A favela não venceu: Davi do BBB e a realidade da vida
A
realidade das favelas no Brasil é um tema complexo e multifacetado, que vai
muito além de meras estatísticas. Questões como acesso à educação de qualidade,
representatividade nas universidades e no mercado de trabalho, além da luta
contra o racismo estrutural são apenas alguns dos desafios enfrentados por
essas comunidades. Neste contexto, a história de Davi, um jovem morador de
favela que participou do Big Brother Brasil e alcançou sucesso, destaca-se como
um exemplo inspirador. No entanto, sua trajetória também evidencia as profundas
desigualdades sociais e as barreiras enfrentadas por aqueles que buscam romper
com o ciclo de marginalização.
A
educação, por exemplo, é um dos pilares fundamentais para a transformação
social, mas os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) revelam uma dura realidade: a falta de acesso à educação de qualidade
afeta de forma desproporcional os jovens negros e pobres do país. De acordo com
dados do PNAD 2023, no grupo etário de 14 a 29 anos, 9,0 milhões de pessoas não
completaram o ensino médio, sendo que 71,6% delas eram pretos ou pardos. Esse
cenário reflete a desigualdade estrutural que permeia nossa sociedade, onde a
cor da pele e a condição socioeconômica continuam sendo fatores determinantes
na trajetória educacional e profissional das pessoas.
Apesar
dos avanços conquistados nas últimas décadas, como a implementação de políticas
de cotas e a ampliação do acesso à educação superior, ainda há um longo caminho
a percorrer. Em 2022, o IBGE divulgou que a população preta e parda já
representa 56,1% do total no Brasil, mas ainda ocupa apenas 48,3% das vagas
universitárias, tanto em instituições públicas quanto privadas.
Essa
discrepância mostra que a luta por igualdade de oportunidades e por uma
sociedade mais justa está longe de ser vencida. A presença negra na
universidade, mesmo que crescente, ainda está aquém da sua representação na
sociedade, e aparece nos cursos considerados de “baixo prestígio”.
A
análise sociológica, sobretudo a partir da perspectiva de Max Weber, nos
permite compreender que a divisão social do trabalho e a hierarquização das
profissões são determinadas por processos históricos e estruturais. As
profissões de alto prestígio, como Medicina e Direito, têm o poder de preservar
seu status através de associações corporativas, o que dificulta a ascensão de
grupos historicamente marginalizados.
ENTRE
O “REALITY” E A REALIDADE
O
jovem Davi entrou no reality show com o sonho de virar médico. Ele, tal qual o
intelectual Weber, entendeu que o prestígio é alcançado a partir dessas castas
que são forjadas na construção das elites cooperativas e protegidas por
estruturas bem montadas. Por exemplo, o Conselho Federal de Medicina, que
organiza um conjunto de regramentos densos e duros para que, mesmo com o
problema da falta de acesso à saúde sendo enorme, o funil para se tornar médico
faça com que apenas “herdeiros privilegiados” acessem esse poder.
O
fetiche é a atribuição de qualidades místicas ou sobrenaturais a objetos ou
pessoas. Neste caso, ao prestígio e sucesso a certas profissões, por alcançar
esses lugares faz com que os nossos se alienem. A alienação é quando um
indivíduo se desliga ou se distancia da realidade, muitas vezes por influência
de estruturas sociais opressivas. Distanciando do interesse em organizar
vitórias mais coletivas, partindo para iniciativas que têm como meta o sucesso
individual e, mais diretamente, de seus familiares. Eles estão errados? Não é
esse o debate.
O
que quero trazer é o quanto a sociedade de forma visível e nítida organiza o
racismo institucional, que gera elites, para que briguemos para participarmos
dessa elite, sem questionarmos o quanto alguns movimentos individuais
fortalecem o racismo estrutural. Quantos de nós já ouvimos que devíamos ser
médicos ou advogados?
A
história de Davi, um jovem morador de favela que consegue acessar o sucesso, é
inspiradora e representa uma vitória individual. No entanto, para que a favela
como um todo possa ser considerada vitoriosa, é necessário que as políticas
públicas avancem no sentido de garantir oportunidades iguais para todos,
independentemente da cor da pele ou da condição social.
A
favela só vencerá quando as pessoas não forem mais julgadas com base em
estereótipos raciais e sociais, e quando a vida e a morte deixarem de ser
determinadas por esses mesmos marcadores. A luta por igualdade e justiça social
é um processo contínuo, que requer o engajamento de toda a sociedade na busca
por um futuro mais inclusivo e equitativo para todos.
Nesse
sentido, a vitória do Davi deve ser uma referência de que todas as pessoas
negras podem chegar muito mais longe, o que falta é oportunidade. Essa
conquista deve representar também que, mesmo com todo mérito, suor e luta do
movimento negro, temos que atualizar os nossos debates, métodos e pensarmos em
como fazer uma educação antirracista de forma mais popular a ponto de termos
muitos Davis que lutam e têm vitórias individuais, mas que refletem, organizam
e incentivam as lutas coletivas.
Davi
é um jovem, não cabe responsabilizá-lo ou elegê-lo como herói sem saber se é
isso que ele deseja. “Deixem o menino jogar”. Tenho expectativas positivas,
mas, no geral, mesmo com dinheiro, ele continuará numa luta árdua e cotidiana
para provar seu merecimento, o que é bastante injusto e às vezes imperceptível,
mas existirá. Espero dele apenas saúde, coerência e muito sucesso.
Fonte:
Por Herlon Miguel, em Le Monde
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