O mistério do tecido antigo que ninguém
sabe como recriar
Na Europa do fim do século
18, uma nova moda virou também um escândalo: toda uma classe social foi acusada
de aparecer em público... nua.
Tudo porque a
musselina de Dhaka, um tecido valioso importado da cidade de mesmo nome no que
hoje é em Bangladesh, se tornou uma sensação entre a aristocracia europeia,
Embora o tecido fosse
originalmente usado em saris e jamas (roupas tradicionais da região da Índia,
para mulheres e homens respectivamente), em países europeus como Inglaterra e
França ele se tornou o estilo da aristocracia. Vestidos muito estruturados, que
mal passavam pela porta, deram lugar a aparentes "camisolas" com esse
pano um pouco transparente, leve e delicado.
Em uma ilustração
satírica e popular de Isaac Cruikshank, mulheres aparecem juntas com seus
vestidos longos e coloridos de musselina, pela qual se veem também seus mamilos
e pelos pubianos. Abaixo, a descrição diz: "Senhoras parisienses com seus
vestidos de inverno para 1800".
Apesar das críticas, a
musselina de Dhaka foi acima de tudo um sucesso — entre aqueles que podiam
pagar por ela. O tecido era o mais caro da época, com adeptos como a rainha
francesa Maria Antonieta, a imperatriz Joséphine Bonaparte e a escritora
inglesa Jane Austen.
Mas tão logo se tornou
uma sensação na Europa iluminista, ele desapareceu.
No início do século
20, após centenas de anos encantando a nobreza de diversos tempos e cantos, a
musselina de Dhaka sumiu da face da Terra.
Sua complicada técnica
de confecção, com 16 etapas, foi esquecida; o raro algodão originado da planta
Gossypium arboreum var. neglecta, que só crescia nas margens do rio sagrado
Meghna e era conhecido localmente como phuti karpas, foi extinto abruptamente.
Como isso aconteceu? E
o desaparecimento pode ser revertido?
• Fios frágeis: uma missão comunitária
Duas vezes ao ano, as
plantas nas margens do Meghna produziam uma única flor amarela, que depois dava
lugar a fibras de algodão.
E estas não eram
fibras comuns. Diferentemente dos fios delgados produzidos por seu primo
centro-americano Gossypium hirsutum, responsável por 90% do algodão mundial
hoje, a phuti karpas produzia fios grossos e frágeis.
Isso pode parecer um
defeito, mas depende de o que você está planejando fazer.
As fibras do algodão
desaparecido seriam inúteis para fazer um tecido barato com o maquinário
industrial dos nossos tempos. Elas desafiam o manuseio por se romperem
facilmente.
Por isso, ao longo de
milênios, a população local desenvolveu técnicas engenhosas para trabalhar com
estes fios delicados. O processo completo envolvia 16 etapas — cada uma tão
especializada que era realizada por aldeias diferentes em torno de Dhaka, distribuídas
no que são hoje Bangladesh e o Estado indiano de Bengala Ocidental.
Era um verdadeiro
esforço comunitário, envolvendo jovens e idosos, homens e mulheres.
Primeiro, as bolas de
algodão eram limpas com minúsculos dentes do peixe-gato de wallago, um nativo
canibal dos lagos e rios da região.
Em seguida, vinha a
fiação. As fibras curtas do algodão exigiam altos níveis de umidade para
esticá-las, por isso essa etapa era realizada em barcos, por grupos habilidosos
de moças no início da manhã e no final da tarde — os horários mais úmidos do
dia.
Finalmente, a
tecelagem. Essa fase poderia levar meses para ser concluída, pois os desenhos —
principalmente formas geométricas representando flores — eram integrados
diretamente ao tecido, usando a mesma técnica aplicada nas famosas tapeçarias
reais da Europa medieval.
• Um tecido que só poderia vir das mãos de
fadas
Longe dali, quem tinha
contato com a musselina de Dhaka duvidava que ela pudesse ser obra de mãos
humanas — havia lendas de que ela era feita por sereias, fadas e até fantasmas.
Poetas dos tempos de
imperialismo britânico chamavam o pano de "baft-hawa" — literalmente
"tecido de ar", pois ele era leve e suave como o vento.
"A leveza, a
suavidade — era diferente de tudo o que temos hoje", afirma Ruby Ghaznavi,
vice-presidente do Conselho Nacional de Artesanato de Bangladesh.
Mas o verdadeiro feito
era a contagem de fios alcançada.
A medida de contagem
de fios é desejavelmente alta porque isto representa materiais mais macios e
duráveis — quanto mais fios houver no início, mais restará para manter o tecido
unido ao longo do tempo.
Saiful Islam, que
dirige uma agência fotográfica e lidera um projeto para ressuscitar o tecido,
diz que a maioria dos tecidos de hoje têm contagem de fios entre 40 e 80 — o
que significa que contêm aproximadamente esse número de fios horizontais e
verticais entrecruzados por polegada quadrada de tecido. A musselina de Dhaka,
por outro lado, tinha contagem de fios na faixa de 800-1200.
Embora a musselina
tenha desaparecido há mais de um século, ainda hoje existem saris, túnicas,
lenços e vestidos com esse tecido nos museus. Ocasionalmente, um exemplar
aparece em casas de leilões sofisticadas como a Christie's e a Bonhams,
abocanhando milhares de libras.
• Auge e declínio com interferência
europeia
"O comércio (do
tecido) foi construído e destruído pela Companhia das Índias Orientais (empresa
britânica que controlava e governava grande parte das Índias)", diz Sonia
Ashmore, uma historiadora do design que publicou em 2012 um livro sobre a musselina.
Antes disso, porém, o
pano já era carregado de história.
Ele era popular entre
os gregos antigos, e o autor romano Petronius pode ter sido o primeiro a ter
uma crítica à transparência do tecido registrada: "Tua noiva pode muito
bem vestir-se com uma roupa de vento, em vez de ficar nua publicamente sob as
nuvens da musselina."
Nos séculos seguintes,
o tecido foi exaltado nos escritos do explorador berbere-marroquino do século
14 Ibn Battuta e do viajante chinês do século 15 Ma Huan, entre muitos outros.
Mas sem dúvida o
apogeu da musselina de Dhaka aconteceu na era Mughal — nome da realeza local. O
império no sul da Ásia foi fundado em 1526 por um guerreiro do que hoje é o
Uzbequistão e, no século 18, seu domínio chegava a todo o subcontinente
indiano. Durante este período, a musselina foi amplamente negociada com
mercadores da Pérsia (atual Irã), Iraque, Turquia e outras partes do Oriente
Médio.
O pano foi totalmente
incorporado pelos imperadores de Mughal e suas esposas, que raramente eram
pintados usando outra coisa.
A nobreza chegava ao
ponto de contratar os melhores tecelões, proibindo-os de vender os melhores
tecidos a terceiros. Segundo uma lenda popular, o imperador Aurangzeb
repreendeu sua filha por aparecer em público nua, quando ela estava, na
verdade, usando sete camadas do pano.
Tudo estava indo muito
bem, até que os britânicos apareceram, conquistando em 1793 o império Mughal
através da Companhia das Índias Orientais.
A musselina de Dhaka
foi exibida pela primeira vez no Reino Unido na Grande Exposição das Obras da
Indústria de Todas as Nações em 1851. Este grande evento foi idealizado pelo
marido da Rainha Vitória, o Príncipe Albert, com o objetivo de mostrar as maravilhas
do Império Britânico aos seus súditos. Cerca de 100 mil objetos de todo o mundo
foram reunidos em um salão de vidro com quase 40 metros de altura, o Crystal
Palace.
Na época, um metro de
musselina de Dhaka tinha preços que variavam ente 50-400 libras, de acordo com
Saiful Islam — aproximadamente 7 mil a 56 mil libras hoje (de R$ 54 mil a R$
433 mil). Mesmo a melhor seda era até 26 vezes mais barata.
Enquanto os londrinos
vitorianos bajulavam o tecido, aqueles que o produziam estavam sendo sugados
para o endividamento e para a falência. Como explica o livro Goods from the
East, 1600-1800, a Companhia das Índias Orientais começou a interferir no delicado
processo de fabricação da musselina de Dhaka no final do século 18.
Primeiro, a empresa
trocou consumidores locais por clientes do Império Britânico.
"Eles realmente
estrangularam a produção e passaram a controlar todo o comércio", diz
Ashmore. Em seguida, passaram a pressionar os tecelões por maiores volumes do
tecido a preços mais baixos.
"Era necessária
uma habilidade especial para convertê-la [a phuti karpas] em tecido", diz
Islam. "É um processo muito árduo e caro — e no final do dia, você só
obtinha cerca de oito gramas de musselina fina por um quilo de algodão."
Conforme os tecelões
lutavam para atender a essas demandas, eles se endividaram, conta Ashmore. Eles
recebiam pagamento adiantado pelo tecido, que poderia levar um ano para ser
feito. Mas se o produto não estivesse de acordo com o padrão exigido, era preciso
devolver a quantia recebida.
"Eles nunca
conseguiam de verdade encerrar as dívidas", diz a historiadora.
O golpe final veio da
competição. À medida que a sede europeia por tecidos de luxo aumentava, surgiu
a demanda pela fabricação de versões mais baratas e em locais mais próximos.
No condado de
Lancashire, no noroeste da Inglaterra, o barão Samuel Oldknow combinou o bom
trânsito nos corredores do poder do Império Britânico com uma tecnologia de
ponta, a roda de fiar, para abastecer os londrinos com grandes quantidades de
pano. Em 1784, 1 mil tecelões trabalhavam para o barão.
Embora a musselina
britânica não chegasse perto da original de Dhaka — aquela era feita com
algodão comum e tecida com contagem de fios significativamente mais baixa —, a
combinação de décadas de dificuldades e o declínio repentino na demanda por
tecidos importados acabou de vez com a produção asiática.
À medida que guerras,
a pobreza e terremotos atingiam a região, alguns tecelões passaram a fazer
tecidos de qualidade inferior, enquanto outros se tornaram agricultores em
tempo integral. No final, toda a cadeia de produção e comércio de Dhaka
entraram em colapso.
"É importante
lembrar que se tratava de uma ocupação familiar — frequentemente falamos sobre
os tecelões e como eles eram fantásticos, mas por trás de seu trabalho estavam
as mulheres, fazendo a fiação", diz Hameeda Hossain, uma ativista de direitos
humanos que escreveu um livro sobre a indústria da musselina em Bengala.
Com o passar das
gerações, o conhecimento de como fazer o tecido foi esquecido. E sem ninguém
para tecer seus fios, a planta phuti karpas, que sempre foi difícil de se
domar, voltou para a obscuridade selvagem.
• Segunda chance
Islam nasceu em
Bangladesh e mudou-se para Londres há cerca de 20 anos. Ele tomou conhecimento
da musselina de Dhaka pela primeira vez em 2013, quando a empresa para a qual
trabalha, Drik, foi convidada a participar de um projeto de exposição sobre o
material.
Ele e sua equipe
sentiram que faltavam detalhes, então conduziram suas próprias pesquisas.
No ano seguinte, Islam
conheceu artesões locais de Dhaka, explorou a região onde ela era produzida e
procurou exemplares da musselina em museus da Europa.
"O Museu Victoria
and Albert (em Londres) tem uma coleção excelente, com centenas de peças",
diz Islam. "Se você for para o English Heritage Trust (organização de
patrimônio cultural da Inglaterra), eles têm 2.000 peças. E, no entanto, Bangladesh
não tinha nenhuma."
A equipe acabou
fazendo a curadoria de várias exposições sobre o material, encomendou um filme
e publicou um livro de autoria de Islam.
Em um dado momento, os
planos chegaram mais longe: seria possível ressuscitar o lendário tecido?
Com esse objetivo,
eles fundaram a Bengal Muslin, uma empresa colaborativa.
A primeira tarefa foi
encontrar a planta certa. Embora não haja sementes de phuti karpas em nenhuma
coleção hoje, o grupo encontrou um livreto no Jardim Botânico Real de Kew
(Inglaterra) com suas folhas secas e preservadas. A partir delas, foi possível
sequenciar o DNA.
Já com os segredos
genéticos da planta em mãos, a equipe voltou para Bangladesh. Eles compararam
mapas antigos do do rio Meghna com imagens de satélite modernas, buscando os
melhores terrenos para eventual replantio. Em seguida, alugaram um barco e
vasculharam plantas selvagens que se parecessem com os desenhos antigos.
Todas as opções
promissoras foram sequenciadas e comparadas com o original. Eventualmente,
encontraram uma planta com compatibilidade de 70% — um arbusto que pode ter
tido ancestrais phuti karpas.
Como terreno para
cultivo, a equipe inicialmente escolheu um pequena ilha no meio do Meghna, em
Kapasia, a 30 km de Dhaka, na direção norte.
"Era muito ideal.
O terreno é fértil porque se formou com o acúmulo de sedimentos do rio",
explica Islam.
Foi lá que, em 2015,
ele e os colegas plantaram algumas sementes para teste. Logo havia fileiras
ordenadas de phuti karpas — as primeiras cultivadas em mais de um século.
No mesmo ano, a equipe
fez sua primeira colheita. Embora não tivessem tudo para fazer uma musselina de
Dhaka 100% autêntica, eles colaboraram com fiandeiros indianos para combinar
algodão comum e algodão das phuti karpas — formando um fio híbrido.
Em seguida, foi a vez
da tecelagem, etapa que se mostrou mais complicada do que o esperado.
Como ainda existem
tecelões em Bangladesh fazendo a musselina do tipo jamdani, Islam esperava que
pudesse simplesmente trabalhar conjuntamente para que atualizassem suas
habilidades e produzissem um tecido de qualidade, e exigência, mais alta.
"Mas, na
realidade, nenhum deles queria trabalhar nisso", lembra Islam.
Quando ele disse que
queria fazer saris de 300 fios, "todos responderam que isso era uma
loucura".
Das 25 pessoas que ele
abordou, uma acabou topando o trabalho conjunto.
Al Amin, agora o
mestre tecelão, adicionou controles de temperatura e umidificadores à sua
oficina para criar as condições necessárias de confecção deste tecido
complicado. Foi preciso construir também 50 novas ferramentas, particulares à
produção da musselina de Dhaka e indisponíveis até então.
Seis trabalhosos meses
depois, Amin havia feito um sári de 300 fios — nada perto do padrão original da
musselina de Dhaka, mas significativamente mais alto do que qualquer tecelão
havia alcançado por gerações.
Em 2021, a equipe fez
vários saris com sua musselina híbrida, que já foram exibidos em todo o mundo.
Alguns foram vendidos por milhares de libras — e Islam diz que a resposta
favorável prova que o tecido tem futuro.
"Nos dias de
hoje, na era da produção em massa, é sempre interessante ter algo
especial", diz.
Islam espera que
chegue o dia em que consigam fazer um sari de musselina Dhaka puro, com um
número de fios ainda maior.
"É uma questão de
orgulho nacional", diz Islam, que também quer melhorar a imagem de
Bangladesh. "É importante que nossa identidade não seja ligada apenas à
pobreza, por nossas indústrias de confecções (precarizadas), mas também pela
origem de um dos melhores tecidos que já existiu."
Fonte: BBC Future
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