Metade de todo crescimento do Brasil fica com os 5% mais ricos, diz
autor de livro sobre desigualdade
Que o Brasil é extremamente desigual não é novidade
para ninguém. Mas como exatamente essa desigualdade se distribui na sociedade?
E o que isso significa para traçar melhores estratégias de distribuição de
renda e redução da pobreza?
Essas são algumas das questões centrais do livro
“Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualdade” (Companhia das Letras), nova
obra do sociólogo Marcelo Medeiros, pesquisador no Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) que há décadas estuda o tema e atualmente é professor
visitante na Universidade Columbia, em Nova York.
Ao tentar explicar quem, afinal, são os ricos e os
pobres brasileiros, Medeiros constata que o Brasil é formada por uma grande
massa de pessoas de baixa renda, que compõe cerca de 80% da população.
Dentro desse grupo, descreve o sociólogo, a
desigualdade é relativamente pequena. Há, claro, diferenças de renda dentro
dessa massa, mas numa proporção muitíssimo menor do que a desigualdade que se
vê no topo da pirâmide.
Para se ter uma ideia, analisando a distribuição de
renda em valores de 2021, o livro destaca que metade dos adultos brasileiros
não ganha mais de R$ 14 mil ao ano (menos de R$ 1.200 na média mensal).
Mesmo entre os “mais ricos” dentro dos 80% mais
pobres o ganho anual não supera R$ 31 mil (cerca de R$ 2.600 na média mensal).
Isso significa que quatro quintos da população adulta ganham menos que a média
de um adulto brasileiro (cerca de R$ 33 mil ao ano).
Isso acontece porque o topo da pirâmide tem renda
tão mais alta que puxa a média da renda para muita acima do que a maioria ganha
de fato.
No caso do grupo dos 10% mais ricos, a renda não
começa tão elevada. Os “mais pobres” desse grupo ganham em torno de R$ 50 mil
por ano. Isso equivale ao salário aproximado de R$ 3.800 mensais de um
trabalhador formal, que recebe décimo terceiro e adicional de férias, ressalta
o autor.
A partir daí, porém, os patamares de renda começam
a crescer num ritmo super acelerado, constata o livro. O 1% mais rico, por
exemplo, é um grupo de pouco mais de 1,5 milhão de pessoas que ganham, no
mínimo, R$ 340 mil por ano – quase sete vezes mais que aqueles que estão no
começo dos 10% mais ricos. Mas as rendas do topo desse grupo vão muito além,
enfatiza o autor.
“A maior parte da desigualdade do Brasil está nos
10% mais ricos. Eles são um grupo terrivelmente desigual”, resumiu, em
entrevista à BBC News Brasil.
E a desigualdade no topo não é apenas de nível de
renda, mas de como essa renda é taxada, destaca Medeiros. Trabalhadores
assalariados, por exemplo, tendem a pagar um imposto mais alto que
profissionais liberais ou investidores.
“Algumas dessas pessoas (no grupo dos 10% mais
ricos) estão pagando bastante Imposto de Renda, por exemplo, e outras estão
pagando muito menos Imposto de Renda”, afirma.
Aumentar a progressividade da tributação – ou seja,
cobrar mais de quem ganha mais – é uma das medidas necessárias para promover a
distribuição de renda, defende o sociólogo, mas nem de longe é suficiente. Na
sua visão, enfrentar a colossal desigualdade brasileira tem que estar em toda a
política de governo.
O próprio crescimento da economia, defende, precisa
ser pensado como um crescimento pró-pobre. Ou seja, um crescimento que puxe a
renda da base ao invés de beneficiar essencialmente o topo, como vem ocorrendo.
“Mais ou menos metade de todo o crescimento
brasileiro está indo para as mãos só de 5% da população”, crítica.
Medeiros reconhece que é uma tarefa para décadas,
que provocará muita resistência das elites e depende de “mobilizar um capital
político monstruoso”.
“Reduzir dramaticamente a desigualdade e a pobreza
no Brasil vai envolver muita mobilização política porque o problema é político
antes dele ser enfrentado do ponto de vista econômico”.
>>>>> Confira a seguir os principais
trechos da entrevista, feita por telefone e editada por concisão e clareza.
·
É amplamente sabido que o
Brasil é muito desigual. O que maioria das pessoas não sabe sobre a
desigualdade brasileira?
Marcelo Medeiros - O ponto de partida desse livro é a constatação de que o Brasil é
extremamente desigual e há uma grande massa de população de baixa renda que é
separada de uma elite que é pequena, mas é bem mais rica do que a maior parte
da população.
Algo como 80% da população são muito parecidos. A
maior parte da desigualdade brasileira está na diferença entre os 10% mais
ricos e o resto da população e as desigualdades internas dentro desse grupo dos
10% mais ricos.
Talvez não falte informação técnica (sobre a
desigualdade), talvez falte interpretar o que isso significa. Eu vou lhe dar um
exemplo. Estatisticamente a gente tem definições com linhas de pobreza. Quando
você diz que uma linha de pobreza de 1,9 dólar ppp (taxa de câmbio que leva em
conta o poder de compra do dinheiro local) define pobreza globalmente e essa
linha aplicada no Brasil (o equivalente à cerca de R$ 5 por dia por pessoa, em
valores de 2020) dá 12% da população, as pessoas sabem disso. O que elas não
conseguem muito bem é ver o que isso significa.
Então eu tentei no livro traduzir essa noção
estatística para algo concreto, como dar uma dimensão das privações gigantescas
que uma mãe vai ter que fazer para comprar o material escolar da sua filha
porque ela é pobre. Quantos dias ela vai precisar parar de comer para comprar
um livro de matemática, por exemplo.
Então, talvez não seja uma questão de saber (que há
muita desigualdade), talvez seja mais uma questão de incorporar isso de forma
concreta e de começar a exigir a incorporação dessas coisas na formulação das
políticas.
·
Você diz que há uma grande
massa de pessoas de baixa renda não muito diferentes entre si, enquanto há muita
desigualdade entre os 10% mais ricos. Qual a implicação para o desenho das
políticas contra a desigualdade?
Marcelo Medeiros - Isso traz duas implicações iniciais. A primeira é lembrar que uma linha
de pobreza (no Brasil) divide uma população muito parecida de forma bastante
artificial. E, porque existe pouca diferença entre os pobres e as pessoas de
baixa renda, a gente não deve desenhar política ignorando que, ainda que as
pessoas não sejam pobres, elas precisam muito das políticas públicas para tudo que
elas fazem. Precisam muito da Previdência, dos serviços de saúde, dos serviços
educacionais. Em alguma medida, elas também precisam de assistência (social).
Então, a gente não deve separar de maneira
artificial demais os pobres das pessoas de baixa renda porque, na verdade, a
massa de população brasileira é de baixa renda.
Outra coisa é importante é que as pessoas não são
pobres, a maior parte das pessoas está pobre. Existe muita entrada e saída
continuamente em torno da pobreza (pessoas cuja renda oscila abaixo e acima da
linha de pobreza), e a gente também tem que aprender a lidar melhor com isso.
Isso do lado dos pobres. Do lado dos ricos, é
importante parar de achar que existe um ponto a partir do qual se identifica
claramente quem são as pessoas ricas. Não é a partir dos 10% (com maior renda),
não é a partir dos 5% (com maior renda), não é a partir do 1% (com maior
renda), porque todos esses grupos são extremamente heterogêneos.
Uma das implicações disso é que a gente deve focar
melhor na progressividade de algumas políticas como, por exemplo, a tributação.
Temos que melhorar nosso sistema tributário para lidar com o fato de que você
está arrecadando renda de uma população extremamente desigual.
Tratar uma pessoa que está no 1% (de maior renda)
da mesma forma que se trata a pessoa que está nos 10% (de maior renda) não é
bom, assim como tratar uma pessoa que está no 0,1% (de maior renda) da mesma
forma que você trata uma pessoa que tá no 1% (de maior renda), também não é
bom. A gente tem que melhorar os nossos mecanismos de progressividade em tudo,
inclusive no Imposto de Renda.
·
Como avalia as ações do
governo Lula nesses dez primeiros meses para combater desigualdade?
Marcelo Medeiros - Eu não estou fazendo acompanhamento das políticas no detalhe que precisaria
para te dar uma resposta minimamente sólida sobre isso, e algumas medidas vão
ser de longo prazo também. Eu tenho feito muito pouco avaliação de conjuntura
pelo fato de ter saído do Brasil.
·
O que deveria ser priorizado
pelo governo para reduzir desigualdade no Brasil?
Marcelo Medeiros - Achar que há uma solução simples para um problema dessa magnitude não
ajuda a resolver o problema. É um problema incrivelmente difícil, vai levar
muito tempo, vai mobilizar um capital político monstruoso, porque, no fundo,
você não produz um país com o nível de desigualdade brasileira só com um
conjunto de fatores isolado.
Toda política tem que levar desigualdade em conta.
Portanto, não existe uma prioridade. Não é uma questão, por exemplo, de
educação, não é uma questão de apenas tributar as pessoas mais ricas, é uma
combinação de uma série de políticas que vai tornar o Brasil um país menos
desigual.
A ideia de fazer o livro é trazer conhecimentos
sobre a desigualdade no Brasil para que esses conhecimentos possam ser incorporados
em todas as políticas, e não apenas um conjunto específico de políticas.
·
No livro, você aponta que a
redução da pobreza e da desigualdade exige ações em várias frentes, como mais
acesso à educação, mais serviços de proteção social, mudanças na tributação,
além de crescimento econômico. Como fazer isso com as restrições fiscais que o
governo enfrenta?
Marcelo Medeiros - Uma coisa que você mencionou, na verdade, não é importante para
combater a desigualdade, que é a necessidade do crescimento econômico. Isso
porque não existe o crescimento econômico do país. No Brasil, quem cresce
(economicamente) são algumas pessoas e outras não, umas mais e outras menos.
Então, é errado falar do Brasil crescendo, o certo é falar de quem no Brasil
está crescendo mais e quem está crescendo menos.
Um crescimento pró-pobres é completamente diferente
de um crescimento pró-ricos, embora o resultado final possa ser a mesma taxa de
crescimento (do PIB). Então, na verdade, o que o Brasil precisa não é de
crescimento, o que o Brasil precisa é de um crescimento pró-pobres. No sentido
amplo da palavra, pró-pobres significando toda a população de baixa renda.
BBC News Brasil – O que fazer para o crescimento
ser mais pró-pobre?
Marcelo Medeiros - Realmente, não existe uma resposta simples para isso. A gente vai ter
(que enfrentar) barreiras de natureza política, barreiras no conflito
distributivo, vai ter limitações de natureza fiscal, muita coisa para ser
administrada aí.
Talvez, parte dos nossos problemas de natureza
política é acreditar nesse simplismo. Isso resulta, às vezes, em algum
populismo, seja ele populismo de direita, seja ele populismo de esquerda, seja
populismo tecnocrático, de adotar essas soluções que aparentemente são simples
para problemas que são monstruosos.
Vou fazer uma analogia: como a gente enfrenta o
problema da criminalidade no Brasil? Qual a solução simples para um problema
dessa magnitude? A resposta de qualquer pessoa vai ser: eu não sei.
·
Ao longo da história,
geralmente o crescimento foi pró-rico?
Marcelo Medeiros - Teve momentos de crescimento pró-pobre e crescimento pró-ricos. O
que a gente pode dizer é que ao longo das últimas duas décadas, arredondando um
pouco, um quarto de todo o crescimento foi apropriado só por 1% da população.
Ou, se quiser outro número que é equivalente a
esse, mais ou menos metade de todo o crescimento brasileiro está indo para as
mãos só de 5% da população.
Ou seja, temos um crescimento que extremamente
concentrado e a implicação disso é que nossa discussão sobre o crescimento, no
fundo, é uma discussão que está sendo apropriada por um grupo que não chega a
um décimo da população brasileira.
·
Voltando à pergunta
anterior: como o governo pode atuar contra a desigualdade em várias frentes em
um cenário de restrição fiscal?
Marcelo Medeiros - Sempre vai haver uma restrição fiscal, por isso negociar dentro
do orçamento é tão importante. O Brasil precisa liberar recursos por um lado,
ou seja, precisa reorganizar alguns gastos, precisa aumentar a eficiência de
algumas políticas, mas também precisa aumentar arrecadação. Um problema dessa
magnitude vai precisar de algum aumento de arrecadação.
Inclusive, o problema fiscal brasileiro (para além
do combate à desigualdade) vai precisar de mais arrecadação. Simplesmente,
porque há um ponto onde cortar gastos se torna extremamente difícil, demora
tempo demais. Há coisas, por exemplo, que você não pode fazer. Não pode cortar
previdências no Brasil, porque isso implicaria violações importantes de
contratos e abriria precedentes para outras violações de contratos muito
importantes.
Então há limites no que pode e não pode ser feito
para qualquer governo, independente da sua matriz ideológica. E um bom
governante tem que lidar com esses limites o tempo inteiro. Mas, em termos
gerais, há muita coisa que pode ser feita no Brasil. Eu não quero fazer uma
lista. Acho que a discussão é mais sofisticada do que um indivíduo pode fazer
isoladamente.
·
Então, para reduzir
desigualdade precisa aumentar a carga tributária?
Marcelo Medeiros - Na verdade, para resolver o problema fiscal o Brasil precisa ter
redução de gastos, realocação de gastos e aumento de arrecadação. Se isso vai
ser via aumento de carga ou se vai ser simplesmente aumento de base, que é
outra alternativa, cobrar imposto de quem tá pagando pouco, também é uma
possibilidade.
Não vamos subestimar. Se fosse fácil, alguém já
tinha feito. Isso passa por enfrentar o conflito distributivo gigante. Vai
haver reação. Reduzir dramaticamente a desigualdade e a pobreza no Brasil vai
envolver muita mobilização política porque o problema é político antes dele ser
enfrentado do ponto de vista econômico.
·
O governo está enfrentando
dificuldades para aprovar medidas pontuais, como aumentar impostos sobre fundos
de super ricos que hoje são pouco tributados. Qual seu otimismo sobre reduzir a
desigualdade do Brasil quando isso depende não apenas de algumas ações
pontuais, mas de um caminhão de medidas a serem aprovadas no Congresso?
Marcelo Medeiros - Não sou nem otimista, nem pessimista. Acho que ninguém deve ser
otimista ou pessimista. As pessoas têm que ser realistas diante da magnitude do
problema que está sendo enfrentado. Elas têm que entender que essas coisas são
decisões que vão exigir muito mais metas de longo prazo que de curto prazo.
E que essas metas passam por mobilização política,
por escolher bem os representantes políticos e assim, sucessivamente, por
várias outras coisas. E, inclusive, por criar, literalmente, jogo de força na
política.
·
Quando você fala longo prazo
quer dizer décadas?
Marcelo Medeiros - Décadas. Na verdade, são
décadas, a não ser que você queria tomar medidas muito dramáticas. Mas a
pergunta é se a gente está disposto a tomar medida muito dramáticas. Houve
casos de quedas radicais de desigualdade no mundo, mas elas são resultados de
medidas muito dramáticas, como, por exemplo, as quedas que aconteceram durante
a Segunda Guerra Mundial na Europa, ou nos Estados Unidos com uma mobilização
gigantesca, uma regulação tremenda da economia, ou o que aconteceu nos países
soviéticos. Isso faz a desigualdade cair de maneira rápida.
Mas, obviamente, toda a política tem um preço, todo
o benefício tem um custo.
·
Nos Estados Unidos, por
exemplo, que tipo de regulação dramática na economia foi adotada?
Marcelo Medeiros - Toda, geral, não foi uma regulação, foi uma montanha de regulações,
primeiro no pós-Grande Depressão (após a quebra da Bolsa de Nova York em 1929)
e, segundo, no esforço de guerra (durante a Segunda Guerra Mundial). Você
controlava salários, controlava lucros, controlava a economia inteira. Então,
controlou muita coisa, não foi uma medida isolada, foi uma coisa gigantesca.
Se você não regula (a economia), obviamente quem
tem poder vai replicar esse poder com velocidade mais alta.
·
O livro aborda quem são os
pobres e quem são os ricos no Brasil. O que seria a classe média?
Marcelo Medeiros - Eu te respondo com outra pergunta: são essas as divisões certas? Ricos,
pobres, e classe média? E a pergunta subsequente é: para que a gente quer
dividir a população?
A divisão de uma população em grupos é uma
ferramenta. Essa ferramenta vai ser usada para quê? Porque dependendo do que a
gente fizer, uma ferramenta pode ser melhor do que a outra. A gente pode querer
dividir a população em três grupos, como pode querer dividir a população em 300
grupos.
E esse que é o argumento central do livro: não é
dado que existe um grupo de pobres, um grupo de ricos, e um grupo de classe
média. Isso é só um uma maneira de dividir a sociedade de classes, e a gente
tem que pensar para que a gente quer dividir a sociedade em classes, primeiro.
E, segundo, (pensar) o que significam essas divisões.
Se a gente não tem uma definição substantiva do que
é ser rico, uma definição substantiva do que é ser classe média, uma definição
substantiva do que é ser pobre, isso vai ser simplesmente uma classificação de
borboletas, onde você atribui arbitrariamente a classe das borboletas por cor,
por exemplo.
Não vamos deixar de lado, que, por trás da
definição de classe média, existe uma decisão de natureza política do
significado daquilo, porque, no fundo, a nossa cultura política, nosso sistema
legal, ele é baseado em ideias que não são precisamente definidas. E a gente
não deve deixar de lado jamais que essas classificações são classificações
políticas.
·
Fiz essa pergunta para
introduzir outra questão: uma pessoa com renda individual de R$ 10 mil por mês
já está no grupo dos 10% mais ricos do país. Mas essa pessoa provavelmente não
se vê como rica. Possivelmente, ela se vê como classe média.
Marcelo Medeiros - Há estudos no mundo sobre isso. No geral, as pessoas não gostam
de se autoclassificar como pobres nem como ricas. Elas geralmente se
classificam como classe média, nesses esquemas só de três classes, e elas usam
qualificadores: classe média baixa para os pobres, classe média alta para os ricos.
É isso que você vai ver no mundo inteiro, o Brasil não é uma exceção.
·
Como as políticas de
distribuição devem agir sobre esse grupo, que está no topo da pirâmide, mas não
são os mais ricos? São pessoas que vivem confortavelmente, mas não estão necessariamente
esbanjando dinheiro. Elas deveriam contribuir mais de alguma forma, dada a
distribuição de renda do Brasil?
Marcelo Medeiros - Não dá para dizer isso porque esse grupo que você definiu é muito
grande e heterogêneo. Algumas dessas pessoas (no grupo dos 10% mais ricos)
estão pagando bastante Imposto de Renda, por exemplo, e outras estão pagando
muito menos Imposto de Renda. Então, não podemos esquecer que esse grupo é
muito heterogêneo. Na verdade, a maior parte da desigualdade do Brasil está nos
10% mais ricos. Eles são um grupo terrivelmente desigual.
·
Um grupo que estaria pagando
pouco impostos, na visão de economistas como
Armínio Fraga e Samuel Pessoa, seriam profissionais liberais
de renda alta que costumam ter empresas em regimes especiais de tributação,
caso de médicos e advogados, por exemplo. Isso deveria mudar?
Marcelo Medeiros - Não porque é para esse grupo. Tem que mudar porque um bom sistema
tributário tributa da mesma forma a renda, independente da sua fonte, claro,
com algumas poucas exceções. Então, seria importante, por exemplo, que as
pessoas físicas e as pessoas jurídicas… ou melhor, que os rendimentos do
trabalho e os lucros e dividendos (distribuídos pelas empresas aos acionistas)
fossem tributados da mesma maneira.
Assim como também seria muito importante, porque
não está na pauta, mas deveria estar, que os rendimentos de capital, que no
Brasil se chama rendimento de tributação exclusiva, também fossem tributados
como o rendimento do trabalho.
No fundo, tudo tem que ser tributado da mesma
maneira. Hoje, no Brasil, a gente paga menos tributos nesse caso, bem menos,
15%, quando muito 22%, se você for sacar rápido demais, mas geralmente paga
menos.
Isso também não é nenhuma panaceia. Isso não vai
aumentar a arrecadação dramaticamente, mas é o que precisa ser feito. É bom
para não criar mecanismos artificiais de reorganização da economia. Ou seja, as
pessoas começam a se organizar para ser CNPJ, por exemplo, no lugar de ser
pessoa física só por causa disso.
·
O livro ressalta que mais
educação não é solução mágica pra reduzir desigualdade. Por que essa medida tem
impacto limitado?
Marcelo Medeiros - Primeiro, porque educação é um investimento de longo prazo. Leva
muito tempo para fazer uma reforma educacional, muito tempo para educar uma
criança e, mesmo que isso fosse feito num sistema perfeito, o que a gente vai
fazer com todos os trabalhadores que já estão no mercado de trabalho e que vão
ficar no mercado de trabalho por 40 anos? Então, só vai ser uma solução para
alguma coisa talvez daqui a meio século.
A segunda questão é: educação é um termo genérico
de mais. Que educação que a gente está falando? Ensino básico primário, ensino
médio, ou ensino superior? A diferença salarial entre trabalhadores de ensino
primário e de ensino médio é muito pequena. A educação que realmente afeta
desigualdade é o ensino superior.
Se a nossa estratégia for usar a educação para
reduzir desigualdade, isso vai requerer uma massificação do ensino superior no
Brasil, o que vai custar muito caro e vai levar muito tempo. Então, não é que a
educação não seja necessária, educação é insuficiente para resolver esse
problema.
·
Os governos do PT promoveram
expansão do ensino superior com mais universidades públicas e programas como
Fies e Prouni. Esse caminho está correto? Precisa ser ampliado?
Marcelo Medeiros - O Brasil já vem expandindo seu ensino superior desde pelo menos meados
da década de 90. E expandiu muito rapidamente a partir dos anos 2000, mas
baseado basicamente no ensino à distância, não uma expansão das universidades
públicas como algumas pessoas acreditam.
O problema não é o ensino à distância, o problema é
que o ensino à distância tal como ele foi implementado é de baixíssima
qualidade. Então, a gente tem problemas importantes de qualidade e de
quantidade para enfrentar. E não vai ser um conjunto pequeno de medidas que vai
resolver isso.
·
O Congresso acaba de aprovar
a revisão da Lei de Cotas. A reserva de vagas para negros no ensino superior é
uma política importante para reduzir desigualdade?
Marcelo Medeiros - É uma política extremamente importante por uma razão simples: uma
alternativa as cotas seria simplesmente investir em educação de base. O
problema é o tempo gigantesco que isso vai levar.
Dois, (outro problema é) o conjunto enorme de
obstáculos que os negros vão enfrentar à medida que eles sobem. Os negros têm
mais dificuldade para avançar na educação porque a vida (dos negros) é cheia de
obstáculos, inclusive dentro da escola.
E a educação dos negros é menos valorizada que a
educação dos brancos. Um homem branco e um homem negro com exatamente a mesma
educação, o homem negro tenderá a ter um salário mais baixo. Portanto, os
caminhos têm que ser outros. O sistema de cotas é um complemento a outras
medidas que precisam ser tomadas.
·
Além de dar acesso a
profissões de maior renda, as cotas também são importantes por aumentar o
acesso dessas pessoas a espaços de poder e liderança?
Marcelo Medeiros - Existe um fator de sinalização muito importante que é as pessoas
negras poderem se projetar em lideranças negras: nos artistas, nos
intelectuais, nos políticos, nos empresários. Porque parte do problema passa
pelas barreiras relacionadas a isso.
Existe um outro fator que é o de representatividade.
Nem todos vão ser representantes de causas negros, mas alguns serão
representantes de causas negras e, ao acontecer isso, obviamente isso favorece
pessoas que não estão na mesma posição que eles.
·
Você defende que o combate à
desigualdade tem que permear todas as ações do governo. O presidente Lula disse
que gênero e raça não são critérios para escolher o próximo ministro do STF, um
corte dominada por homens brancos. A representatividade do Supremo tem reflexos
pra redução de desigualdade?
Marcelo Medeiros - Eu sou favorável a ter mais representatividade racial e de gênero
no Supremo, como de resto em qualquer elite. Agora não sei dizer qual impacto
isso vai ter, em qual desigualdade e por qual caminho.
·
Idealmente, Lula deveria
levar em conta raça e gênero ao indicar uma pessoa para a Corte?
Marcelo Medeiros - Idealmente, a sociedade inteira, não só o presidente, todo mundo tem
que levar em conta. Os partidos têm que fazer isso, as empresas têm que fazer
isso, a televisão tem que fazer isso. A desigualdade racial está em todos os
lugares.
Fonte: BBC News Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário