O que diz a lei sobre rescisão de convênios
de idosos
Durante uma consulta
de rotina com o cardiologista, a
aposentada Stella Tarantino Lima, de 90 anos, foi orientada a marcar uma
avaliação com um nefrologista, o médico especialista em rins. Mas o que parecia ser uma
tarefa simples se transformou rapidamente num susto e numa enorme dor de cabeça
que se prolongou por semanas.
Logo após a passagem
pelo cardiologista, uma das filhas de Stella, a engenheira Marília Tarantino
Burger, foi buscar na internet um nefrologista que estivesse dentro da
cobertura da Unimed Nacional, o convênio da mãe dela.
Apesar de mudanças
constantes nos nomes de empresas e nos pacotes de benefícios oferecidos, a
aposentada paga o plano de saúde há
mais de 30 anos. Atualmente, a mensalidade sai por cerca de R$ 3.900,00.
Ao acessar o portal do
cliente no final de março, porém, veio a surpresa na forma de uma mensagem:
"A Unimed Nacional reitera que o contrato encontra-se em fase de rescisão,
tendo sua vigência encerrada em 09/05/2024."
"Fiquei perplexa,
não entendi direito o que aquilo significava…", relata Marília.
"Procurei uma
consultora que analisa os planos de saúde e ela me confirmou que o plano seria
de fato rescindido."
“E só descobrimos isso
por acaso, porque entramos no sistema para buscar um especialista”, destaca
ela.
Stella confessa que
ficou indignada e aborrecida com a notícia.
"Simplesmente me
botaram para fora, sem justificativa nenhuma", conta ela.
"Imagine pagar
por um serviço durante 30 anos, para uma entidade que você confia, e de repente
ser ‘cancelada’. Fiquei frustrada e com medo, pois já tenho 90 anos."
A jornalista Mônica
Tarantino, outra filha de Stella, resolveu expor a situação nas redes sociais. Uma postagem que ela compartilhou no Linkedin sobre o caso recebeu mais de 9,5 mil curtidas.
"Nos comentários,
muita gente relatou situações bem parecidas, de idosos, de pessoas em
tratamento de câncer e até de crianças com autismo que acabaram
excluídas pelos planos de saúde", destaca Mônica.
"Eu não esperava
essa repercussão com a postagem. Porque as empresas cancelam um contrato aqui e
ali e achamos que sempre são casos pontuais. Mas não é uma coisa individual.
Parece existir um problema coletivo aqui", considera ela.
De fato, os números da
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a instância do governo responsável
por regular esse setor, mostram que essas rescisões de contrato pelas empresas
são relativamente frequentes.
Segundo
reportagem publicada no jornal Valor Econômico, nos últimos cinco anos foram mais de 69 mil reclamações
relacionadas ao cancelamento unilateral dos planos de saúde. Apenas nos três
primeiros meses de 2024, a ANS contabilizou 4,8 mil queixas do tipo.
O advogado Rafael
Robba, sócio do Vilhena Silva, escritório especializado em direito à saúde,
também notou um aumento de casos parecidos ao de Stella.
"Essa prática dos
planos de saúde tem se tornado cada vez mais comum", observa ele.
"Nós fizemos um
levantamento aqui no escritório e, só no primeiro trimestre deste ano,
ingressamos com o triplo de ações relacionadas à rescisão de contratos em
comparação com o mesmo período do ano passado."
·
'Legislação omissa'
Robba explica que
existem dois tipos principais de planos de saúde. O primeiro é o individual,
que uma pessoa contrata diretamente para si ou para a família.
O segundo é o
coletivo, que geralmente é acertado por uma empresa para os funcionários — ou
por sindicatos e entidades de classe para os associados.
"Para os planos
individuais ou familiares, a legislação proíbe o cancelamento unilateral do
contrato, a menos que exista inadimplência ou fraude", explica o advogado.
No entanto, a mesma
regra não vale para os convênios coletivos. Nesses casos, as empresas podem,
sim, fazer o cancelamento quando bem entenderem, se isso estiver previsto no
contrato que foi assinado no início.
A rescisão só deve
respeitar três regras. Número um: ela só pode ocorrer na data de aniversário do
contrato. Dois: toda a carteira de clientes daquele plano coletivo deve perder
o acesso (ou seja, não é possível excluir um indivíduo específico). E três: os
usuários devem ser avisados com dois meses de antecedência sobre o término.
"A legislação é
omissa e, por conta disso, as operadoras colocam no contrato essa previsão de
que podem cancelar o contrato sem nenhuma justificativa", opina Robba.
A advogada Marina
Magalhães, pesquisadora do Programa de Saúde do Instituto de Defesa do
Consumidor (Idec), destaca que a esmagadora maioria dos brasileiros que possuem
planos de saúde estão em contratos coletivos — como a própria Stella.
"Cerca de 82% dos
brasileiros com acesso à saúde complementar têm planos coletivos", estima
ela.
"Os planos
individuais, em que não há a possibilidade de cancelamento, são uma minoria e
estão cada vez mais restritos e difíceis de contratar", complementa ela.
Os consumidores
precisam recorrer, então, aos planos coletivos oferecidos para empresas,
sindicatos e associações, mesmo que exista o risco do cancelamento unilateral.
No entanto, essa
rescisão pode ser contestada na Justiça — algo que os especialistas ouvidos
pela BBC News Brasil dizem estar cada vez mais frequente.
“Em determinadas
situações, esses cancelamentos podem ser considerados abusivos, principalmente
quando o contrato inclui pessoas muito idosas ou que fazem um tratamento de
saúde, que dificilmente vão conseguir contratar outro plano”, aponta Robba.
“Nesses casos, a
rescisão contraria a própria natureza do plano de saúde, que é justamente
proteger a pessoa quando ela precisa de um cuidado. Nós pagamos o convênio por
longos anos, enquanto estamos saudáveis, para justamente ter a garantia de
usá-lo quando necessário.”
“E essa decisão deixa
a pessoa numa situação de extrema vulnerabilidade”, complementa ele.
“No Idec, consideramos
essa prática patentemente abusiva, em desacordo com o Código de Defesa do
Consumidor e o Código Civil”, destaca Magalhães.
Robba explica que,
nesses casos, os advogados que representam os clientes podem entrar com pedidos
de liminar na Justiça para restaurar o plano — geralmente, os juízes tomam
decisões favoráveis às pessoas e contrárias às empresas.
“O Judiciário tem dado
respostas muito rápidas nessas situações, muitas vezes no mesmo dia”, diz ele.
“A ideia da liminar é
justamente preservar o bem jurídico mais valioso que nós temos, que é a saúde e
a vida. Em situações de cancelamento, o Judiciário tem dado respostas efetivas
para impedir esse tipo de abuso contra o consumidor.”
Os especialistas
concordam que, apesar da agilidade dos processos e das liminares na Justiça, é
preciso pensar em maneiras de resolver o problema na origem — ou seja, diminuir
as brechas na legislação e coibir o cancelamento unilateral dos planos.
Existe um projeto de
lei em discussão na Câmara que pretende mudar algumas das regras que regem o
mercado dos convênios.
O PL 7419, criado em
2006, agrega cerca de 270 propostas de modificações na legislação — entre elas,
uma possível proibição do cancelamento unilateral dos contratos coletivos.
O atual relator do
projeto é o deputado Duarte Jr. (PSB-MA), que divulgou um parecer sobre as
mudanças na lei em setembro do ano passado e fez o assunto voltar à pauta.
Em outubro, porém, o
deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, disse que o projeto de lei
dos planos de saúde ainda não seria colocado em votação pelo plenário, pois há
a necessidade de se discutir melhor o assunto e incluir as operadoras de saúde
no debate.
“Não temos nenhuma
sinalização de que esse cenário vai mudar em breve”, lamenta Magalhães.
·
'Qualidade do serviço'
e 'sustentabilidade'
Procurada pela
reportagem, a ANS informou que “atua ativamente na defesa dos direitos de todos
os beneficiários da saúde suplementar, mantendo e atualizando normativos que
visam protegê-los”.
“Por isso, a
reguladora destaca que tem regras claras sobre o cancelamento de planos e
salienta que a operadora que rescindir o contrato de beneficiários, seja de
plano coletivo ou individual, em desacordo com a legislação do setor pode ser
multada em valores de até R$ 80 mil.”
“Importante destacar
que é lícita a rescisão unilateral, por parte da operadora, do contrato
coletivo com beneficiários em tratamento. No entanto, se houver a rescisão do
contrato de plano coletivo (por qualquer motivo) e existir algum beneficiário
ou dependente em internação, a operadora deverá arcar com todo o atendimento
até a alta hospitalar. Da mesma maneira os procedimentos autorizados na
vigência do contrato deverão ser cobertos pela operadora, uma vez que foram
solicitadas quando o vínculo do beneficiário com o plano ainda estava ativo”,
destaca a ANS.
“A agência orienta o
usuário que estiver enfrentando problemas de atendimento para que procure,
inicialmente, sua operadora para que ela resolva o problema e, caso não tenha a
questão resolvida, registre reclamação junto à ANS nos canais de atendimento [site,
telefone e postos físicos]”, conclui a nota.
Já a Associação
Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) destacou que, “com o objetivo de
garantir a qualidade na prestação dos serviços de saúde e a sustentabilidade
dos contratos, as operadoras avaliam continuamente cada um dos seus produtos
comercializados em conformidade com as regras da Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS)”.
“Essa avaliação pode
indicar a necessidade de readequar a estrutura dos produtos (planos de saúde) e
descontinuar outros. Vale ressaltar, portanto, que pode haver a rescisão do
contrato entre as pessoas jurídicas (a empresa contratante e a operadora) a pedido
de uma ou outra parte, devendo ser sempre precedida de notificação prévia,
observando-se as disposições contratuais”, explica o texto.
“As operadoras possuem
amplo portfólio de planos de saúde ativos sendo comercializados, proporcionando
assim opções para quem deseja manter ou adquirir acesso à saúde suplementar”,
diz a Abramge.
·
Plano restaurado
Enquanto buscava documentos
e estudava as alternativas judiciais e de novos planos de saúde, a família
Tarantino foi surpreendida por uma nova notícia.
A Qualicorp, empresa
que administra os planos de saúde, entrou em contato com Mônica no dia 11 de
abril e informou que houve um "erro de comunicação". Portanto, o
plano de saúde de Stella não havia sido cancelado de fato.
A BBC News Brasil
entrou em contato com a Qualicorp e com a Unimed Nacional, que confirmaram a
informação.
"Já estamos em
contato com a família da beneficiária para garantir que todas as questões sejam
esclarecidas de forma abrangente e satisfatória", escreveu a Unimed.
"O plano está
ativo e disponível para utilização, tanto pela beneficiária, quanto pelos
demais associados da entidade. A administradora de benefícios informa que
enviou comunicação para a cliente para prestar o devido esclarecimento e
disponibiliza seus canais oficiais para esclarecer mais informações e tirar
dúvidas", complementou a Qualicorp.
Para Mônica, a notícia
representa um alívio, mas não resolve todos os problemas.
“O cancelamento da
exclusão da minha mãe resolve temporariamente uma questão individual que ganhou
muita visibilidade, mas não muda um cenário que permite às operadoras excluírem
unilateralmente os usuários dos planos por adesão”, avalia ela.
“Isso precisa ter fim,
o que só acontecerá quando houver legislação que ponha um freio em mais esse
abuso.”
Mônica pretende agora
compilar todos os relatos que foram compartilhados nas postagens de redes
sociais sobre cancelamentos de planos de idosos, crianças com autismo ou
pacientes com câncer — e depois compartilhá-los com as autoridades.
“Quem sabe isso possa
servir de subsídio para que as agências reguladoras e os legisladores tomem
alguma decisão?”, questiona ela.
Já Stella diz ter
perdido a confiança no plano de saúde — e teme ser excluída novamente no
futuro.
“Quem garante que eles
não vão me colocar para fora de novo assim que essa crise de agora for
esquecida?”, conclui ela, referindo-se à repercussão do seu caso.
Fonte: BBC News Brasi
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