Saúde Digital: ameaça imperial ou promessa
de soberania?
A rápida transformação
digital da saúde será um avanço ou um retrocesso? Para Raquel Rachid,
pesquisadora do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin), não é o
melhor dos caminhos analisá-la simplesmente a partir dos “benefícios e
malefícios” que ela pode trazer consigo. Mais frutífero é observá-la pelo
ângulo dos conflitos, da contradição que move sua implementação hoje em curso
no Brasil e no mundo.
Esse conflito, que
permeia a escrita de documentos que fundamentam a condução de políticas para a
área, como a Estratégia Global para a Saúde Digital, da Organização Mundial da
Saúde (OMS), e a Estratégia para a Saúde Digital no Brasil, se expressa em uma
disputa entre duas concepções: uma é compartilhada pelas Big Techs e países
centrais do capitalismo, e busca submeter as informações sobre a saúde da
população a interesses mercadológicos. Outra, comprometida com a Saúde Pública,
é a que “garante a privacidade dos cidadãos e assegura que os dados sejam
utilizados para o avanço da ciência”, diz Joyce Souza, cientista do Laboratório
de Tecnologias Livres na UFABC (LabLivre).
Contraditoriamente,
nessa disputa, o poder público no Brasil tem sido até aqui um apoiador de seu
próprio adversário. “O Estado tem se tornado o grande financiador da saúde
digital do capital, sendo que ele tem a possibilidade de desenvolver uma saúde
digital dentro de suas infraestruturas”, explica Joyce.
Na edição desta
segunda-feira (15/4) do Cebes Debate, a dupla de especialistas apontou por
quais caminhos o setor privado tem se infiltrado nos ensaios de digitalização
da Saúde no Brasil e debateu alguns dos elementos indispensáveis para o projeto
tomar um rumo mais alinhado aos princípios do SUS. Os brasileiros podem ter
muito a ganhar com a telessaúde e a chamada interoperabilidade dos dados, mas
“sem uma política econômica voltada para isso”, que garanta o volume de
investimentos necessário para desenvolvermos uma infraestrutura própria, elas
dizem, perderemos a chance de avançar de forma soberana.
• Conflito que dura décadas
O fato de que a Saúde
Digital começou a tomar forma – ainda sob nomes como e-health e saúde
eletrônica – nos anos 1990, apogeu do neoliberalismo, pode ser um dos fatores
que explica a influência tão marcada de grupos empresariais em sua concepção.
De acordo com as pesquisadoras,
nos materiais produzidos pela própria OMS desde então, é forte a ideia de que a
“cooperação” entre setores público e privado seria decisiva para a
implementação da Saúde Digital – uma formulação que, na verdade, mascararia a
intrusão do mercado em assuntos da Saúde Pública. É uma noção que “tira do
Estado a obrigação de financiar esses modelos” de digitalização da saúde,
aponta Raquel.
Uma das frestas por
onde as empresas entram é a do objetivo de ampliar a interoperabilidade, a
possibilidade de que os dados fluam entre os diferentes sistemas. No caso do
SUS, isso poderia se expressar, por exemplo, na criação de um prontuário
eletrônico único que pudesse ser acessado por profissionais de qualquer
equipamento de saúde do país para atender os cidadãos, que já está nos planos
Ministério da Saúde. Contudo, na maioria dos países, não haverá os recursos –
ou a vontade política – para que o Estado proteja adequadamente essa enorme
quantidade de dados que seria reunida.
“O discurso da
interoperabilidade está sendo usado para que a gente crie grandes bancos de
dados” e data lakes (repositórios de dados não processados) que, na falta de
iniciativa dos governos para administrá-los, acabam sendo manejados por
interesses privados, revelaram as convidadas do Cebes Debate.
O Brasil não é exceção
nesse sentido. “Quando nós olhamos para as infraestruturas tecnológicas do
Governo Federal, como a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), tanto a forma
como os dados estão sendo armazenados quanto a forma como eles estão sendo processados
por sistemas algorítmicos têm sido feitas pelo setor privado”, lamenta a
estudiosa da UFABC. “Mesmo entidades que não tem fins lucrativos tomam recursos
do Estado para gerir programas como o Proadi”, complementa Raquel.
Não é possível ter
ilusões quanto às intenções das empresas de tecnologia que estão adentrando o
mercado da saúde, frisam as especialistas. “A Google entra na saúde para
oferecer análises de condições dermatológicas, mas também é a empresa que
oferece [a mesma tecnologia] para Israel mirar em 34 mil pessoas e despejar
suas bombas”, compara a pesquisadora do Lapin. “Não podemos ignorar o contexto
imperialista dessas questões”, ela ressalta.
Ao permitir que entes
não movidos pelo interesse público, e muitas vezes de origem estrangeira,
manipulem os dados dos cidadãos, “nós estamos transferindo valor de
conhecimento e aprofundando nossa dependência tecnológica”, avalia Joyce.
• Para impulsionar uma alternativa pública
Nem tudo, porém, tem
caminhado de forma completamente favorável para o mercado nos últimos anos. O
Brasil já deu início à estruturação de instituições de governo importantes para
que possamos preparar uma guinada para uma Saúde Digital capitaneada pelo interesse
público.
Para as pesquisadoras,
“a criação da Seidigi”, a Secretaria de Informação e Saúde Digital do
Ministério da Saúde, “foi um grande avanço”. Igualmente importante é a
existência, desde 2018, da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
Mas, apesar de se pronunciar de forma solidária quando os movimentos alertam
para problemas, “falta a ANPD falar mais sobre o tema da proteção dos dados de
saúde”, considera Joyce, assim como um esforço para adequar a RNDS à Lei Geral
de Proteção de Dados (LGPD).
Além da necessidade de
ações mais incisivas desses órgãos, explicaram Joyce e Raquel, a alternativa à
tomada dos dados de Saúde dos brasileiros por corporações privadas ou potências
estrangeiras precisaria passar por um investimento público massivo nas condições
para que o Estado possa armazenar e processar de forma totalmente autônoma esse
material – bem como formular políticas públicas de grande envergadura com eles.
Contudo, argumenta a
membro do LabLivre, com a atual política econômica promovida pelo Ministério da
Economia, “nós vamos caminhar cada vez mais para o desinvestimento na
construção de infraestrutura tecnológica e para a contratação de estruturas
privadas”, um cenário de “intenso aprofundamento da dependência tecnológica”.
“Quando o setor
privado é convidado para ‘inovar’ [na Saúde], ele está ‘inovando’ com insumos
públicos, é um parasitismo”, alerta Raquel. Por sua vez, “a Seidigi teria total
condição de desenvolver uma política de Saúde Digital nacional”, avalia Joyce.
Necessária, agora, é a ousadia – e o orçamento – para efetivamente
desenvolvê-la.
Fonte: Por Guilherme
Arruda, em Outra Saúde
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