Gaza: o colonialismo do século XXI
É hoje quase consensual nas ciências sociais a
ideia de que o colonialismo não terminou com as independências políticas das
colónias europeias que ocorreram entre o início do século XIX e o final do
século XX. O que terminou, mas nem sequer totalmente, foi uma forma de
colonialismo, o colonialismo histórico caracterizado pela ocupação territorial
por parte de um país estrangeiro. O colonialismo continuou sob muitas outras
formas, já que a independência política (a soberania) foi muito condicionada
por dependências económicas e financeiras, contratos desiguais, privilégios
concedidos às empresas das antigas potências colonizadoras, expulsão de camponeses
para dar lugar a mega-projectos de desenvolvimento, para além da continuidade
de relações sociais assentes no princípio colonial da inferioridade etno-racial
do outro, de que o colonialismo interno e o racismo são as expressões mais
evidentes. A inferiorização e demonização do outro por via do racismo é uma
constante da civilização ocidental (talvez de outras), tal como foi durante
séculos o anti-semitismo e o anti-povo roma, e tal como é hoje a islamofobia.
Mas mesmo o colonialismo histórico não desapareceu totalmente. Os dois casos
mais próximos da Europa são o povo saharaui, sujeito ao colonialismo de
Marrocos, e o povo palestiniano, sujeito ao colonialismo de Israel.
Concentro-me neste último pela forma extrema de limpeza étnica que está a assumir.
A grande maioria dos israelitas vivem com
naturalidade o apartheid da sociedade em que vivem. Nos meses anteriores a 7 de
Outubro, era grande a agitação política em Israel causada pela reforma judicial
proposta por Netanyahu, a qual muitos israelitas viam como um ataque brutal à
democracia. Estava em causa “o futuro de Israel”, uma decisão existencial entre
um Estado secular, democrático, ou um Estado teocrático, autoritário, sem
separação de poderes. No meio de tamanha agitação política nenhum partido,
independentemente da sua posição política, fazia qualquer referência aos
palestinianos, à situação na Cisjordânia ou na faixa da Gaza. E se algum dos
manifestantes o fazia era retirado de imediato. No mesmo período, muitos
palestinianos a viver em Israel e, portanto, cidadãos israelitas, eram
constantemente alvo de gangs de delinquentes que os agrediam e roubavam
impunemente. Por outro lado, morriam diariamente palestinianos em ambas as
zonas, e as arbitrariedades contra eles eram parte do quotidiano. Nada disto
entrava na agenda política dos democratas israelitas em luta contra o
autoritarismo fascizante de Netanyahu. Ou seja, a ocupação da Palestina não era
um problema político; a sujeição dos palestinianos era um dado adquirido, e não
era sequer um tema para programas partidários em tempos eleitorais. Era assim
também no tempo do colonialismo, o histórico, sempre que os escravos ou os
colonizados, em geral, não se faziam notar pela resistência activa.
Esta ausência é a chave de tudo o que está a
acontecer, não desde 7 de outubro de 2023, mas desde 9 Novembro de 1917, quando
o Império Britânico prometeu aos judeus uma casa (“a national home”) na
Palestina, onde uma pequena minoria de judeus já vivia. Os direitos da grande
maioria de palestinianos árabes e cristãos eram reconhecidos, mas desde o
início lhes foram negados os princípios “universais” que os EUA estavam a
propor no final da Primeira Guerra Mundial: o direito à auto-determinação e o
direito à democracia. Obviamente que esses direitos estavam a ser negados em
todo o mundo colonial e, no fundo, pelas mesmas razões. É que se houvesse
auto-determinação e eleições, o colonialismo acabaria imediatamente. Trinta
anos mais tarde a situação repete-se e agrava-se. No mesmo ano em que é firmada
a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), os novos direitos
universais são de novo negados à Palestina e a todo o mundo colonizado. Mais
grave ainda é que nesse ano são cometidos os dois atentados mais graves (para
além dos que já existiam) contra tais princípios. O sistema do Apartheid é
institucionalizado na África do Sul e o Estado de Israel é criado, prometendo
reconhecer a Alemanha ocidental como um país civilizado (depois das atrocidades
Nazis) se pudesse conquistar o máximo possível de território da Palestina.
Começou então a Nakba, a grande catástrofe do povo palestiniano, a sua expulsão
massiva do território que habitavam há mais de 2000 anos: 750.000 palestinianos
expulsos de suas casas, 530 aldeias arrasadas, desertos criados onde antes
havia jardins, milhares de mortos. Consolidou-se assim o carácter colonial do
Estado de Israel: ocupar o máximo território e esvaziá-lo o mais possível de
gente “estranha”. E foi assim que Israel se portou até aos dias de hoje, não só
desrespeitando as resoluções da ONU sobre os dois Estados, como, por último,
declarando-se como um Estado Judaico, onde apenas há cidadania plena para os
judeus.
A Palestina é, pois, uma das situações de
colonialismo histórico que restam. A guerra que se trava é, por parte dos
israelitas, uma guerra colonial e, por parte dos palestinianos, uma guerra de
libertação anti-colonial. Mais que nenhum outro país europeu, os portugueses
deviam entender isto bem, uma vez que há apenas cinquenta anos viviam a mesma
situação. Numa guerra são cometidos actos terroristas sempre que são
intencionalmente alvejadas populações civis, sejam eles cometidos pelos
combatentes anti-coloniais ou pelos Estados (sendo que neste último caso se
fala de terrorismo de Estado). Foi assim na guerra da Argélia, nas guerras da
Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Há apenas cinquenta anos, em 1973, Amílcar
Cabral (Guiné-Bissau e Ilhas de Cabo Verde) (até à sua morte), Agostinho Neto
(Angola), Jonas Savimbi (Angola), Holden Roberto (Angola) e Samora Machel
(Moçambique) eram terroristas, e assim abundantemente retratados na imprensa
portuguesa. Um ano depois, eram heróis da libertação anti-colonial, e como tal
festejados nos seus países e em Portugal. Por que razão não há heróis de
libertação da Palestina, e há apenas terroristas? Porque o colonialismo
continua a subjugar a Palestina. A transformação de terroristas em heróis não
é, em geral, tão rápida quanto foi a do colonialismo português. Basta lembrar o
caso de Nelson Mandela que, apesar de o apartheid ter terminado em 1994 e de
nessa data ter sido eleito presidente da república da África do Sul, só foi
retirado da lista norte-americana dos terroristas em… 2008.
Entendendo a situação da Palestina como uma
situação colonial, entende-se por que há dois pesos e duas medidas na avaliação
dos actos de guerra. O Norte global é constituído pelos países europeus
colonizadores e pelas suas colónias que foram totalmente dominadas pela
supremacia dos colonos brancos (EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia). A sua
memória histórica é colonialista, de ocupação territorial e de extermínio de
quem se lhe oponha. O que Israel está a fazer foi o que os EUA fizeram.
Europeus rejeitados (puritanos ou criminosos) foram ocupar territórios fora da
Europa e, uma vez aí, fizeram limpeza étnica de quem se opunha à sua ocupação.
Em face deste contexto, compreende-se (mas não se perdoa) que o Norte global
imagine o Estado de Israel a agir em legitima defesa. Foi assim que o Norte
global arrasou as populações nativas. Ao apoiar Israel, o Norte global está a
legitimar a sua história.
O relativo anacronismo do colonialismo histórico
praticado por Israel faz com que seja particularmente chocante a linha abissal
ao fazer distinções aparentemente absurdas sobre um magma global e inerte de
escombros e de cadáveres inocentes, muitos deles crianças. Já vimos que a
legitima defesa nunca é justificada contra inocentes, populações civis,
sobretudo crianças, e muito menos quando é exercida como punição colectiva
indiscriminada na sua violência assassina. Nada isso impede que a linha abissal
seja activada, distinguindo a boa violência da má violência, distinguindo a
morte dos que morrem da morte dos que são assassinados. Do lado de cá da linha
abissal, falamos de “nós”, enquanto do lado de lá, se fala “deles”. De um lado,
os plenamente humanos, do outro lado, os sub-humanos. É por isso que os jovens
israelitas que foram barbaramente assassinados quando assistiam ao rave
Universo Paralelo não achavam nada anormal que estivessem a celebrar o “amor e
a harmonia” a dois quilómetros da rede que delimita a maior prisão a céu aberto
do mundo onde estão sequestradas mais de dois milhões de pessoas. Nem os
membros de um dos kibutzim que foram atacados sabiam que quem os atacava eram
jovens da terceira geração de palestinianos que viviam na aldeia que foi
roubada aos seus antepassados (uma das 530 aldeias) e destruída para construir
aquele kibutz.
A linha abissal não permite ver duas brutalidades,
dois terrorismos, mesmo que o sangue derramado seja todo da mesma cor. Nisto
consiste a cegueira estrutural dos vencedores da história. Para eles, será
sempre tarde demais ver o que está à vista. A única consolação dos
palestinianos é saber que todos os colonialismos chegam ao fim. A sua tragédia
é que o fim dos colonialismos depende sempre de alianças internacionais, e
essas têm tardado no seu caso. Os palestinianos são árabes que foram separados
do mundo árabe. Ao aceitar a solução final contra os palestinianos como um
golpe colonial menor, o mundo árabe está a cortar na própria carne. Se a tragédia
do povo palestiniano não for parte do problema árabe, tão pouco haverá solução
para muitos outros problemas que o mundo árabe enfrenta.
Ø ‘Terceira Guerra Mundial pode começar na Faixa de Gaza’, prevê aliado
de Putin
O presidente da Bielorrússia, Alexandr Lukashenko,
declarou nesta sexta-feira (27/10) que teme a possibilidade de o atual conflito
no Oriente Médio, com a ofensiva militar de Israel contra a comunidade
palestina da Faixa de Gaza, desembocar em uma Terceira Guerra Mundial.
Em coletiva com meios locais e também da Rússia, o
mandatário afirmou que o envio de grupos de porta-aviões por parte dos Estados
Unidos e o rumor de que estes poderiam realizar ataques contra o Irã, com a
justificativa de que o país estaria “financiando” o Hamas, levaria a um
conflito maior, obrigando vários países a tomar posição e se envolver na
guerra.
“Primeiro, é preciso considerar que não há nenhuma
prova do envolvimento iraniano (nas ações realizadas pelo Hamas), mas também
deve-se entender que a escalada das hostilidades pode se tornar um caminho sem
volta, e obrigar outros países a se posicionarem, ou até mesmo a decidirem
participar (da guerra)”, afirmou Lukashenko.
O mandatário bielorrusso admitiu a possiblidade de
que parte do armamento usado pelo Hamas nos últimos dias tenha sido fabricada
no Irã, mas disse que isso não significa o envolvimento do governo de Teerã com
o grupo palestino.
“Os drones fabricados pelos Estados Unidos e por
Israel também estão sendo utilizados pela Ucrânia contra a Rússia. O comércio
de armas é assim. Em ambos os casos, pode ser algo errado, mas é legal”,
comparou Lukashenko.
O presidente da Bielorrússia afirmou que “também há
registros de armas de fabricação norte-americana apreendidas em posse de
líderes do Hamas e não se acusa os Estados Unidos de envolvimento com o grupo
por causa disso. É preciso ter uma postura séria frente a esse tema”,
acrescentou.
Lukashenko é, atualmente, um dos principais aliados
do presidente da Rússia, Vladimir Putin, no cenário internacional.
Em junho passado, sua intervenção foi crucial para desarmar um possível
conflito interno no país, após a empresa militar Grupo Wagner PMC ameaçar invadir Moscou, em um levante provocado por um suposto
fogo amigo contra um acampamento de mercenários no Sul da Rússia, próximo à
fronteira com a Ucrânia.
Ao final da coletiva, o líder bielorrusso disse que
“os esforços por parte dos Estados Unidos e de Israel para semear o caos e
desencadear guerras, visando preservar a posição hegemônica norte-americana,
está gerando uma crise internacional cujas consequências ainda não são
perceptíveis, mas que podem ser desastrosas”.
Altman:
"o Estado de Israel está moralmente condenado. Perdeu o que poderia lhe
restar como direito à existência"
O jornalista Breno Altman bateu duro no governo
israelense, do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, por causa dos novos
ataques na Faixa de Gaza, que fica entre Israel, na Ásia, e o Egito, na África.
Segundo o analista, "o Estado de Israel está moralmente condenado".
"Perdeu o que poderia lhe restar como direito à existência. Mais cedo ou
mais tarde, a humanidade irá varrê-lo do mapa por racismo e colonialismo. Como
ocorreu com outros Estados semelhantes", afirmou o colunista na rede
social X, antigo Twitter.
"O regime sionista tem que desaparecer. O
sionismo é uma corrente ideológica que se equivale moralmente ao fascismo e ao
nazismo. Deve ser combatido de forma implacável. Representa os valores mais
pérfidos da história: o racismo e o colonialismo. Sua influência entre os
judeus é uma maldição também para este povo", acrescentou.
Neste sábado (28), o exército de Israel afirmou que
"bombardeou 150 alvos subterrâneos" no norte da Faixa de Gaza durante
a última, anunciou um comunicado militar. As comunicações de Gaza com o resto
do mundo foram interrompidas na sexta-feira (27).
O governo israelense afirmou que teve o seu
território atacado no último dia 7 da
Faixa de Gaza por integrantes do Hamas, grupo que nasceu nos anos 80 e é uma
das principais organizações islâmicas. A maioria dos membros da organização é
sunita, que representa cerca de 90% dos muçulmanos e, segundo esta corrente de
pensamento, o califa - chefe de Estado e sucessor de Maomé (570-632), deveria
ser eleito pelos muçulmanos.
Quem
matar mais ganha. Por Domenico Starnone, publicado em Internazionale
Talvez as vítimas, se tivessem voz, devessem fazer
uma única pergunta: por que vocês nos imolaram? Haveria muito constrangimento e
balbucios muito confusos. Sim, por que os imolamos? Porque um deus qualquer
quis, quer e sempre quererá holocaustos e hóstias. Para afetar milhares e
educar milhões.
Porque aquela que vocês consideram como a casa de
vocês, por sua vez, é indiscutivelmente a nossa casa. Porque nós somos
civilizados, e vocês, não. Porque o sangue, o ódio e as guerras são o eterno
banco de prova dos fortes destinados a governar o planeta. Balbucios loucos, em
suma.
Incluindo também: nós os imolamos, porque, quanto
mais crescerem os números do massacre, melhor chegaremos a alguma paz, que,
pelo menos por um tempo, manterá o mundo em equilíbrio. O que, de fato,
significa: nós os sacrificamos por nada, vocês foram massacrados porque não
sabemos fazer outra coisa senão potencializar o “anti”, fortalecer o “pró” e
passar de uma falsa paz a uma guerra de verdade, de uma guerra de verdade a uma
falsa paz. Além disso, uma guerra de verdade é preciso ser vista. Os militares
agora travam as guerras diante das telas: a uma devida distância, destroem-se
casas e coisas, exterminam-se civis.
Na era inaugurada com grande pompa por Hiroshima e
Nagasaki e aperfeiçoada pela tecnologia digital, são principalmente os
indefesos que agonizam e queimam entre as ruínas.
Quem matar ou aleijar mais ganha pontos. O resto é
hipocrisia.
Fonte: Por Boaventura de Sousa Santos, em Brasil
247Opera Mundi//IHU OnLine
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