Dependentes do lobby judeu, EUA blindam
Israel de punições por genocídio em Gaza, dizem analistas
Em entrevista à
Sputnik Brasil, analistas destacam que Congresso dos EUA é movido pelo lobby
israelense e que retórica de Washington sobre o conflito, oposta à do Sul
Global, é um marco na transição para uma nova ordem mundial.
Na semana passada, o
primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, declarou que não respeitará a
resolução 2728, aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU)
que exige um cessar-fogo imediato na ofensiva israelense na Faixa de Gaza durante
o Ramadã, período sagrado para a religião muçulmana marcado por jejuns e obras
de caridade.
A resolução aprovada é
não vinculativa, ou seja, não prevê medidas punitivas previstas no capítulo VII
da Carta da ONU, como sanções e recomendações para que o CSNU tome as medidas
militares que considerar necessárias para a manutenção da paz. Dessa forma, a
resolução, aprovada após meses de intensos debates, serve tão somente como meio
de expressar a opinião dos membros do conselho, e Israel permanecerá sem
represália por manter sua ofensiva.
Em entrevista à
Sputnik Brasil, especialistas explicam por que a resolução aprovada não prevê
retaliações a Israel e como situação na Faixa de Gaza marca a ascensão de uma
nova ordem global.
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Por que Israel pode descumprir a resolução
da ONU?
Silvia Ferabolli,
professora e doutora em política e estudos internacionais pela Escola de
Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres (SOAS) e coordenadora
do Núcleo de Pesquisa sobre as Relações Internacionais do Mundo Árabe (NUPRIMA)
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), afirma que esta "não
é a primeira vez que Israel viola uma resolução do Conselho de Segurança da
ONU".
Ela destaca duas
resoluções famosas da ONU também não respeitadas por Israel: a 242 (de 1967) e
a 338 (de 1973), que exigem que Israel retire suas tropas de territórios
palestinos ocupados após a Guerra dos Seis Dias (1967) e retroceda seu
território aos limites anteriores à ofensiva.
"Israel nunca
aceitou respeitar essas resoluções da ONU. Então Israel não estar respeitando
essa resolução de agora não é de causar estranheza. Porque se ele vem desde a
década de 70 desrespeitando a resolução 242, vem desde a década de 70 desrespeitando
a resolução 338, [...] não vai ser agora, em 2024, que Israel vai decidir
respeitar a ONU. Então o desrespeito sistemático de Israel para com as
resoluções do Conselho de Segurança da ONU só faz com que as críticas a essa
instituição cresçam, se avolumem e a irrelevância do conselho fique cada vez
mais claro para a comunidade internacional."
Por sua vez, Isabela
Agostinelli, doutora em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação
San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), pesquisadora de pós-doutorado do
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos
(INCT-INEU) e do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da
PUC-SP, lembra que a ONU "é uma organização intergovernamental, formada
por Estados nacionais soberanos, e não uma entidade supranacional".
"A ONU funciona
muito mais como um órgão mediador do que uma estrutura capaz de interferir na
soberania dos Estados. Afinal, o princípio basilar das relações internacionais,
desde o século XVII, é o respeito à soberania estatal. Isso, claro, em teoria.
Na prática, o que vemos é uma disputa de poder entre as grandes potências e
seus aliados", explica a pesquisadora.
"Aliás, a própria
estrutura organizacional do Conselho de Segurança da ONU reflete a política das
grandes potências. Os cinco membros permanentes têm poder de veto em relação às
resoluções propostas. Desde 1971, os EUA já vetaram mais de 40 vezes resoluções
direcionadas a Israel, seu grande aliado no Oriente Médio. A estrutura
organizacional do CSNU tem sido objeto de críticas há muito tempo, inclusive
pelos governos brasileiros, que defendem a ampliação das cadeiras de membros
permanentes a fim de aumentar a representatividade de países menos favorecidos,
como os do chamado Sul Global", complementa.
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EUA como escudo de Israel
Em seus mais de 170
dias em operação, a ofensiva israelense em Gaza já deixou mais de 32,8 mil
mortos e 75,3 mil feridos, segundo dados mais recentes do Ministério da Saúde
palestino.
Além disso, um recente
relatório feito em conjunto pela ONU e o Banco Mundial aponta que metade da
população do enclave se encontra em situação de fome extrema em decorrência da
ofensiva. Com base nesses dados, cada vez mais países se somam às críticas que
acusam Israel de cometer um genocídio no território.
Antes da aprovação da
resolução 2728, houve inúmeras tentativas de aprovar resoluções anteriores, a
maioria delas vetada pelos EUA. Questionadas por que Washington se esforça para
proteger Israel, mesmo diante das críticas da comunidade internacional, e até
quando será possível para o governo americano manter o apoio simultâneo em duas
frentes — a Israel na Palestina e a Kiev contra a Rússia — ambas as
especialistas apontam para a hipocrisia existente na retórica americana e para
o peso de Israel dentro da política dos EUA, tanto interna como externa.
Silvia Ferabolli
afirma que não haveria chance de que uma resolução que previsse algum tipo de
retaliação a Israel tivesse o aval dos EUA.
"Israel movimenta
o segundo maior lobby dentro do Congresso norte-americano hoje. Esse lobby tem
a capacidade de mobilizar o Congresso norte-americano para aprovar resoluções
em favor de Israel. Note como o poder econômico desses grupos judaicos sionistas,
a capacidade econômica deles de financiar campanhas eleitorais, especialmente
dos democratas, tem criado essa situação na qual a própria democracia, o
conceito que nós temos de democracia, ele acaba sendo desestabilizado,
exatamente porque se entende hoje que a política externa norte-americana para o
Oriente Médio não é orientada pelos interesses nacionais norte-americanos, mas
pelo lobby israelense em Washington."
Ela acrescenta que a
situação em Gaza mostra que "estamos claramente vivendo numa transição de
ordem", na qual "a ordem internacional do pós-Guerra Fria, centrada
nos Estados Unidos e seus aliados ocidentais, não se sustenta mais".
"A gente está num
momento de transição de ordem e essa situação dos Estados Unidos manterem o
apoio a Israel nesse momento, nessas situações, nesses termos faz com que todo
o discurso norte-americano contra as ações russas na Ucrânia perca toda a credibilidade.
Como você pode apoiar um país que está cometendo crimes contra a humanidade e
ao mesmo tempo condenar outro país por estar supostamente cometendo crimes de
guerra e ou contra a humanidade? Então se são dois pesos e duas medidas, o
discurso perde a credibilidade."
Isabela Agostinelli
sublinha que o fato de os EUA manterem o apoio à Ucrânia, sob o argumento de
violação da soberania do país pela Rússia, mas apoiar a ofensiva israelense em
Gaza, "é uma grande hipocrisia, mas que revela os interesses estratégicos
e geopolíticos dos EUA nessas duas regiões".
"Enquanto o
Estado de Israel for o aliado estratégico preferencial dos EUA no Oriente Médio
e os custos dessa aliança forem favoráveis para ambas as partes, Israel estará
blindado dos crimes que comete contra os palestinos."
Ela acrescenta que
"Israel é uma potência militar e nuclear, portanto qualquer resolução
vinculativa ou possibilidade de intervir com forças de paz da ONU deve levar em
consideração essa realidade" e chama atenção para a questão da indústria
bélica.
"Podemos citar as
intensas trocas comerciais entre ambos os países no que diz respeito à
indústria de armas, de alta tecnologia, e de produtos de vigilância e segurança
em geral."
·
Qual a importância de Israel para os EUA no
Oriente Médio?
Silvia Ferabolli
explica que "o pilar de sustentação da estratégia norte-americana para o
Oriente Médio sempre foi o Irã", o que mudou após a Revolução Iraniana de
1979.
"Os EUA perderam
o seu principal pilar de apoio dentro do Oriente Médio. É claro que você pode
me dizer 'Ah, mas tem Arábia Saudita', mas Arábia Saudita é um regime
reacionário, retrógrado, cheio de problemas visíveis, que fica muito difícil
para servir como um aliado americano. Radicalmente diferente do que era um Irã
pré-1979, que era um Estado totalmente ocidentalizado e que queria ser aliado
ocidental."
Ela explica que dentro
das relações internacionais há um conceito que divide aliados em
"assets" (patrimônios) e "liabilities" (fraquezas). Nesse
contexto, diante a situação atual, Israel passou a ser uma
"liability" para Washington.
"Israel, desde
1979, passou a ser um certo aliado americano [no Oriente Médio]. Mas
sinceramente hoje há um consenso entre os pensadores de relações internacionais
de que Israel não serve para nada para Washington, a não ser para criar guerra
na região, para criar insegurança regional e assim movimentar a indústria
bélica norte-americana. Se a gente for pensar dentro desses termos, daí Israel
serve sim [como aliado]. Se não for dentro desses termos, Israel não tem
nenhuma serventia em termos de apoio político aos EUA, ele é realmente uma
'liability'", explica.
Nesta semana, em uma
reunião virtual, autoridades americanas levaram suas preocupações a autoridades
israelenses relativas aos planos de Tel Aviv para iniciar uma ofensiva
terrestre em Rafah, região ao sul da Faixa de Gaza, na fronteira com o Egito,
para onde 1,5 milhão de palestinos se deslocaram em busca de abrigo ou na
tentativa de deixar o enclave. A reunião terminou sem um acordo concreto, com o
lado israelense informando que vai levar em conta as preocupações de
Washington.
Questionada sobre o
que a reunião poderia propor, Silvia Ferabolli diz considerar que o principal
ponto de preocupação dos EUA foi como a ofensiva pode afetar o Egito.
"Essa ofensiva em
Rafah vai empurrar um milhão e meio de palestinos para onde? Para o Egito. E
desde os acordos de Camp David o Egito é o segundo maior receptor de ajuda
externa norte-americana no mundo, só perdendo para Israel. O Egito recebe milhões,
se não bilhões de dólares norte-americanos por ano para manter a paz com
Israel. Mas para isso Israel tem determinados compromissos a cumprir para que
os acordos de Camp David continuem em pé, e empurrar um milhão e meio de seres
humanos doentes, famintos e desesperados para o território egípcio, não é algo
que os aliados egípcios norte-americanos vão aceitar e vão começar a reclamar,
como já estão reclamando."
Ela acrescenta que a
construção de um muro para bloquear a fronteira com a Faixa de Gaza é uma
declaração do Egito "de que eles não vão assumir a responsabilidade pelos
crimes que estão sendo cometidos por Israel".
"Porque Israel,
desde a sua fundação e até antes, tem expulsado os palestinos do seu
território. E para onde os palestinos fogem? Líbano, Síria, Jordânia, Egito, e
são esses países que vem há décadas mantendo os custos humanos e econômicos da
diáspora palestina. Até quando esses Estados árabes vão continuar sustentando a
posição israelense? Um país miserável como a Síria ou como a Jordânia, o
Líbano, são eles que estão sustentando milhões de palestinos que deveriam estar
no seu território. E não estão porque foram expulsos por Israel. E agora começa
mais uma leva de diáspora palestina", diz a especialista.
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Discussão sobre a ofensiva em Gaza pode ser
um marco na nova ordem global?
Atualmente, países do
Sul Global, como Brasil, Rússia e África do Sul, vêm liderando as críticas à
ofensiva israelense. Para as especialistas, esse é mais um indício de mudança
na ordem global vigente.
"Estamos
testemunhando uma mudança nas relações de poder das grandes potências no
Oriente Médio, com participação diplomática mais ativa da China, por exemplo, e
relações econômicas e militares com a Rússia. Brasil e África do Sul têm
adotado posturas mais críticas a Israel. No entanto, no caso do Brasil, essa
postura se resume ao âmbito discursivo. O Brasil mantém suas relações
comerciais, em especial na indústria tecnológica e de armas, com Israel",
explica Isabela Agostinelli.
Silvia Ferabolli
destaca que um indício dessa mudança na ordem global foi o fato de a África do
Sul ter apresentado ao Tribunal Penal Internacional (TPI) a denúncia contra
Israel por genocídio e também de ter sido o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva o primeiro líder a se pronunciar contra a ofensiva.
"Lula foi a
primeira autoridade internacional a realmente criticar Israel abertamente,
dizendo 'O que vocês estão fazendo é parecido com o Holocausto'. E é, a gente
não pode pensar de maneira diferente. Então é claro que países como o Brasil,
África do Sul e Rússia já estão liderando uma frente, que faz com que outros
países também se sintam um pouco mais confortáveis para criticar Israel."
Ademais, ela
acrescenta que mais países devem seguir o discurso do Sul Global também por
conta das consequências da ofensiva, sobretudo na Europa.
"Porque grupos
como Hamas, Hezbollah podem realmente aproveitar essa situação para demonstrar
de maneira violenta a revolta deles com o que está acontecendo, e não vai ser
em território americano que isso vai acontecer. Vai acontecer na Alemanha, na
França, na Inglaterra. E é por isso que os aliados norte-americanos europeus se
preocupam tanto com a ideia de que isso [a ofensiva israelense] tem que parar.
Porque quem sofrerá as retaliações de uma situação dessa, que é uma catástrofe
humanitária, são aqueles que estão mais perto do Oriente Médio. Os Estados
Unidos têm um oceano para proteger eles, os europeus não têm esse luxo",
conclui a pesquisadora.
Fonte: Sputnik Brasil
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