Roberto Amaral: As esquerdas e o desafio de voltar ao combate
Em entrevista à revista Casa de las
Americas (Cuba), no início de 1990, Darcy Ribeiro fala-nos do
desalento que naqueles idos se aplacava sobre os movimentos populares e
socialistas: a esquerda latino-americana desanimada, a esquerda mundial
acovardada. Naquela altura, no Brasil, sob o pálio da Nova República, vivíamos
a experiência dos governos neoliberais, vencidos os sonhos libertários da luta
contra a ditadura. Conquistáramos a democracia burguesa, numa guerra que
conheceu o ferro e o fogo, deixando cicatrizes irremovíveis, mas estávamos
ainda mais distantes da reforma social, razão de tudo. As consabidas
dificuldades de compreender o processo histórico paralisam o movimento social e
seus pretensos condutores se quedam, atônitos, sem saber o que fazer. Os céus
sem nuvem e sem estrelas não sugerem caminhos. Por não haver entendido o
significado da “revolução brasileira”, não tivemos condições de sustentar o
governo Jango; por não havermos compreendido a natureza do golpe de 1964,
ficamos impossibilitados de travar o combate que as condições históricas
indicavam. Após 21 anos de ditadura, os militares preestabelecem as condições
de descida da rampa do Planalto, e o regime da caserna, decaído, se projeta no
regime da redemocratização.
O desânimo que afligia a geração dos anos 90
alcançava o observador privilegiado, que se descobre, ele também, desamparado
da esperança utópica, um projeto de ser, aquele valor que separa o guerreiro do
homem medíocre e opera como fonte de vida histórica: “Sendo como sou um homem
de esquerda, me dói este sentimento desesperançado que encontro aonde vou”.
Inclusive entre os jovens, que não são mais os que o antropólogo conheceu nas
barricas parisienses de maio de 68.
Darcy não cogita do pano de fundo histórico da
tristeza e da apatia da alma ocidental na última década do século: o
desmoronamento da mais bela utopia humanista que o homem já concebera,
despedaçada nos escombros daquilo que se convencionou denominar de “socialismo
real”. O mundo dos sonhos cedia espaço à desesperança.
Despida de desafios, sem alternativas por
construir, e plena de dúvidas e de interrogações, a política fracassara. Era o
momento azado de balanços políticos e existenciais sobre os 74 anos da
revolução russa, posta na soleira da história. Encerrava-se, em dezembro de
1991, com um suicídio burocrático, uma longa e dolorosa saga de lutas por
transformação social. Encerravam-se as expectativas ensejadas pela vitória
sobre o fascismo na Segunda Guerra Mundial, mas a sociedade solidária e a paz
continuavam distantes. Diante de uma humanidade perplexa, jazia, sem luta, sem
resistência, o campo soviético que anunciara ao mundo a alvorada: promessa de
contenção do imperialismo e esperança de construção de uma nova ordem mundial,
livre do colonialismo e do imperialismo. Sua queda representava a derrota de
todos os revolucionários do mundo naquele século, e anunciava a vitória final e
definitiva do capitalismo. A esquerda, em todo o mundo, despreparada para a
orfandade inesperada, se quedava sem espólio, e caminhava claudicante à procura
de um ponto de apoio, fosse de recuo, fosse a imaginação de um novo sonho (sem
o que é impossível lutar), fosse a expectativa de recuperação de seus valores
ameaçados. A URSS, a Roma dos comunistas e socialistas, optara pepela
autoimolação e seu fracasso abria o cenário para a onipotência estadunidense. O
fim da história era o decreto que se abatia sobre as grandes massas
trabalhadoras, condenadas a uma diáspora ideológica.
·
Findava-se a era das utopias
A debacle soviética (e com ela o fim de uma
ortodoxia doutrinário-ideológica) havia enterrado o projeto do “socialismo
real” (o único que se pensava possível) e punha em questão a força libertária
do marxismo-leninismo, nada obstante ainda estivesse presente a dedicação dos
comunistas e socialistas na luta por um mundo que antes parecia caminhar para
uma sociedade, senão igualitária, certamente menos iníqua em comparação àquela
que herdávamos. Já seria uma vitória havermos chegado ao final do século XX
vendo à distância a ameaça do armagedon nuclear, e os comunistas se
identificavam, em todo o mundo, na defesa da paz. Nem tudo era perda, por
certo, mas a derrota do modelo burocrático abalara, em todo o mundo, o projeto
socialista, demolindo uma a uma suas praças, a começar pela batalha ideológica,
trazendo à cena a crise dos partidos.
Os partidos comunistas e socialistas pagariam o
preço da autodissolução, e o ponto de incisão foram os grandes partidos
comunistas da Itália e da França. Cada um, segundo sua natureza e sua história,
em processo que percorreu o mundo, conheceu a partir dali sua decadência. E
dela não se viu livre a América Latina. Ficara o que Darcy identificava como “a
falta de ter em que acreditar, até entre gente jovem”.
O fim das organizações implicou o recesso da luta
ideológica, deixando com a direita o monopólio da fala. A dificuldade de
compreender o processo histórico determinou tanto o recesso do trabalho
organizativo quanto o dever da educação das massas, atraídas por apelos de
integração no sistema, induzida pelo capitalismo monopolista que avançava mesmo
na periferia subdesenvolvida.
Darcy, que foi poupado de conhecer a história do
presente (seu ponto de observação era a França mirando para o então terceiro
mundo) via parcelas ponderáveis de nossas esquerdas, deprimidas por algo como
uma crise existencial coletiva, darem um passo atrás “avassaladas frente a uma
direita agressiva, soberba e até insolente”.
No nosso século, por força de inumeráveis fatores,
a revolução social se transmuda em reformismo, e, em muitos casos, a “direita
agressiva” ameaça a civilização, impondo à esquerda -- voltamos ao Brasil-- o
compromisso de defender a ordem, depois da traição dos liberais, da renúncia
política da social-democracia paulista e do trânsito da direita dita civilizada
para uma extrema-direita de índole fascista.
A contingência impôs à esquerda brasileira – já sem
aquela influência exercida pelos quadros comunistas no passado remoto – o dever
presente de defender a institucionalidade democrática, ante as ameaças do
projeto protofascista que, derrotado nas urnas em 2022, permanece ativo,
construindo essa contradição por resolver: o conformismo da esquerda, seu
espanto e s apatia (que tanto incomodavam Darcy), e o inconformismo de uma “direita
agressiva, soberba e até insolente”, presente e majoritária na governança do
mundo.
O quadro de hoje, portanto, parece mais grave do
que aquele que o autor de O povo brasileiro analisa. Ele pode
ser reduzido ao avanço da direita em todo o mundo e em todos os campos da vida
social, pois se expressa tanto do ponto de vista ideológico quanto no campo
militar e tecnológico, alimenta conflitos, fomenta guerras e realinhamentos
geopolíticos-estratégicos, na preparação do conflito com a Eurásia, na disputa
inevitável pela hegemonia do mundo, opondo principalmente EUA e China, ao fim e
ao cabo um conflito intercapitalista, o que, todavia, não pode esconder o papel
progressista desempenhado presentemente pela República fundada por Mao Zedong.
Os EUA de hoje, uma presa agressiva da díade
Trump-Biden, oscilam entre a direita do Partido Democrata e a ultradireita do
Partido Republicano, representações da polarização político-social do maior
arsenal atômico do mundo. É desse Estado belicoso, expressão maior do grande
capital na crise aguda em que se que encontra o modo de produção capitalista,
que a humanidade vê crescer a hegemonia econômico-militar sobre o mundo, na
busca da unipolaridade. Tanto quanto seu arsenal bélico funcionam os mecanismos
de manipulação de “corações e mentes”: os marines são
precedidos pela batalha ideológica e o controle das fontes de informação. A
grande imprensa brasileira, servidora da visão de mundo do Departamento de
Estado, é exemplo paradigmático de nossa dependência, que é a dependência
ideológica do chamado “Ocidente”, que nada nos pode oferecer, senão consolidar
nosso papel “de proletariado externo das potências cêntricas”, como observou
Darcy.
Variados foram os títulos da irrealizada revolução
brasileira: nacional libertadora (quando a “questão nacional” se sobrepunha à
“questão social”), democrático burguesa, antifeudal e anti-imperialista etc.
Pensou-se até, nos idos dos anos 1960, em revolução socialista por dentro do
regime, sonho esmagado pelos militares em 1964. Intentamos marchas sertão
adentro e, por não conhecer o processo histórico, que não concilia com
transplantes revolucionários, chegamos mesmo a uma tentativa de putsch,
o erro crasso de 1935, para em seguida renunciarmos à imaginação revolucionária
e abraçarmos a luta nacionalista. Optamos, por fim, pela composição com a
institucionalidade, pelo que a estratégia revolucionária foi substituída pela
tática da composição política, mediante a hipótese de conquista de governos de
centro-esquerda para fazer por dentro do Estado burguês, e no capitalismo, a
reforma social possível.
O sucesso político da campanha de 1989 disse às
esquerdas brasileiras, e disse principalmente ao PT, a organização hegemônica,
que já era possível a conquista do governo mediante o processo eleitoral. Dessa
avaliação derivaria nossa política coletiva desde aquele então: a necessidade
de compor com o establishment. Sua execução, porém, exigiu a
renúncia a qualquer proposta socialista e impôs a opção social-democrata de
governo, que tanto combatêramos. Ao fim e ao cabo, a opção tática de conquista
do governo – limites aos sonhos e apego às composições – impôs sérias
limitações estratégicas. A esquerda, para vencer as eleições, haveria de
caminhar ao centro e, para governar, compor com a direita. Os melhores
programas partidários ou de governo teriam de passar pela destilaria da realpolitik. Assim,
o PT deixou de falar em socialismo, a esquerda deixou de denunciar a sociedade
de classes, a organização popular foi relegada às traças, a formação ideológica
das massas populares e sindicais esquecida. E sobre a revolução abateu-se
silêncio sepulcral. O socialismo, no projeto de um partido proletário
revolucionário, foi remetido às calendas gregas, dizia-me há pouco, sem
qualquer eiva de crítica, um amigo dirigente comunista.
Hoje, no governo, trabalhamos com afinco e
sinceridade para tornar a sociedade de classes suportável pelas grandes massas.
Como observa Florestan Fernandes, escrevendo sobre
esse tempo “a revolução socialista perdeu a sua poesia e o advento do comunismo
passou a ser negligenciado” (Contra o socialismo legalista), esquecidas
nossas lideranças de que a alternativa socialista não cai do céu, não banha as
flores como o orvalho, nem rega a terra como a chuva. O socialismo, ensina o
mestre de todos nós, que acabo de citar, é o fruto do confronto direto de
forças irremediavelmente antagônicas, o tour de force do
embate com a vida concreta no mundo real: o trabalho como mercadoria, a
exploração da mais-valia como fundamento do lucro, a aceleração da acumulação
capitalista premiando o rentismo e a especulação, enfim a luta de classes,
subsumida, hoje, pela integração na institucionalidade burguesa como aspiração
política.
É o Brasil da industrialização da segunda metade do
século passado, o capitalismo monopolista que se segue ao fim da Segunda Guerra
Mundial, a vitória dos EUA na contenda da Guerra Fria e, seu corolário, a
associação das burguesias nacionais com o imperialismo. E que chega à
atualidade reproduzindo o início da história: somos país pobre nos subúrbios do
capitalismo dependente.
Este, o quadro de hoje, quando precisamos salvar,
com base no apoio popular, negligenciado, o governo do presidente Lula, minado
pela coabitação com o Centrão e a direita, fragilizado em face de sua minoria
em um Congresso reacionário e chantagista, minado em suas bases pela
resistência da caserna, pelo agronegócio predador, irmão gêmeo dos grileiros e
garimpeiros que destroem o meio ambiente e o habitat dos povos
originários.
·
A partilha do poder
Confirmou-se: o presidente Lula entregou a
presidência da Caixa Econômica Federal, um dos maiores bancos sociais do mundo,
ao Centrão, mais precisamente a um preposto, logo mais um factótum de Arthur
Lira, que, de imediato, cumprindo sua parte no trato, liberou o plenário da
Câmara dos Deputados para aprovar projeto que previa a taxação dos super-ricos,
pauta essencial da agenda econômica. O preço foi muito alto, o governo,
acossado, pagou o resgate, e a encomenda foi entregue, como acordado pelos
negociadores. Mas esse ainda não é o preço todo, pois o Centrão padece fome
insaciável. Entram na pauta os prometidos cargos da Funasa. A cada necessidade
do governo, nova paralização da pauta, nova chantagem, novo pagamento, mediante
cargos ou verbas. A grande imprensa nomeia esse costume como “negociações do
governo para formar maioria no Congresso”. O Código Penal (art. 158) classifica
essa chantagem como crime: “Art. 158 - Constranger alguém, mediante
violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida
vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma
coisa”. E o pune com pena de reclusão, de quatro a dez anos, e multa. Mas o
presidente da Câmara dos Deputados é um homem acima de qualquer suspeita.
·
Os marines estão chegando
E com passaporte visado pelo nosso governo. Chegam
pela Amazônia. O convite foi feito pelo exército do Estado brasileiro, e a
operação integra o projeto AmazonLog – um exercício de adestramento militar
inspirado em atividade da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan),
realizada em 2015, da qual o Brasil foi um dos observadores. O exercício
conjunto entre militares brasileiros e norte-americanos ocorre desde 2015, mas
esta será a primeira vez em que a atividade será em terrtorio amazônico. No
primeiro governo Lula o comandante da Marinha me dizia que a próxima guerra
teria a Amazônia brasileira como um de seus teatros. E lá seu modelo seria a
guerra de guerrilha. Junto as duas coisas e passo a entender a iniciativa.
·
Samuel Pinheiro Guimarães
Um dos mais eminentes brasileiros, lutador
incansável pela construção de uma sociedade soberana e solidária. A criação de
um Instituto destinado a preservar sua obra política, sempre em construção,
merece todo o apoio dos democratas.
Fonte: Brasil 247
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