MST, 40: o que mudou na luta pela terra
Em setembro de 1982,
30 trabalhadores rurais e 22 agentes pastorais reuniram-se em Goiânia, na
região central do Brasil, em um encontro organizado pela Comissão Pastoral da
Terra (CPT), um braço da Igreja Católica inspirado pela Teologia da Libertação.
Estas poucas lideranças representavam as primeiras ações camponesas após 18
anos de repressão da luta camponesa pela ditadura empresarial-militar, que
governou o país por 21 anos (1964-1985).
O cenário era
esperançoso. A ditadura definhava diante do fracasso econômico e da retomada de
lutas de massas no país, especialmente de um novo movimento sindical que
produziria novas lideranças e resultaria na fundação do Partido dos
Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), uma vigorosa
central sindical sem paralelos na história do Brasil. Contextos semelhantes se
observavam em todo o continente latino-americano e caribenho, quando outras
ditaduras militares, também alinhadas aos Estados Unidos, agonizavam, enquanto
a luta na Nicarágua e em El Salvador despertava as mesmas inspirações que a
Revolução Cubana em anos anteriores.
Os camponeses eram
ainda uma força dispersa em ações locais num país de proporções continentais, e
enfrentavam, além da repressão política, as consequências de uma modernização
forçada da agricultura baseada em alta mecanização, uso intensivo de agrotóxicos
e subsídios para grandes propriedades rurais, que estimulava o êxodo rural.
Ainda assim, desde 1979, surgiam algumas ocupações de grandes propriedades de
terra em alguns estados, de forma isolada. Muitas delas contaram com a
contribuição e a participação da CPT. A reunião em Goiânia discutia o futuro
destas ações e, ao final, indicou a necessidade de construir um movimento
nacional e autônomo de camponeses para lutar pela reforma agrária. Foram
necessários ainda dois anos até que estas articulações resultassem na fundação
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil (MST), em 1984. Este
primeiro encontro contou com a presença de 92 lideranças.
Doze anos depois, em
1996, o MST já estava organizado em todas as regiões do país, havia conquistado
terra para milhares de famílias, os assentamentos de reforma agrária recebiam o
apoio e solidariedade de outras organizações de esquerda brasileiras e internacionais,
mas ainda não era considerado uma força relevante na luta política, sendo
desconhecido da maior parte da população urbana do país. Naquele ano, no
entanto, milhares de camponeses marchavam em direção a Belém, capital do estado
do Pará, na região amazônica, exigindo uma audiência com o então governador da
época. Porém, durante a caminhada, em Eldorado dos Carajás, eles
foram cercados por forças policiais e pistoleiros contratados por grandes
empresas da região. À frente dos marchantes estava Oziel Alves, um jovem de 19
anos, com a responsabilidade de manter o ânimo de seus companheiros com
palavras de ordem e de motivação. Oziel foi uma das lideranças identificadas
pelos policiais e separado do grupo. Antes de ser executado de joelhos, os
policiais pediram que ele repetisse, diante das armas, o que dizia há poucos
minutos no microfone. Oziel não teve dúvidas, e suas últimas palavras foram:
“Viva o MST!”.
Oziel foi um dos 19
mortos no que ficou conhecido como “Massacre de Eldorado dos Carajás”. Os dias
seguintes aos assassinatos foram registrados pelo fotógrafo de renome
internacional Sebastião Salgado, ganhando repercussão mundial. As imagens,
acompanhadas da música do cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda, e das
palavras do escritor José Saramago, atravessaram o globo em uma exposição
chamada Terra.
Mas não foi a tragédia
que tornou o MST reconhecido como força política, e sim sua resposta à
repressão. No ano seguinte, diante da impunidade dos governos e da paralisia da
reforma agrária, o MST decidiu iniciar uma marcha no mês de fevereiro, com
1.300 pessoas, partindo de três pontos do país, e programada para chegar em
Brasília, capital federal, no dia 17 de abril, exatamente um ano depois do
Massacre de Eldorado dos Carajás. Na época, o Ministro do Desenvolvimento
Agrário dizia que a marcha jamais chegaria a Brasília. Entretanto, no dia
previsto, os Sem Terra entraram na capital acompanhados por 100 mil pessoas, no
que se tornou o maior ato político contra o governo neoliberal do então presidente
Fernando Henrique Cardoso (FHC). A demonstração de força e organização colocou
o MST entre os principais protagonistas da luta política no Brasil desde então.
Em 2005, o MST
realizou uma nova marcha nacional. Agora, o presidente da República era Luiz
Inácio Lula da Silva, um antigo aliado e apoiador da luta pela reforma agrária.
A marcha pretendia sensibilizar o governo para as mudanças causadas pela
financeirização na agricultura e reivindicar um novo Plano Nacional de Reforma
Agrária. Desta vez foram 15 mil marchantes, uma pequena cidade em movimento que
erguia suas barracas em um novo lugar do trajeto a cada dia, com cozinhas para
alimentar todos os marchantes, banheiros, estrutura para as crianças que
acompanhavam seus pais e suas mães e estudos após os dias de caminhada. Para
garantir a organização das fileiras, uma rádio transmissora itinerante
acompanhava a marcha e era ouvida por 15 mil aparelhos de rádios carregados
pelos camponeses. Depois da Marcha, o Exército brasileiro convidou o MST para
uma palestra na Escola Superior de Guerra para entender como um movimento
popular possuía aquele grau de organização.
Ao longo destas quatro
décadas de existência, completadas no ano de 2024, o MST alcançou algumas
vitórias significativas: 450 mil famílias conquistaram terras, transformadas em
assentamentos da reforma agrária. Nestes assentamentos, o trabalho pode ser individual
ou cooperativo; um dos resultados foi a criação de 185 cooperativas de
produção, de comercialização e prestação de serviços e 1900 associações de
camponeses. Parte do produzido nos assentamentos é beneficiado em 120
agroindústrias próprias. Nos acampamentos, há ainda 65 mil famílias organizadas
que lutam pela terra.
A longevidade do MST é
carregada de significados. Em toda a história brasileira, nenhum movimento
social camponês conseguiu sobreviver por sequer uma década diante do poder
político, econômico e militar dos grandes proprietários de terra. Existem
inúmeros componentes para a resiliência do MST, entre eles, a solidariedade
internacional e nacional recebida. Há também dimensões produzidas na luta que
mereceriam aprofundamento, como a proposta pedagógica da Educação no Movimento,
a Formação Política, a organização das mulheres, a produção agroecológica e a
organização de cooperativas.
Entre tantas
dimensões, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social escolheu as formas de
organização e de luta do MST como tema deste dossiê. Efetivamente, a força de
um movimento popular vem da quantidade de pessoas que organiza e do seu método
de organização. Esta é uma das principais explicações de como o Movimento Sem
Terra resiste e cresce diante de uma correlação de forças tão desigual. E esta
experiência, sem pretensões de oferecer fórmulas, mas compreendidas no contexto
da luta brasileira, pode contribuir com as reflexões e organizações de outros
movimentos populares e camponeses pelo mundo.
·
A questão agrária no
Brasil
O Brasil foi fundado e
organizado a partir do século XVI, como uma empresa capitalista, baseada na
grande propriedade da terra, no trabalho escravo e na monocultura para
exportação. O empreendimento colonial português provocou uma violenta ruptura –
pela pólvora e pela cruz – com o modo de vida das sociedades indígenas,
introduzindo um conceito que não fazia o menor sentido para estas comunidades:
a propriedade dos bens comuns da natureza.
Em 1850, diante do
iminente fim da escravidão, dos movimentos abolicionistas e rebeliões da
população escravizada, o então império brasileiro instituiu a primeira Lei de
Terras para impedir que os libertos tivessem acesso à maior fonte de riquezas
do país. Por esta Lei, a terra passou a ser também Mercadoria. Mais
do que isso, este modelo chamado de Plantation – o latifúndio
monocultor para exportação baseado na superexploração do trabalho – será a
única constante na história brasileira, independente da soberania (colônia
portuguesa ou nação independente), do regime (monarquia ou República) e do
sistema de governo (parlamentarista ou presidencial).
E, evidentemente,
diante desta contradição, a questão agrária esteve no centro das rebeliões,
revoltas e movimentos populares da história do país, desde a resistência
indígena, as rebeliões contra a escravidão e comunidades quilombolas aos
primeiros movimentos camponeses e sindicais. Também é ilustrativo o papel do
Estado na defesa dos interesses de latifundiários e na repressão aos pobres.
Enquanto as populações indígenas e escravizadas eram perseguidas e combatidas
por milícias particulares, o próprio Exército brasileiro tratou de combater e
eliminar os movimentos de Canudos (1897), uma comunidade autogestionada de 25
mil camponeses, e Contestado (1916), uma revolta armada de agricultores para
impedir que suas terras fossem tomadas por uma empresa ferroviária
estadunidense, e das organizações que lutavam por reforma agrária antes do
golpe empresarial-militar de 1964, como as Ligas Camponesas.
Como consequência, o
Brasil do século XXI permanece ostentando o posto de segunda maior concentração
de terras do planeta, título que defendeu durante todo o século passado, com
42,5% das propriedades sob controle de menos de 1% dos proprietários (DIEESE,
2011). Do outro lado, 4,5 milhões de camponeses são considerados sem-terras.
O inimigo de classe
dos sem terras é o latifundiário, o grande proprietário de terras e as empresas
transnacionais que se apropriam das terras para a produção de commodities.
Porém, parte da pressão do movimento popular precisa ser direcionada também ao
Estado. A atual Constituição brasileira foi aprovada em 1988, após o fim da
ditadura empresarial militar, e como foi construída em um momento de ascensão
das lutas de massas populares, incorporou muitos aspectos progressistas em sua
redação, inclusive para a reforma agrária. O artigo 184 da Constituição Federal
estabelece que as propriedades agrícolas precisam cumprir também uma função
social – devem ser produtivas, respeitar os direitos trabalhistas e ambientais.
Caso não cumpram estes critérios, podem ser desapropriadas para a reforma
agrária pelo Estado, responsável por indenizar o proprietário e assentar as
famílias sem terras nestas áreas, que passam a ser propriedade pública.
A natureza do
latifúndio, porém, se transformou nas últimas décadas para o modelo agrícola
chamado Agronegócio. A grande7 propriedade improdutiva e arcaica,
utilizada como mecanismo de especulação, foi sendo incorporada por volumosos
investimentos de capital financeiro internacional, controlando toda a cadeia
produtiva rural – desde as sementes à comercialização dos produtos
agroindustrializados. Em 2016, 20 grupos estrangeiros controlavam 2,7 milhões
de hectares no Brasil (MARTINS, 2020). Este controle acentuou a monocultura
para exportação, agora convertida em commodities, produtos
primários comercializados em larga escala, com um padrão único global e
utilizado como ativo financeiro e especulativo, negociado nas Bolsas de
Valores. No Brasil, a produção de apenas cinco culturas – soja, milho, algodão,
cana-de-açúcar e a pecuária bovina – ocupavam, em 2021, 86% de toda área
agrícola e representam 94% de todo volume e 86% do valor da produção. O
agronegócio apoia-se ainda no uso intensivo de agrotóxicos, o que tornou o país
no maior consumidor de venenos agrícolas do mundo, com um consumo recorde de
130 mil toneladas em 2023.
Este poder econômico
se expressa também no poder político. O agronegócio ocupou cargos ministeriais
em todos os governos brasileiros das últimas três décadas. No Congresso
Nacional, a Bancada Ruralista, articulação suprapartidária dos parlamentares em
defesa dos interesses do setor, reúne 324 deputados federais (61% da Câmara) e
50 senadores (35% do Senado). Força suficiente para impor leis de
desregulamentação ambiental e territorial e para submeter o MST a investigações
em quatro Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) em duas décadas. Nenhuma
outra organização popular na história do Brasil sofreu tantas tentativas de
criminalização pelo Parlamento. A primeira delas foi criada no primeiro governo
do presidente Lula para obrigar o Poder Executivo a recuar nas relações com o
Movimento e impedir a destinação de recursos públicos para a reforma agrária,
além de criminalizar a luta pela terra. A última delas, em 2023, tinha
objetivos semelhantes, novamente para pressionar um novo governo de Lula, mas
teve um efeito reverso. Os parlamentares que conduziam a comissão eram parte do
núcleo mais radical do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. O MST, por sua
vez, havia ampliado seu reconhecimento público desde as ações de solidariedade
na pandemia de covid-19. Desta forma, a CPI não conseguiu apoio político ou
midiático, fortaleceu a solidariedade ao Movimento e sequer conseguiu aprovar
um relatório final.
Por fim, a hegemonia
do agronegócio na sociedade brasileira combina ainda os métodos sofisticados de
uma poderosa indústria cultural, da televisão à música, com os métodos arcaicos
de violência e repressão. Segundo a pesquisa anual da CPT sobre Violência no
Campo, em 2022 foram registradas 2.018 ocorrências de conflitos sociais no
campo e 47 assassinatos ligados a questões fundiárias ou ambientais.
Em 1995, em seu
Terceiro Congresso Nacional, o MST aprovou pela primeira vez seu Programa de
Reforma Agrária, em que apresentava sua leitura da luta de classes no campo
brasileiro e um conjunto de propostas para transformar a estrutura fundiária
brasileira e as condições da vida rural. Em 2015, o Programa foi atualizado com
uma importante mudança teórica e estrutural: enquanto os partidos e
universidades compreendiam equivocadamente a natureza, e até mesmo saudavam o
papel do agronegócio no Brasil, a militância do MST construiu coletivamente uma
interpretação que o definia como a presença do capital financeiro transnacional
no campo para a produção de commodities. Mais do que isso, o MST
apontou que a existência do agronegócio – e seus vínculos com o Estado –
inviabilizavam uma reforma agrária clássica, nos marcos capitalistas, de apenas
distribuição ou democratização do acesso à terra.
Neste contexto, o MST
é provocado a redefinir suas ações estratégicas e seu programa agrário,
formulando um novo conceito: a Reforma Agrária Popular. Além da distribuição
das áreas para os camponeses, a Reforma Agrária Popular incorpora a necessidade
de produzir alimentos saudáveis a toda população, com mudança da matriz
tecnológica para a agroecologia e a preservação dos bens comuns da natureza.
Esta mudança implica ainda em maior aliança com os trabalhadores urbanos, os
maiores beneficiários do acesso a alimentos saudáveis e baratos, pois a Reforma
Agrária ultrapassa os interesses dos camponeses para ser apresentada como uma
política para toda sociedade, seja pela soberania alimentar, como alternativa
de geração de emprego e renda e de combate à catástrofe ambiental.
Fonte: Instituto
Tricontinental
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