PEC das Drogas: um retrato do momento do
Brasil
O Senado pretende
votar em primeiro turno ainda nesta semana a PEC 45/2023, apelidada de PEC das
Drogas. Aprovada por ampla maioria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ),
a proposta foi apresentada pelo presidente da casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e
é mais um episódio do avanço obscurantista promovido pelo Legislativo
brasileiro, cuja pauta parece se tornar ainda mais retrógrada em um ano de
eleições municipais. E é também mais um capítulo do embate que envolve dois dos
três poderes da República.
A PEC é uma reação ao
julgamento, ainda em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF), do Recurso
Extraordinário (RE) 635659, interposto pela Defensoria Pública do Estado de São
Paulo. A ação propõe reverter a condenação de uma pessoa que foi flagrada com
três gramas de maconha dentro de uma unidade prisional. A Defensoria alega que
o artigo 28 da Lei de Drogas, que fundamentou a sentença, é inconstitucional,
já que afronta o artigo 5º da Constituição, que em seu inciso X declara a
inviolabilidade da intimidade e da vida privada.
Na peça inicial,
protocolada em 2011, os autores invocavam o direito comparado para fazer um
paralelo com um país vizinho. “A Suprema Corte Argentina declarou recentemente
a inconstitucionalidade da incriminação do porte de drogas para uso próprio em
razão da impossibilidade da intervenção estatal no âmbito privado dos
cidadãos”, diz o texto do RE. Segundo a Defensoria, o artigo 28, ao incriminar
“a conduta de portar drogas para uso próprio extrapolou seu poder, ferindo
preceitos constitucionais que lhe condicionam”.
Só em 2015 teve início
o julgamento, suspenso atualmente por um pedido de vista do ministro Dias
Toffoli. O relator, ministro Gilmar Mendes, primeiramente votou para
descriminalizar o porte de qualquer tipo de droga para consumo próprio, mas,
depois dos votos de colegas que restringiram a descriminalização apenas à
maconha, ele reajustou seu voto neste sentido, endossando ainda a necessidade
de fixação de parâmetros para diferenciar a quantidade que caracterizaria
tráfico e consumo próprio.
Até agora, são cinco
votos a favor da descriminalização do porte e do cultivo de maconha para uso
pessoal e três contrários, divergência aberta pelo ministro Alexandre Zanin.
Sobre este voto, aliás, os argumentos expostos na leitura expressaram um senso comum
que não deveria ser adotado em decisões importantes, como destacado aqui.
• Justificativas
Já no Senado, também
não faltou apelo ao senso comum, na justificativa do projeto feita por Pacheco.
Em certo trecho, ele aponta que “o motivo desta dupla criminalização (do
usuário e do traficante) é que não há tráfico de drogas se não há interessado
em adquiri-las”. Por esta lógica singela, a “dupla criminalização” já teria
dado conta de acabar com o tráfico a esta altura, quase 18 anos após entrar em
vigor.
E ainda que no Brasil
não houvesse um único consumidor, o tráfico continuaria, até porque, por sua
localização e extensão de fronteiras, boa parte da rota internacional passa por
aqui. “O Brasil é um país de trânsito [de drogas], um país de envio, o que, em
si, é um problema bastante grande tanto para o Brasil quanto para nós, porque
os narcotraficantes são parasitas das infraestruturas que existem entre a
América do Sul e da América Latina em geral e Europa”, disse ao jornal Valor
Econômico, em agosto de 2023, o analista científico do Centro de Monitoramento
Europeu de Drogas e da Dependência das Drogas (EMCDDA na sigla em inglês),
Laurent Laniel.
Ainda na justificativa
do projeto, Pacheco, explicitando o confronto com a análise de ministros do
STF, alega que sua PEC “visa a conferir maior robustez à vontade do
constituinte originário”. Mas será que era esse o desejo do constituinte?
O professor titular de
Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP, Virgílio Afonso da
Silva, aponta em seu livro Direito Constitucional Brasileiro que o artigo 5º da
Constituição garante um genérico “direito de liberdade” que poderia ser entendido
por meio de duas interpretações possíveis: uma na qual as liberdades garantidas
são tematicamente limitadas, e outra em que se compreende o reconhecimento de
uma “liberdade geral de ação”, o que implica dizer que “toda atividade estatal
que restrinja, em qualquer âmbito e em qualquer grau, a autonomia dos
indivíduos carece de justificação”. Neste último caso, o consumo de drogas
seria ilustrativo.
“Embora não haja uma
liberdade específica para consumir drogas garantida constitucionalmente,
qualquer restrição na autonomia individual para consumi-las depende de uma
justificativa robusta”, pontua o jurista em sua obra. “Uma evidência disso é o
fato de que seria impensável que o Congresso Nacional proibisse o consumo de
cerveja, vinho ou caipirinha no Brasil, sem qualquer justificativa. O fato de o
álcool ser uma droga não significa que é possível proibir seu consumo sem que
haja uma justificativa constitucional relevante, que passe pelo teste da
proporcionalidade.”
Isso não significa,
segundo ele, que os indivíduos teriam um direito definitivo de consumir
quaisquer drogas, mas que “eventuais restrições a essas ações devem ser
justificadas, da mesma foram que ocorre com as restrições a quaisquer outros
direitos fundamentais”.
Será que as
justificativas hoje apresentadas por Pacheco e pelos senadores que subscrevem
sua proposta se sustentam?
• A descriminalização no Senado
Não é a primeira vez
que o tema da descriminalização é discutido no Senado Federal. Uma das
discussões mais recentes veio no debate a respeito do novo Código Penal,
conjunto normativo originalmente elaborado em 1940. Em 2011, o então presidente
do Senado José Sarney instalou uma comissão formada por 15 juristas elaborar
anteprojeto de novo Código, entregue quase oito meses depois.
Não se tratava de uma
proposta com viés progressista no seu conjunto, sendo muito criticada pelo teor
punitivista ao prever medidas como o endurecimento de penas, maior dificuldade
para progressão de regime e a abolição do livramento condicional. Ainda assim,
quando foi discutida a sugestão de que o porte de drogas para uso pessoal fosse
descriminalizado, não houve discordância relevante sobre a questão.
Matéria à época da
Agência Senado apontava que a descriminalização havia sido “aprovada em clima
de relativo entendimento”, em vista de um quase consenso do fracasso da
política de “guerra às drogas”. A defensora pública Juliana Garcia Belloque,
relatora do tema, salientava não ter inovado no assunto, adotando uma regra da
legislação de Portugal que já havia descriminalizado àquela altura o porte que
configurasse limite para dez dias de consumo. No caso da proposta brasileira, a
quantidade para limite de consumo foi reduzida para cinco dias.
O anteprojeto se
transformou no PLS 236/2012 e tramita lentamente na Casa, aguardando
distribuição na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Dentro de
um texto que trazia poucos avanços em termos de direito penal, estava lá a
descriminalização não só da maconha, como tem julgado hoje o STF, mas das
drogas em geral. Como, em um espaço de 12 anos, o Legislativo simplesmente
deixa de discutir o tema e faz uma proposta açodada e simplista como a PEC das
Drogas?
• Pesos e contrapesos
Hoje o Congresso
Nacional tem um poder inédito. Em dezembro, o líder do governo no Senado,
Jaques Wagner (PT-BA), reclamava que o total de emendas impositivas ao
Orçamento da União, cuja execução é obrigatória por parte do Executivo, ficaria
em torno de R$ 52 bilhões a R$ 54 bilhões em 2024. Esse tipo de emenda foi
criada por meio de PEC em 2015, com um grande esforço feito pelo então
presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, um verdadeiro líder de
oposição ao governo de Dilma Rousseff. À época, somente emendas individuais
podiam ter caráter impositivo, mas outra mudança constitucional, de 2019,
ampliou esse poder também para as chamadas emendas de bancada, de autoria
coletiva.
Ex-integrante da
“tropa de choque” de Cunha, o atual presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL)
seguiu a trilha, conseguindo junto ao governo Bolsonaro a instituição do
chamado “orçamento secreto”, ampliando o domínio legislativo sobre recursos
públicos, sem transparência. Mesmo depois de o STF ter considerado o esquema
baseado nas emendas de relator ilegal, a utilização de emendas impositivas e
das emendas de comissão continuaram o cerco ao Executivo.
Ainda que um governo
eleito consiga ter nas presidências das duas Casas políticos aliados no futuro,
o poder de barganha e o equilíbrio entre os dois Poderes já mudou. Empoderados,
os representantes do Legislativo não querem ter diante de si o contrapeso do
Judiciário. Em novembro de 2023, por exemplo, o Senado aprovou uma PEC que veda
a concessão de decisão que seja tomada por único ministro ou desembargador para
suspender a eficácia de uma lei, a decisão monocrática.
Tratava-se, como
agora, de mais uma demonstração de força diante do que parlamentares julgam ser
“interferência” de outro Poder. O próprio Rodrigo Pacheco, aliás, só instalou a
CPI da Covid por decisão de Luís Roberto Barroso, já que o presidente da Casa,
mesmo com a proposta de instauração da comissão tendo conquistado o apoio de um
terço dos senadores, estabelecido fato determinado e prazo de trabalho, não
havia autorizado a abertura da comissão.
Obviamente os limites
de cada um devem ser observados e debatidos, mas forçar conflitos não parece
ser uma saída institucional adequada. Ainda mais pelo fato de os dispositivos
de emendas constitucionais também estarem sujeitos à análise do Supremo e poderem
ser considerados inconstitucionais, como já aconteceu em outras ocasiões. E
muitos juristas avaliam que a PEC afronta a Constituição. Ou seja, a briga pode
escalar. Talvez este seja o objetivo.
• Na contramão
Além de a PEC das
Drogas representar uma postura de enfrentamento do Legislativo, tanto a
proposta quanto a disposição para o conflito não seriam possíveis sem a
mobilização da extrema direita, que mira o Judiciário, em especial o STF, há
tempos, e também utiliza a pauta relacionada a temas morais como prioritária.
Parlamentares tidos como “moderados” não se acanham em abraçar propostas
reacionárias por conta de puro oportunismo político-eleitoral, algo que seria
mais difícil em tempos recentes. Os extremistas só conseguem adquirir força por
conta da omissão e da adesão dos órfãos (e algozes) do “centro democrático”,
que desapareceu do cenário político.
Isso justificaria em
parte que um texto tão regressivo fosse à votação de forma tão leviana. Em
tempos de negacionismo, a proposta ignora todas as contribuições do campo das
ciências criminais e insiste na lógica do encarceramento, o que equivale a
aumentar a dose de um suposto remédio cujos “efeitos colaterais” são mais
danosos do que os efeitos daquilo que pretende curar.
A criminalização
muitas vezes afasta o usuário do sistema de saúde, resultando em uma
subnotificação que impede a elaboração de estratégias e políticas públicas que
possam abordar a questão de forma mais eficiente. Também não existem evidências
científicas de um argumento muito utilizado pelos defensores da criminalização,
de que não penalizar o usuário aumentaria o uso de substâncias ilegais.
Como já citado neste
texto, um estudo publicado na revista Economic Inquiry, em 2019, apontou que
nos estados que legalizaram o uso da maconha nos Estados Unidos, houve uma
redução de pelo menos 20% nas mortes ligadas a overdoses de opioides. “Os
estados onde a maconha foi legalizada não são tão negativamente afetados como
os que não a legalizaram”, pontuou um dos autores, o economista da Universidade
de Massachusetts Amherst, Nathan Chan. A legalização do uso recreativo da
maconha nos Estados Unidos, país muito citado por extremistas de direita como
exemplo, já é uma realidade para a maior parte da população, lembrando que não
é a legalização que se discute no Supremo, mas sim descriminalizar o porte para
uso pessoal.
Assim, a proposição do
Senado caminha na contramão de boa parte do mundo. Enquanto o Brasil se prepara
para votar a PEC das Drogas, a Alemanha, desde 1° de abril, permite que maiores
de 18 anos possam portar até 25 gramas de maconha, com permissão de cultivar
até três plantas, desde que destinadas ao uso pessoal, em casa. O Deutsche
Welle destaca que “em Portugal, Espanha, Suíça, República Tcheca e Bélgica e
principalmente na Holanda, há muito tempo existem regulamentos que não
criminalizam mais a posse e o uso de pequenas quantidades”.
Além do Uruguai, que
legalizou a maconha, criando um mercado regulado para uso recreativo e
medicinal da erva em 2013, a Colômbia descriminalizou o uso e o porte da
cannabis em 1994. Argentina e Chile também não criminalizam o usuário. Outro
país que é referência para boa parte da extrema direita brasileira, Israel, é
“o maior mercado de cannabis medicinal per capita do mundo” e adota uma
descriminalização parcial para o porte caracterizado como de uso pessoal.
É fundamental que o
Brasil olhe para as experiências internacionais e promova um debate sério a
respeito de uma questão que influencia a vida das pessoas de diferentes formas,
desde aqueles que vão para o sistema prisional de forma desnecessária, passando
pelas pessoas que poderiam ter acesso a tratamentos baseados na erva já
comprovados cientificamente, incluindo a utilização de recursos públicos na
sustentação de uma estrutura proibicionista draconiana que já demonstrou ser
ineficaz. Já houve um ministro de Estado dizendo que não se importaria que o
país fosse considerado um “pária internacional”. Infelizmente, em termos de
política de drogas, o Brasil pode acelerar o passo em direção a esse destino.
Fonte: Por Glauco
Faria, em Outras Palavras
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