Orçamento
para povos indígenas: um compromisso necessário e urgente
Qual
o impacto do orçamento público na garantia dos direitos dos povos indígenas? Ao
analisarmos os gastos da União em 2023 – primeiro ano da gestão do novo governo
Lula – ainda não encontramos, do ponto de vista orçamentário, o cenário ideal.
Após quatro consecutivos anos de uma política declaradamente anti-indígena, a
tentativa é de retomada.
Ainda
em campanha eleitoral, o então candidato Lula compareceu ao Acampamento Terra
Livre (ATL) e declarou, dividindo palco com lideranças de todo o Brasil, que,
em seu terceiro mandato, criaria o Ministério dos Povos Indígenas e faria
avançar a política indigenista do país. Aquela manhã de abril de 2022 arrancou
lágrimas e semeou a esperança, em um momento em que ainda vivíamos o último dos
quatro anos de uma gestão federal marcadamente anti-indígena.
Durante
o governo Bolsonaro, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) foi
capturada para trabalhar contra sua missão institucional. Como documentamos no
dossiê “Fundação Anti-Indígena”, escrito em parceria com a Indigenistas
Associados (INA), servidores foram perseguidos, houve recusa em atender a
comunidades indígenas em terras ainda não homologadas, incentivo a atividades
econômicas predatórias nos territórios e o órgão chegou a advogar
contrariamente aos direitos territoriais indígenas. À captura do órgão,
somavam-se, ainda, problemas estruturais, como: quadro esvaziado de servidores,
desvalorização da carreira e estrangulamento orçamentário.
Foi
nesse cenário de terra arrasada que o novo governo Lula iniciou o seu percurso.
Como em outras pastas, a retomada prometida da política indigenista requereu um
esforço de “arrumação da casa”, perpassando pela presença inédita de indígenas
para assumir a gestão de seus órgãos. Tanto o novo Ministério dos Povos
Indígenas (MPI) como a Funai e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai)
passaram a ser comandados por lideranças dos povos originários.
Tivemos
o início de um novo ciclo, mas a análise dos dados orçamentários do primeiro
ano da nova gestão Lula demonstra que há dificuldades que ainda permanecem.
Dados
analisados pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) com relação aos
gastos da União demonstram que, em 2023, a Funai executou R$ 589,77 milhões
apesar de seu orçamento autorizado ter sido de R$ 846,87 milhões. Os recursos
foram destinados tanto à manutenção da estrutura do órgão como para realizar a
política na ponta¸ as chamadas ações finalísticas.
Merece
especial atenção à regularização, demarcação, fiscalização de terras indígenas
e proteção dos povos indígenas em isolamento voluntário. O orçamento autorizado
para a referida ação quadruplicou entre 2022 e 2023. No entanto, o crescimento
da execução financeira não seguiu o mesmo ritmo. Mesmo executando quase o dobro
do orçamento do ano anterior, os gastos não foram suficientes diante da
urgência de efetivação da demarcação de terras indígenas em nosso país.
Essa
dificuldade de execução financeira preocupa e revela que, mesmo com esforços do
órgão em retomar a política indigenista (o orçamento empenhado alcançou níveis
altíssimos), há entraves mais estruturais para sua atuação. A forma de
funcionamento da Funai segue atravancando a realização de suas ações
finalísticas, assim como o esvaziamento do quadro de servidores.
Esses
são problemas de longa data do órgão. Superá-los pode vir a ser uma importante
contribuição desse governo. Em um contexto em que as forças anti-indígenas
seguem organizadas e atuantes, faz-se necessário fortalecer os órgãos
indigenistas com a priorização política do governo, mas também com mais
orçamento e construção de capacidade para executá -lo. Esse é um compromisso
que precisa estar na ordem do dia do governo federal.
Relatora
da ONU recomenda ao STF decisão sobre a Lei do Marco Temporal e cobra do
governo demarcações
A
relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a situação de
pessoas defensoras de direitos humanos, Mary Lawlor, recomendou nesta
sexta-feira (19) que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgue com brevidade as
petições que questionam a Lei 14.701/2023, a chamada Lei do Marco Temporal,
tratada pela relatora como uma tese indutora de violência contra defensores e
defensoras indígenas de direitos humanos.
Durante
coletiva de imprensa, onde a relatora apresentou sua declaração final da visita
ao Brasil, Mary questionou “por que (a tese do marco temporal) está parada no
STF de novo? Proteger defensores e defensoras são pequenos passos, não é apenas
uma decisão global para resolver, mas uma rápida decisão (do STF) colocando fim
à tese é o que desejam os defensores e defensoras e, portanto, é o que eu peço
e desejo”.
O
encerramento da visita da relatora ocorre em uma ocasião especial, o Dia dos
Povos Indígenas, data celebrada país afora, mas destacada para dar visibilidade
às emergências envolvendo os direitos dos mais de 305 povos espalhados em todos
os biomas nacionais, mas também nos centros urbanos. Em 2022, conforme o IBGE,
o número de indígenas no Brasil era de 1.693.535 pessoas, o que representa
0,83% da população total do país.
Em
conexão com a recomendação à Corte Suprema para tratar com celeridade das ações
diretas de inconstitucionalidade a respeito da Lei do Marco Temporal, a
relatora recomendou ao governo federal a demarcação urgente e adequada das
terras indígenas como principal mecanismo de proteção aos defensores e
defensoras de direitos humanos entre os povos originários.
“As
pessoas defensoras de direitos humanos que mais correm risco no Brasil são
indígenas e quilombolas, membros de comunidades tradicionais. Em muitos casos,
os autores dos ataques são conhecidos. No entanto, a impunidade por esses
crimes continua desenfreada”, declarou. Além de áreas indígenas, a relatora
visitou comunidades quilombolas e agroextrativistas.
Nesta
quinta-feira (18), durante posse dos novos integrantes do Conselho Nacional de
Política Indigenista (CNPI), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou a
homologação de duas terras indígenas. No entanto, apesar de celebrada, a
iniciativa de Lula decepcionou organizações e lideranças indígenas que
esperavam no mínimo seis homologações, de acordo com o que havia sido dito a
elas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Logo
após conversar com os jornalistas, a relatora da ONU cobrou Lula na rede X a
respeito da homologação das quatro terras indígenas não contempladas na
cerimônia, conforme o governo havia prometido às organizações indígenas.
• A
visita da relatora da ONU
A
relatora da ONU visitou, entre os dias 8 e 18 deste mês, aldeias indígenas,
comunidades quilombolas, ocupações sem terra e bairros pobres da Bahia, Pará,
São Paulo e Mato Grosso do Sul para observar o cotidiano e relatar os desafios
enfrentados por defensores e defensoras de direitos humanos. Esteve reunida
ainda com movimentos sociais, governos estaduais e ministros da República, bem
como com o Ministério Público Federal (MPF).
O
objetivo é elaborar um relatório para ser apresentado na próxima reunião do
Conselho de Direitos Humanos da ONU, em março de 2025. Ocorre que até lá a
relatora já pode adiantar recomendações urgentes em diálogo com as instituições
do Estado, mesmo porque, conforme Mary ressaltou, ainda realizará entrevistas
online com mais defensores de direitos humanos e solicitará mais dados ao
governo federal.
“A
partir da minha visita, estou atenta ao trabalho que o governo federal está
fazendo e às medidas que estão tentando tomar para melhorar a situação dos
direitos humanos no Brasil, mas não é o que mais me marcou. O que permanece
mais claro em minha mente são os níveis de risco a que defensoras e defensores
estão expostos e a violência extrema que enfrentam”, declarou Mary.
• Brutalidade
remete à violência colonial
No
Mato Grosso do Sul e na Bahia, Mary esteve com defensores e defensoras dos
povos Guarani e Kaiowá e Pataxó, Pataxó Hã-hã-hãe e Tupinambá. A relatora
afirmou que a “brutalidade” das violações perpetradas remetem às violências
colonial e da Ditadura Militar (1964-1985). Para ela, o fracasso do Estado é
indissociável ao observado pela relatoria da ONU durante estes dias no Brasil.
Na
Bahia, a relatora ouviu o relato dos Pataxó, povo que vem sofrendo ataques
violentos em um circuito de terras indígenas que se tornaram alvos constantes
de uma milícia autointitulada Invasão Zero, fruto de uma articulação mais ampla
dos inimigos dos povos indígenas país afora. Nailton Pataxó Hã-hã-hãe conversou
com Mary e relatou o atentado a tiros que sofreu deste milícia, em janeiro
deste ano, ao lado de seu povo, em uma área retomada no município de Potiraguá.
A irmã de Nailton, Nega Pataxó Hã-hã-hãe, foi atingida pelos disparos e não
resistiu. Nailton também foi atingido por tiros e encaminhado ao hospital. Há
suspeitas de que a Polícia Militar facilitou a ação miliciana.
Em
Amambai, no Mato Grosso do Sul, a relatora da ONU esteve no tekoha – lugar onde
se é – Guapoy. Este território tradicional é emblemático para tratar da
violência sofrida pelos defensores de direitos humanos do povo Guarani e
Kaiowá. Nele ocorreu o chamado ‘Massacre de Guapoy’, episódio marcado pela
violenta ação da Polícia Militar do estado, que assassinou o indígena Vitor
Fernandes e deixou dezenas de feridos.
Mary
ouviu ainda a respeito da violência sofrida por 30 indígenas que retomaram
parte de seu território ancestral, localizado dentro do macro território
Dourados-Amambai Pegua II, em Naviraí. Os Guarani e Kaiowá sofreram um ataque
armado. Identificaram, entre seus agressores, fazendeiros, jagunços e
integrantes da PM – esses últimos, inclusive, postaram vídeos em redes sociais
comemorando a ação de despejo ilegal.
No
tekoha Guapoy, a relatora da ONU ouviu também o testemunho dos familiares do
cacique Nísio Gomes Guarani e Kaiowá, morto em 18 de novembro de 2011 no tekoha
Guaiviry. Após o ataque, o corpo de Nísio foi levado do tekoha sendo ocultado
pelos assassinos. Até hoje a família nutre esperanças de encontrá-lo para
enterrá-lo na terra pela qual o cacique e rezador entregou a própria vida.
Contaram
à relatora sobre o ataque desferido contra o tekoha Pyelito Kue e aos
acampamentos nas retomadas feita pelos Guarani e Kaiowá ao redor da Reserva de
Dourados, onde os fazendeiros contratam empresas de segurança para atacar dia e
noite os indígena, inclusive com a utilização de tratores adaptados a tanque de
guerra, chamado pelos indígenas de “caveirão”.
Outro
testemunho impactante para a relatora trata das mulheres Guarani e Kaiowá do
tekoha Araticuty ameaças de morte e que sofrem assédio sexual quando vão levar
as crianças na escola. Outro relato que chegou à relatora trata da retirada
compulsória de crianças indígenas das famílias Guarani e Kaiowá sob alegações
falsas, de cunho religioso e proselitista, que criminalizam a situação de
penúria vivenciada pelo povo.
Para
Mary, isso está longe de ser um contexto novo; é uma conjuntura histórica.
“Aqueles que se levantam para defender seus direitos no Brasil, para
reivindicá-los diante das tentativas de negação da sua própria existência,
sempre o fizeram em grande risco. Isso foi verdade na luta contra a escravidão
e na luta para superar o colonialismo, quando as pessoas se organizaram contra
a ditadura militar e ao longo do século 21”, disse.
Em
sua declaração final, a relatora da ONU lembrou que a situação observada
remonta aos quatro anos no Palácio do Planalto do ex-presidente Jair Bolsonaro,
declaradamente anti-indígena, incentivador das invasões aos territórios e
exploração ilegal de recursos naturais. Citou nominalmente as violência como
parte “do governo anterior, quando os riscos para pessoas defensoras aumentaram
drasticamente”.
• Mais
recomendações
Ao
Governo Federal, a relatora recomendou “considerar todas as possibilidades de
garantir urgentemente direitos sobre seu território para todos os povos
indígenas e quilombolas do país, em especial por meio da demarcação e
titulação, e da remoção de invasores”. A terra é a principal causa dos ataques
sofridos pelos defensores e defensoras, pontuou Mary, sendo que garantir o
direito a ela às comunidades é parte estruturante da política de proteção.
O
presidente Lula precisa, na recomendação da relatora, “declarar publicamente a
proteção de pessoas defensoras de direitos humanos e o fim da impunidade por
crimes contra eles como uma prioridade para o governo federal, e pedir a
cooperação de todas as autoridades estaduais para garantir sua proteção”. Mary
demonstrou em suas primeiras conclusões que o governo mostra preocupação com a
problemática, mas faltam ações mais energéticas.
Para
o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), a relatora sugere que os esforços se
voltem “ao pleno respeito à Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) “para projetos do setor estatal e privado, respeitando a
abordagem e as tradições desejadas das comunidades afetadas e prestando
especial atenção às seguintes indústrias: mineração, exploração madeireira,
agronegócio, créditos de carbono, desenvolvimento de infraestrutura e produção
de energia”.
Por
outro lado, “reconhecer e apoiar as medidas proativas que estão sendo tomadas
pelos povos indígenas para realizar seus direitos, incluindo o direito à
autodeterminação. Isso inclui respeitar e observar os protocolos de consulta e
consentimento desenvolvidos pelos povos indígenas”.
Fonte:
Por Leila Saraiva, no Le Monde/Cimi
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