MEMÓRIAS DE 64: Abuso sexual, tortura e
demissões arbitrárias, o papel da Belgo-Mineira na ditadura
João Monlevade era o
nome do dono de uma fazenda na cidade de Rio Piracicaba, Minas Gerais,
localizada a 115 km da nova capital, Belo Horizonte. A área foi adquirida pela
Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira na década de 1930, para que ali fosse
construída a usina de Barbanson, inaugurada em 1937. Como não havia nada lá, a
companhia teve que erguer uma cidade para seus funcionários, que recebeu o nome
do antigo dono das terras e passou a explorar ali uma mina de extração de
minério de ferro, abundante na região.
A família Seeburger
foi uma entre muitas outras famílias luxemburguesas que imigrou para a cidade
industrial construída pela Belgo-Mineira com ajuda do governo Vargas, pois a
empresa só começou as obras depois que o governo federal construiu uma linha férrea
entre Belo Horizonte e os domínios da Belgo. Nicolas e Marguerite e o filho
Jean-Paul Nicolas Seeburger, então com 6 anos, chegaram por lá em 1947. A
cidade foi o destino também de milhares de operários de todos os cantos de
Minas Gerais.
Jean-Paul tornou-se
médico da Belgo e foi lotado na trefilaria (fábrica de arames e outros fios),
em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. Um de seus pacientes
era o então metalúrgico Sálvio Penna, hoje com 80 anos, filho de um pedreiro da
companhia e militante político da Ação Popular (AP).
“Eu reconheci ele da
Belgo, pois sou asmático e era muito afetado pela poluição de uma fábrica de
cimento perto de minha casa. Tive uma crise que se prolongou por 6 meses e
fiquei íntimo do departamento médico, pois todo dia eu tomava uma injeção de
aminofilina para diminuir a falta de ar e conseguir trabalhar”, conta Penna,
uma das pessoas que esteve com Seeburger na Delegacia de Ordem Política e
Social (Dops), da Polícia Civil, e acusa o médico de ser também um agente da
repressão que, além do Dops, dava expediente no DOI-Codi (Destacamento de
Operações de Informações — Centro de Operações de Defesa Interna, do Exército
Brasileiro).
Sálvio e cinco presos
que estiveram no Dops/DOI em 1971, entre elas a ex-mulher de Penna, Ana Lúcia
Penna, falecida em 2016, afirmam que o médico luxemburguês acompanhava as
torturas e dizia aos torturadores se o suplício poderia continuar ou não. “Eles
me deram muitos choques nas pernas e eu estava começando a ter dificuldades
para ficar em pé e daí chamaram o Jean-Paul, que recomendou a eles que não me
dessem mais choques na perna direita e foi embora”, contou a ambientalista
Maria Dalce Ricas no documentário A colônia luxemburguesa, da cineasta e
historiadora Dominique Santana.
Em maio de 1979, em
meio ao movimento da anistia, Maria Dalce foi uma das primeiras a denunciá-lo
na imprensa. Apesar de a queixa com o testemunho dela, de Sálvio e mais quatro
ex-presos políticos, contar com a assinatura de mais de 50 médicos em Belo Horizonte,
o indiciamento no Conselho Regional de Medicina (CRM) de Minas Gerais foi
arquivado por falta de provas e Seeburger continuou a clinicar até sua morte,
em 23 de novembro de 2011, aos 70 anos.
“Foi um processo muito
rápido no CRM, surpreendentemente rápido. E o absolveram”, relembra Sálvio.
Apesar de inocentado por seus pares, o processo contra Seeburger pesou na vida
acadêmica do acusado e ele perdeu o cargo de professor da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG).
“Fomos presos em 7 de
dezembro de 1971. Nosso primeiro filho tinha cinco dias de nascido. Ana Lúcia
estava com 35 pontos do parto natural com fórceps. Ela foi para o hospital do
Exército e nosso filho ficou preso com ela. Já eu fui para o Dops. Quatro dias
depois da nossa prisão, um capitão chamado Pedro Ivo me mostrou um atestado de
óbito dela e eu acreditei. O objetivo da tortura não era só levantar
informação, mas destruir os militantes fisicamente, psicologicamente e
ideologicamente. Só quando a vi no DOI, para onde ela era levada para ser
torturada, é que soube que ela estava viva”, contou Penna à Agência Pública.
·
“O medo dominou Monlevade”, diz
pesquisadora
Destruir a dignidade
das pessoas fez parte da rotina de ameaças, prisões e torturas que se
estabeleceu em João Monlevade em abril de 1964, depois que foi enviada para a
cidade uma tropa de policiais militares de Governador Valadares, para reprimir
de imediato qualquer resistência dos operários da Belgo que haviam feito greves
bem-sucedidas em 1962 e 1963.
A tropa que chegou em
Monlevade em 1964 havia sido requisitada pelo tenente-coronel reformado da PM
mineira Amaro Zacarias Corgosinho, chefe da segurança da Belgo-Mineira e
interventor no Sindicato dos Metalúrgicos de João Monlevade, nomeado pela
ditadura. Para a ditadura e para a empresa, o sindicato deveria ser um caso de
polícia.
Segundo a pesquisa
liderada pela doutora em história Marina Camisasca, e pós-doutoranda na
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), 103 trabalhadores da
Belgo em João Monlevade sofreram algum tipo de perseguição somente em 1964.
Entre as 103 vítimas, estão 74 operários que foram forçados a pedir demissão,
mesmo tendo estabilidade no emprego, conforme a legislação trabalhista da
época, número que consta do relatório da Comissão da Verdade de Minas Gerais
(Covemg), publicado em 2017.
A Pública teve acesso
a um resumo do relatório de pesquisa, chamado de “Informe Público”. A pesquisa
foi encomendada pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e realizada com recursos obtidos
pelo Ministério Público Federal (MPF) em um Termo de Ajustamento de Conduta com
a Companhia Energética de São Paulo. Antes, o MPF já havia financiado outras
dez pesquisas com recursos do TAC da Volkswagen, material que se transformou na
série jornalística “Empresas cúmplices da ditadura“. No mesmo bloco da pesquisa
da Belgo-Mineira também estão sendo investigadas a Mannesmann, também em Minas
Gerais, e a Embraer, em São José dos Campos (SP).
“Eu fui pessoalmente a
Monlevade conversar com as pessoas que viveram essa época e seus filhos. Apesar
de nenhum dos 103 operários dos casos de violações que descobrimos estar mais
vivo, parentes, familiares, filhos, vizinhos carregam consigo o trauma coletivo
da cidade em relação a essa invasão. O medo dominou Monlevade”, afirmou a
pesquisadora à Pública.
A pedido do MPF, os
depoimentos das vítimas, bem como alguns nomes de autores de abusos, não são
citados no “Informe Público”, para não atrapalhar as investigações do inquérito
civil público, mas a Pública cruzou os relatos com outras fontes disponíveis,
como o relatório da Covemg e outros acervos, como o documentário já citado.
A pesquisa acadêmica
será juntada ao inquérito civil a respeito das violações de direitos humanos
envolvendo a Belgo-Mineira, conduzido pelo MPF em Minas Gerais. O trabalho dos
pesquisadores chefiados por Marina Camisasca localizou também quatro casos de
abuso sexual contra quatro mulheres, três filhas de operários e a esposa de um
deles. Um dos operários presos sofreu abuso sexual na cadeia e teve o pênis
machucado sob tortura, aponta o relatório da Covemg.
·
De abuso sexual a demissões arbitrárias
Em 2002, uma das
vítimas contou, aos 51 anos, que foi abusada em casa, em 1964, aos 13 anos, por
um sargento da PM enquanto seu pai estava preso e que o fato marcou toda a sua
vida, até ela conseguir contar a história perante comissão de indenizações para
vítimas de tortura, criada pelo estado de Minas Gerais, em 1999.
“Um tal de sargento
Alaor, esse era o pior, eu tinha 13 anos e ele me levava pro quarto, trancava a
porta, fazia ameaças horríveis caso eu não fizesse o que ele mandasse. Ele
fazia eu passar a mão nele, ficava pegando, em resumo, me molestava. Era nojento,
mas ele fazia isso comigo, quando lembro, eu era uma criança, e não entendia
nada, nem recordação boa do primeiro beijo de um namorado de quem eu gostasse
eu podia ter. Aquele nojento estragou minha adolescência. E ele falava que, se
eu não obedecesse ao maior absurdo, o meu pai sofreria. Até matar eles o
fariam. Com a minha mãe ele fazia o mesmo, só que eu não entendia nada e depois
eu ouvia ela falar que ele obrigava ela a fazer coisas horríveis também e ceder
aos caprichos nojentos dele, e a gente era obrigada a assinar as coisas
absurdas que ele escrevia”, contou a vítima em seu depoimento.
Segundo a pesquisa, as
prisões de abril de 1964 contra grevistas e simpatizantes do movimento sindical
ocorreram na fábrica e nas casas dos trabalhadores, que eram levados para a
cadeia local ou para o Dops, em Belo Horizonte. Diante das coações, a maioria
dos operários presos foi forçada a pedir demissão. Assinado o documento, a
Belgo levava os trabalhadores diante do juiz para a homologação, que fazia a
burocracia sem questionamentos.
Pedir demissão
significava abrir mão não apenas do emprego estável, mas de tudo. Significava
mudar de cidade ou morar de aluguel de uma hora para outra, pois ser empregado
da Belgo em João Monlevade garantia não apenas casa, uma vez que a “empresa se
responsabilizava pela infraestrutura necessária à manutenção de seus
trabalhadores e familiares em termos de habitação, saúde, educação e
abastecimento. Perder o emprego significava, portanto, perder a casa, a escola
dos filhos, o atendimento ambulatorial e a compra de alimentos e remédios nos
armazéns da empresa”, afirma o relatório da Covemg. De acordo com o “Informe
Público”, até o acesso ao lazer dos moradores era garantido pela companhia, que
construiu um cinema e dois clubes em Monlevade.
E as demissões e a
repressão da ditadura militar associada com a Belgo não ficaram apenas em 1964.
Após a greve dos metalúrgicos de abril 1968, que acabou garantindo um aumento
de 10% aos trabalhadores de todo o país, seguida da greve de ocupação de outubro
de 1968, mais de 200 trabalhadores da trefilaria da Belgo-Mineira em Contagem
foram demitidos. A polícia se fazia presente nas fábricas. Nas greves de 1979,
a repressão seguiu grande, com demissões sempre às dezenas ou centenas de
trabalhadores, o que perdurou pelo menos até 1984.
No “Informe Público”,
a equipe liderada pela professora Marina Camisasca sugere que a Belgo-Mineira –
caso seja obrigada judicialmente ou aceite um acordo para indenizar a sociedade
– ajude a financiar um Centro de Memória dos Trabalhadores no prédio onde
funcionava o sindicato de João Monlevade, atualmente desocupado, e que a
empresa contribua também para que saia finalmente do papel o Memorial dos
Direitos Humanos de Minas Gerais, antiga reivindicação das vítimas, no local
onde era o antigo Dops e que funcionava como sede do DOI-Codi em Minas, em Belo
Horizonte.
A Pública tentou ouvir
o procurador da República Ângelo Giardini de Oliveira, responsável pelo
inquérito civil da Belgo-Mineira, mas ele disse que não havia recebido o
“relatório final da pesquisa” e, por isso, não poderia comentar.
A Belgo-Mineira foi
criada em 1917 por empresários brasileiros, como Companhia Siderúrgica Mineira,
em Sabará. Em 1920, logo após a inauguração, a empresa enfrentava dificuldades
e o presidente [nome que era dado ao cargo de governador de estado] de Minas
Gerais, Arthur Bernardes, em 1920, aproveitou uma visita oficial do rei Alberto
I, da Bélgica, para pedir a ele que investisse na empresa brasileira. Já em
1921 chegou a resposta: o grupo privado Arbed, de capital belgo-luxemburguês,
investiu na Siderúrgica Mineira, criando a Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira.
Em janeiro de 1964,
diretores de alto-escalão da Belgo-Mineira participaram da reunião no edifício
Acaiaca na qual foram discutidas não apenas como as empresas e ruralistas
apoiariam o golpe, mas como se daria a repressão aos trabalhadores e movimentos
sociais do estado. Na reunião, o representante do Exército, general Carlos Luís
Guedes, pediu aos empresários que gastassem do próprio bolso e “tomassem as
ruas de Jango”.
Em 2005, após
fundir-se com mais duas empresas, a Belgo foi adquirida pelo grupo Arcelor, que
se fundiu com a Mittal Steel Company. No Brasil, a empresa passou a se chamar
ArcelorMittal Brasil a partir de 2006.
Em nota, a
ArcelorMittal Brasil afirmou “que acompanha o processo de investigação dos
eventos ocorridos […] na antiga Belgo-Mineira, época anterior à aquisição da
empresa pelo Grupo ArcelorMittal. A empresa prestou todas as informações
necessárias à apuração, porém desconhece o teor do relatório elaborado pelo
Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), da Unifesp”.
A ArcelorMittal afirma
manter “uma rigorosa Política de Direitos Humanos que estabelece os princípios
norteadores para a tomada de decisões, ações e comportamentos da empresa” e que
a companhia possui “canal de denúncia, acessível a qualquer pessoa, para
comunicação de quaisquer violações ou transgressões aos direitos humanos”.
Fonte: Por Marcelo
Oliveira, da Agência Pública
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