Rubens Naves: Privatizar a Sabesp é
retroceder na pior hora
Há erros históricos
que só se revelam em sua essência e dimensão com o passar de anos ou décadas. E
os que, por repetir equívocos já feitos e bem compreendidos, podem ser
identificados já no momento em que são anunciados. A privatização da Sabesp
pertence ao segundo tipo.
Quando, em 1989, sob a
liderança de Margareth Thatcher, a Inglaterra privatizou todo o seu sistema de
saneamento básico, boa parte do país e do mundo estava convencida, ou pelo
menos nutria boas expectativas, de que as promessas do neoliberalismo, se cumpririam.
A privatização era vendida aos cidadãos e eleitores como substituição do
engessamento corporativista e dispendioso da máquina estatal pela flexibilidade
e eficiência da iniciativa privada. Prometia-se mais prosperidade,
desenvolvimento e qualidade de vida por meio de menores impostos e taxas, mais
investimentos e melhores serviços.
Já havia, claro,
céticos e críticos, mas, diante de fórmulas que se apresentam como novidade –
como a dos serviços públicos monopolistas em mãos privadas controlados por
contratos e agências reguladoras – faltava-lhes a prova dos nove: experiências
práticas e seus resultados objetivos.
Hoje, passados quase
35 anos, os resultados da privatização do saneamento na Inglaterra correspondem
a um dos maiores problemas daquele país, combinando tarifas crescentes,
endividamento e insolvência de empresas, e vastos danos ambientais.
·
O alerta que vem do
norte
A maior empresa de
saneamento da Inglaterra, a Thames Water, que provê água e esgoto para 16
milhões de pessoas em algumas das regiões mais populosas e ricas do país,
incluindo grande parte da região metropolitana de Londres, é um exemplo de
insustentabilidade socioambiental e financeira. Com uma dívida total de cerca
de 18 bilhões de libras (mais de R$ 115 bilhões), em março a companhia deixou
de pagar uma parcela desse montante, equivalente a R$ 3,2 bilhões, depois que a
agência regulatória vetou um plano que aumentaria as tarifas pagas pela
população em 40%.
A conta do fracasso do
modelo privatista do saneamento já vem sendo paga pelos ingleses, e não somente
na forma de tarifas crescentes. A falta de investimentos em infraestrutura e
cuidados ambientais vem produzindo efeitos dramáticos. Em 2023 houve, por exemplo,
3,6 milhões de horas de derramamento de esgoto sem tratamento nos rios e no
mar, o dobro do total registrado em 2022.
Em contraste com esses
resultados, as empresas de saneamento da Inglaterra distribuíram cerca de R$
360 bilhões em dividendos para os acionistas desde a privatização.
O fracasso do modelo
privatista também se evidencia pela comparação entre o atual cenário do
saneamento na Inglaterra e nos dois países vizinhos que compõem a Grã-Bretanha,
onde tarifas e danos ambientais são menores. Na Escócia, o saneamento é função
de uma companhia estatal, a Scottish Water, e no País de Gales, de uma
organização sem fins lucrativos, a Welsh Water, que investe integralmente seus
ganhos financeiros em manutenção, aprimoramento e sustentabilidade dos
serviços.
·
Lucro privado,
prejuízo socializado
A constatação do
fracasso do modelo privatista tornou-se uma obviedade no debate público na
Inglaterra, reconhecida inclusive, em grande medida, pelo próprio Partido
Conservador, que décadas atrás o implementou com entusiasmo.
Com a aproximação das
eleições gerais no Reino Unido – para as quais o Partido Trabalhista vem
mantendo ampla vantagem, segundo as pesquisas de intenção de voto –, as dúvidas
hoje são sobre qual modelo deverá substituir o atual, e como lidar com as imensas
dívidas das operadoras privadas. Como costuma acontecer nesses casos, a
população ainda deverá arcar com prejuízos causados por um modelo que
enriqueceu acionistas e executivos.
Nesse contexto, outra
constatação do óbvio, feita pouco mais de século antes da privatização de 1989,
tem sido lembrada pelos ingleses. “É difícil, senão impossível, combinar os
direitos e interesses dos cidadãos e os interesses da empresa privada, porque a
empresa privada visa o seu objetivo natural e justificado: o maior lucro
possível.” A frase foi dita em 1884 por Joseph Chamberlain, importante membro
do governo britânico, em defesa da gestão pública do saneamento básico.
Já era evidente,
então, que os benefícios coletivos da competição capitalista por mercados –
que, em condições de efetiva competição, requer constante busca por eficiência,
inovação e qualidade – não se aplicam a monopólios naturais como o do
saneamento, nos quais um único provedor de serviços tende a maximizar lucros e
dividendos reduzindo custos e investimentos necessários ao atendimento do
interesse público.
No atual contexto
paulista, na iminência da privatização da Sabesp, a constatação de Chamberlain
e as fartas evidências que a corroboram – vindas não só da Inglaterra, mas de
dezenas de países e centenas de casos de reestatização do saneamento registradas
mundo afora nos últimos anos – devem nos alertar para os riscos de um erro
histórico previsível e evitável.
·
Riscos conhecidos e
desnecessários
Constatar que a
privatização não é um bom modelo para o saneamento básico não implica,
necessariamente, defesa de um modelo estatal tradicional. Existem várias
soluções bem-sucedidas que combinam qualidades da boa gestão pública e da
iniciativa privada. Por exemplo, companhias sem fins lucrativos, como a do País
de Gales, que provê saneamento para três milhões de pessoas.
Empresas de economia
mista controladas pelo poder público, a Sabesp é outro exemplo internacional de
sucesso. Atendendo quase 30 milhões de pessoas com serviços de qualidade a
preços módicos, ela é responsável pela liderança de São Paulo no cenário brasileiro
do saneamento, tanto em termos de cobertura quanto de qualidade, e ainda gera
significativos lucros para acionistas, incluindo o próprio governo estadual.
Por que São Paulo
trocaria um modelo bem-sucedido, alinhado com as evidências e o conhecimento
acumulado internacionalmente, por outro, que já se mostrou inadequado?
Os discursos em defesa
da privatização da Sabesp se assemelham aos feitos na Inglaterra de Thatcher,
em 1989. É como se as promessas de então não tivessem sido amplamente testadas
e descumpridas mundo afora, nas últimas décadas.
Seria o modelo
proposto pelo governo Tarcísio e aprovado pela Assembleia Legislativa paulista
algo muito distinto e melhor que os marcos contratuais que se revelaram
inadequados aqui mesmo, no Brasil, no caso, por exemplo, do setor de energia?
Especialistas
identificam problemas e riscos de privatizações anteriores no projeto que está
sendo implementado para a Sabesp. Um desses analistas é o economista Hugo
Oliveira, que abordou o tema em recente palestra online para a Associação
Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes). Ex-presidente da Agência
Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp), com 40 anos de
experiência no setor, Oliveira conhece a fundo os desafios para conciliar as
motivações de concessionários privados e o interesse público.
Analisando o modelo
que deverá ser implementado na Sabesp, Oliveira vê uma tendência de
encarecimento das tarifas a médio e longo prazo e risco de enfraquecimento da
política de tarifa social para populações pobres. O economista identifica
também uma ausência de mecanismos capazes de prevenir insuficiência de
investimentos após a primeira fase da privatização. Outro problema apontado
pelo ex-presidente da Arsesp é a redução do poder decisório da maioria
dos municípios – que, pela Constituição, são os titulares dos serviços de
saneamento –, em razão do peso do governo estadual em comitês gestores
regionais que deverão ser instituídos juntamente com a privatização.
·
Na contramão da
sustentabilidade
A adoção de políticas
públicas na contramão das evidências é uma forma de negacionismo. As motivações
por trás dessa escolha podem ser ideológicas, ligadas a planos
político-eleitorais de curto prazo ou a interesses econômicos particulares.
Sejam quais forem as
causas da decisão de privatizar a Sabesp, ela vem num momento dramático, no
qual a aceleração das mudanças climáticas e a perspectiva de agravamento de
escassez de água reforçam a necessidade de aumento do controle público e de
gestão estratégica desse recurso vital. A ideia de que essas necessidades
crescentes serão mais bem atendidas pelo controle privado da Sabesp contradiz o
bom senso e o conhecimento acumulado sobre o tema – que mostram que a
privatização do saneamento nunca foi tão arriscada e potencialmente danosa.
A privatização da
Sabesp, em 2024, é o avesso de uma gestão pública baseada em evidências, ciente
dos desafios contemporâneos e comprometida com o desenvolvimento sustentável a
médio e longo prazo. Neste momento decisivo, de tomada de consciência sobre a
nova realidade do clima e da água, em vez de avançar, São Paulo está tomando um
rumo de retrocesso.
Ø "Nunes quer fazer da Sabesp a Enel da água", diz
Boulos sobre privatização
O caos elétrico vivido
em São Paulo e o aumento das tarifas com a privatização do setor elétrico para
a multinacional italiana Enel deve se repetir no setor de saneamento e
fornecimento de água tratada à população, caso a dupla Ricardo Nunes (MDB),
prefeito da capital, e Tarcísio Gomes de Freitas (Republicanos), consiga
colocar a Sabesp à venda.
Essa é a opinião de
Guilherme Boulos (PSOL-SP), principal oponente de Nunes na disputa à prefeitura
de São Paulo nas eleições de outubro, sobre a privatização à toque de caixa da
Companhia de Saneamento Básico do Estado.
"São dois pesos e
duas medidas: Nunes crítica a Enel, privatizada, pela ineficiência dos
serviços, mas apoia a privatização da Sabesp sabendo que a qualidade da água
vai piorar e a conta vai ficar mais cara - assim como aconteceu com a Enel.
Essa não é a postura de um gestor preocupado com os interesses da maior cidade
da América Latina. Essa é a postura de alguém que recorre ao vale-tudo
eleitoreiro pensando apenas no próprio umbigo", disse Boulos à Fórum.
Pré-candidato de Lula,
que vai se opor ao campo bolsonarista na disputa na capital paulista, o
deputado ainda vê motivação política por parte de Nunes, que trabalha para
aprovar o processo de privatização, que deve entrar na pauta da Câmara
Municipal nesta quarta-feira (17).
"A privatização
da Sabesp mostra como o prefeito Ricardo Nunes sabota a cidade de São Paulo
para beneficiar a si mesmo. Nunes está abrindo mão do poder que a capital
paulista tem sobre a empresa em troca do apoio do governador Tarcísio",
afirmou Boulos.
·
Toque de caixa
Nesta terça (16), o
presidente da Câmara paulistana, Milton Leite (União Brasil), convocou uma
reunião de líderes para anunciar a aceleração do processo.
Ele determinou que a
matéria fosse votada ainda nesta terça, de maneira simultânea, nas comissões em
que precisa passar. A aprovação é esperada em todas as comissões e, em se
concretizando, o texto vai a plenário logo a seguir.
“Nós devemos levar a
plenário amanhã a votação do projeto de lei de concessão da Sabesp. Faremos
todas as votações nominais. O que for será nominal. A base terá que estar
presente. Debate e votação amanhã”, disse Milton Leite durante a reunião com os
líderes.
Ao todo, a cidade de
São Paulo dispõe de 55 vereadores. Para aprovar o projeto é necessário que 28
desses vereadores votem favoráveis. O prefeito Ricardo Nunes (MDB), que faz
coro com o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) na defesa da proposta,
afirma que tem maioria na Câmara Municipal para a aprovação da privatização da
Sabesp. Inclusive, foi após uma reunião com o prefeito em 26 de fevereiro que
Milton Leite decidiu analisar a proposta.
Por outro lado, há
vereadores que defendem o interesse público – haja vista a tragédia da Enel no
fornecimento de luz à capital paulista. Silvia Ferraro (Psol) é uma dessas
vereadoras.
Ao Brasil de Fato ela
criticou a pressa dos governistas em aprovar o projeto e aponta que o correto,
ou o “rito normal” em suas palavras, seria que o texto tramitasse em todas as
comissões e passasse por audiências públicas para ser discutido pela sociedade.
No entanto, nada disso aconteceu.
“Tivemos só uma
audiência pública sobre isso, ontem (15). Todas as grandes empresas
interessadas em comprar ações da Sabesp estão se movimentando. O que existe é
uma pressa das empresas interessadas em comprar as ações e o governador
Tarcísio quer vender o mais rápido possível. Automaticamente, o Ricardo Nunes é
pressionado”, avaliou a vereadora.
A privatização da
Sabesp não é aprovada pela população. Segundo uma pesquisa Quaest divulgada
ontem (15), 61% dos paulistanos são contrários à entrega da estatal. Em todo o
estado, 52% dos eleitores são contra.
Mas isso não parece
comover os parlamentares paulistas. Se na Câmara Municipal a privatização da
Sabesp está sendo acelerada nessa semana, o mesmo ocorreu na Assembleia
Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) em dezembro de 2023, quando o
projeto foi aprovado com 62 votos favoráveis e apenas 1 contrário, em sessão
que ficou marcada pelo silenciamento da oposição mediante violência policial.
Na época,
trabalhadores da própria Sabesp apoiados pelos Metroviários e por outras
categorias, chegaram a organizar sucessivas greves contra a entrega da estatal
para a iniciativa privada. O movimento popular pedia que fosse feito um
plebiscito para decidir a questão, mas a proposta, obviamente, foi ignorada não
só pelos parlamentares, como pela própria imprensa.
O texto foi
apresentado à Alesp em 17 de outubro de 2023, semanas após os deputados
estaduais receberem do governador Tarcísio mais de R$ 73 milhões em emendas
parlamentares.
A proposta precisa da
aprovação da Câmara Municipal de São Paulo para seguir adiante uma vez que
quase 45% do faturamento da estatal é oriundo da capital paulista. Se aprovada
na Câmara, faltará apenas a sanção do governador para a privatização passar a valer.
Fonte: Outras Palavras/Fórum
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