitárias discriminam menos que outras.
·
O fato de os movimentos
feministas e decoloniais levantarem uma questão que acreditávamos ser antiga,
fala-nos de um renascimento ou de novas e diferentes formas de sobrevivência?
Estes movimentos levantam velhas questões sobre
as sociedades de castas e
a supremacia do homem branco.
No entanto, estas velhas questões são novas na medida em que, nas palavras
de Tocqueville, manifestam
o triunfo da igualdade.
Embora as mulheres continuem sofrendo desigualdades em relação aos
homens, nunca foram tão iguais como agora: estudam mais que os homens, têm
acesso a profissões masculinas, têm mais liberdade pessoal... É porque se
sentem mais iguais – sentem que as desigualdades são insuportáveis – e os
homens, muitas vezes, se sentem ameaçados. Trata-se de uma autêntica revolução.
Da mesma forma, é evidente que a discriminação racial existe. Mas,
ao mesmo tempo, o racismo está se tornando uma opinião ilegítima e as
sociedades são cada vez mais multirraciais. O relativo triunfo da igualdade também
ameaça os homens brancos.
Esses novos movimentos que levantam velhas questões
são revoluções antropológicas,
basta voltar algumas décadas para se dar conta. Contudo, as desigualdades sexuais e raciais não
são todas as desigualdades. Muitos homens brancos estão dominados e esmagados
pela desigualdade. Temos
que ser sensíveis à complexidade da vida social.
·
Por que diz que o
conceito de “classes sociais” se tornou muito “frouxo”?
A tradição sociológica distinguia entre classes e
estratos ou camadas sociais. Neste contexto, as classes não eram apenas grupos
desiguais. Referiam-se a grupos com uma identidade e uma consciência comuns,
com um sentimento de oposição às classes dominantes. Uma classe era um ator
coletivo como a classe operária ou
a burguesia. Todos nós
éramos mais ou menos marxistas.
Hoje, a noção de classe se afrouxou porque se
refere simplesmente às desigualdades
sociais e econômicas. Então, falamos de classes trabalhadoras, classes médias e classes
altas, utilizando categorias estatísticas em vez de grupos reais. A
situação atual se caracteriza pelo fato de as classes sociais serem menos sólidas, enquanto as desigualdades continuam
aumentando.
·
Você diz que o mundo
social é ameaçador. Por acaso, não foi sempre assim?
São tempos difíceis, mas isso não é nada novo.
Parece-me que a grande notícia de hoje é a crise ecológica e climática, que ameaça a própria sobrevivência da
humanidade. Soma-se às crises
econômicas, sociais e
militares “clássicas”. Esta ameaça
ecológica nos obriga a olhar para além das fronteiras nacionais, uma vez que a poluição não
conhece fronteiras. E mais, esta ameaça exigirá que muitos de nós façamos
sacrifícios em termos de consumo e estilo de vida.
A boa notícia é que muitas pessoas se sentem
moralmente responsáveis pela situação do mundo, estão mudando seu modo de vida,
solidarizam-se com os migrantes e
defendem o direito dos indivíduos à sua própria singularidade. Estas aspirações
devem ser incorporadas em forças políticas e sociais. É claro, as forças contra
as quais lutam – nacionalismo, autoritarismo, crença nas fake news e conspirações – não são pouca coisa. Ainda
assim, o pior não é necessário e a esperança é
uma virtude.
Fonte: Entrevista com François Dubet, para Bibiana
Ruiz, em Clarín-Revista - tradução do
Cepat, para IHU
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