Luz noturna, perda de habitat e pesticidas
ameaçam vaga-lumes no Brasil
“Fala sério, agora até
você quer estudar vaga-lume, né?”, perguntou Luiz Felipe Silveira, professor da
Universidade da Carolina Ocidental e um dos maiores especialistas do mundo em –
é claro – vaga-lumes.
Naquele momento da
nossa conversa online, Silveira estava me mostrando, entusiasmado, os
resultados de um estudo que publicou com sete outros cientistas brasileiros em
2022. O artigo, publicado na revista Zoologica Scripta, concentra-se na
evolução de um único gênero de vaga-lume (Luciuranus), mas revela muito sobre a
diversidade de todo esse grupo de insetos na Mata Atlântica.
“Este gênero tem oito
espécies, e nenhuma delas co-ocorre em pequena escala. Numa escala maior sim,
como na mesma montanha, por exemplo, mas não vão ocupar os mesmos lugares ao
mesmo tempo”, diz.
Cada vaga-lume vive em
seu próprio nicho, no conjunto específico de condições climáticas que prefere –
como temperatura e umidade, por exemplo. Muitas espécies têm fêmeas sem asas,
uma característica que restringe sua mobilidade e as prende ainda mais àquele
ambiente específico.
Segundo ecólogos,
esses vaga-lumes são especialistas de habitat. Nem toda espécie tem esse estilo
de vida, mas muitas na América do Sul, sim. Cientistas catalogaram até agora
350 espécies de vaga-lumes só no Brasil – um número que, segundo Silveira, está
extremamente subestimado.
“O Brasil tem uma
diversidade de habitats incrível, e é provável que cada partezinha tenha muitas
espécies endêmicas, muitas ainda não descobertas”, diz o pesquisador.
Por mais incrível que
tenha sido ouvir sobre essa riqueza escondida, não foi a diversidade desses
insetos que me levou àquela entrevista. Queria saber se toda essa
especialização e baixa mobilidade é o que os tornava tão vulneráveis à perda de
habitat e aos agrotóxicos.
“Com certeza”,
confirmou Silveira. “E a larva deles vive no solo, e frequentemente associada a
corpos d’água, o que é mais um motivo para se preocupar com os pesticidas.”
Pesquisas estão
começando a demonstrar que o endemismo e a especialização têm um custo alto.
Essas espécies são muito vulneráveis às principais ameaças que atingem os
vaga-lumes no Brasil e no mundo: a destruição do habitat, os pesticidas e as
luzes artificiais.
• Problemas no Cerrado
Os vaga-lumes compõem
apenas uma família (Lampyridae) dentre a lista de besouros bioluminescentes –
insetos capazes de produzir luz usando uma enzima chamada luciferase para
oxidar um composto chamado luciferina. Os elaterídeos (Elateridae) e as
larvas-trenzinho (Phengodidae) também são avistados com frequência à noite em
muitos ecossistemas, inclusive no Cerrado. É aqui que as larvas de uma espécie
específica de inseto, o Pyrearinus termitilluminans, criam um espetáculo único.
Elas se escondem em
grandes cupinzeiros e emitem luz para atrair suas presas, iluminando as
silhuetas desses montes de terra com pontos verdes brilhantes. Um fenômeno de
tirar o fôlego, mas, de acordo com Vadim Viviani, professor da Universidade
Federal de São Carlos e especialista em bioluminescência, é um espetáculo que
está se tornando cada vez mais raro.
“Na década de 1990,
era possível ver muitos desses cupinzeiros, inclusive em áreas de pastagem,
repletos de vaga-lumes”, disse Viviani num release à imprensa. “Agora, a
maioria dos campos foi substituída por monoculturas de cana-de-açúcar, onde
quase não se encontram esses besouros luminescentes.”
Viviani é o autor
principal de uma pesquisa realizada ao longo de três décadas e publicada na
revista Annals of the Entomological Society of America em novembro passado, que
revelou que a quantidade de besouros bioluminescentes está diminuindo no
Cerrado. Os pesquisadores investigaram diferentes áreas do bioma, incluindo o
Parque Nacional das Emas e fazendas próximas nos municípios de Mineiros e Costa
Rica, no estado de Goiás. Abrangendo aproximadamente 100 mil hectares, o parque
é uma das maiores e mais preservadas áreas remanescentes de Cerrado no Brasil.
Nos últimos 30 anos,
os pesquisadores registraram 51 espécies de besouros bioluminescentes nas áreas
de estudo. Quase metade, 24 espécies, foi encontrada dentro do Parque Nacional
das Emas – isso fez da reserva uma das áreas mais ricas em espécies da pesquisa,
o que não é surpreendente.
Nos anos 1990,
fazendas adjacentes ao parque tinham uma diversidade parecida. Entre os anos
1990 e 1996, os cientistas registraram 23 espécies na fazenda Santa Cruz, uma
propriedade que à época era coberta principalmente por cerradão (uma mistura de
cerrado e floresta tropical), algumas pastagens e uma mata de galeria. Mas em
2000, quando a fazenda mudou de nome para Bacuri, “grandes áreas de cerradão já
tinham sido desmatadas para dar lugar à agricultura e à produção de carvão”, de
acordo com o estudo. Entre 2010 e 2021, os cientistas registraram apenas oito
espécies no local.
Os cientistas também
encontraram sinais de redução das populações de larva-trenzinho na fazenda.
Antes de 1996, eles haviam registrado uma média de dez insetos por noite de
observação, de nove espécies diferentes. Em 2005, viram apenas cerca de três
larvas-trenzinho por noite, de duas espécies diferentes. Depois de 2008, apesar
de 12 noites de esforços, os cientistas não encontraram uma única
larva-trenzinho.
“O declínio nessa
família foi especialmente evidente”, diz Viviani.
Mas as mudanças de uso
da terra – de pastagens e cerrado natural para soja e cana-de-açúcar – não
foram o único problema revelado pela pesquisa de Viviani. Próximo à sede do
Parque Nacional das Emas, outra coisa estava afetando o número de
larvas-trenzinho encontradas.
Nas primeiras décadas
da pesquisa, os cientistas conseguiam atrair várias espécies de
larvas-trenzinho, como a Euryopa clarindae e a Mastinocerus nigricollis, usando
armadilhas luminosas montadas ao longo do Rio Formoso, que corre pelas
imediações. Depois de 2010, entretanto, poucas foram capturadas.
Como o habitat
permanecia intacto e relativamente distante das plantações, restava apenas uma
hipótese: as lâmpadas halógenas
instaladas em vários pontos dentro do parque. Os pesquisadores sugerem
que esta pode ser a primeira evidência de que a Luz Artificial Noturna (LAN) –
pode afetar larvas-trenzinho adultas, e temem que esta descoberta possa
anunciar um problema futuro.
Perto do Parque
Nacional das Emas, três centros urbanos estão se expandindo: Chapadão do Céu,
Chapadão do Sul e Mineiros.
“Até 2000, essas
cidades do entorno eram pequenas demais para causar qualquer efeito visível
dentro do parque”, escreveram os autores. “Hoje, contudo, a LAN atinge
intensidades consideráveis, o que fica evidente principalmente nas noites
nubladas.”
Mineiros, a maior das
três cidades, atingiu 70 mil habitantes no censo de 2022, um aumento de 38,32%
em relação a 2010.
“Os níveis cada vez
maiores de luz artificial dentro do Parque Nacional das Emas, vinda dos
crescentes centros urbanos adjacentes, podem ameaçar muitas espécies
bioluminescentes”, diz Viviani, “o que merece atenção especial e mais estudos.”
• Trio terrível
Há alguns anos,
ecólogos e entomologistas vêm alertando sobre o declínio de espécies de insetos
por todo o mundo, e os vaga-lumes não são exceção a esse problema. Em 2020,
Sara Lewis, professora emérita da Universidade Tufts, nos Estados Unidos, e
especialista no comportamento de insetos, conduziu um tipo diferente de estudo
sobre a conservação dos vaga-lumes. Ela enviou um questionário a pesquisadores
de vaga-lumes do mundo inteiro, pedindo que eles avaliassem a gravidade de
diferentes ameaças a esses insetos. Entre 49 respostas, três principais riscos
emergiram: perda de habitat, uso de pesticidas e poluição luminosa.
Não é surpreendente
que a destruição do habitat fique em primeiro lugar, já que cientistas
constataram, inúmeras vezes, que esta é uma das cinco maiores ameaças globais à
biodiversidade da Terra.
O uso de pesticidas
tampouco surpreende, uma vez que está ligado ao declínio de insetos em muitas
partes do mundo. Poucos estudos testaram o impacto direto dos agrotóxicos sobre
besouros bioluminescentes, apresentando resultados variados. Embora evidências
sugiram que inseticidas baseados em organofosfatos não sejam muito tóxicos para
as larvas do vaga-lume japonês Luciola cruciata e suas presas, um estudo que
avaliou a suscetibilidade da espécie coreana Aquatica lateralis a dez
inseticidas diferentes registrou num assustador crescimento entre 80% e 100% em
sua taxa de mortalidade.
Os compostos dos
pesticidas podem ser carregados facilmente pelo ar e pela água, afetando as
áreas adjacentes às plantações. Viviani e seus colegas, por exemplo,
descobriram que não havia larvas-trenzinho em áreas da fazenda Bacuri que
permaneciam intactas, sem plantações. Apesar do habitat conservado, os
pesticidas trazidos das fazendas próximas pelo vento são os principais
suspeitos neste caso.
Diferentemente dos
agrotóxicos e da destruição de habitat, contudo, a luz não costuma ser apontada
como uma ameaça comum à biodiversidade. Ainda assim, ela foi listada entre as
três principais ameaças globais às populações de vaga-lumes no estudo de Lewis.
“Esses animais
bioluminescentes são afetados pela competição com a luz artificial”, explica
Stephanie Vaz, pesquisadora de pós-doutorado da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e coordenadora do ramo sul-americano do Grupo de Especialistas em
Vaga-lumes da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN).
“Por exemplo, machos e
fêmeas que dependem de um sinal luminoso para se encontrarem acabam ficando
praticamente cegos — ninguém se encontra. Da mesma forma, a vida também fica
complicada para as larvas que precisam emitir luz para se defender ou para atrair
presas.”
O brilho sutil e
efêmero que esses diminutos animais emitem não se compara ao de uma lâmpada
halógena – ou, talvez mais grave que isso, ao de um céu noturno iluminado
artificialmente.
“Há estudos de fora do
Brasil — mas eu acredito que isso possa ocorrer aqui também — que mostram que
as fêmeas acabam por não brilhar com tanta competição luminosa, ou têm seu
hábito circadiano alterado, entendendo que é sempre dia”, diz Vaz.
Em 2021, Vaz liderou
um estudo que revelou que a poluição luminosa é a ameaça à conservação dos
vaga-lumes que cresce mais rápido na Mata Atlântica. Sua velocidade supera a
urbanização e o desmatamento no Sudeste do país, e seus efeitos não respeitam
os limites das áreas protegidas.
“Independente da
devastação da vegetação, a poluição luminosa pode adentrar as florestas”,
explica Vaz. “[A floresta] pode fornecer algum abrigo, mas, principalmente nas
bordas, os vaga-lumes com pouca
mobilidade — com fêmeas que não voam ou com larvas que demoram muito para se
deslocar – provavelmente vão sofrer com esse estressor.”
Combater esses
impactos não é fácil. A perda de habitat e os pesticidas acompanham a expansão
agrícola, uma tendência que ameaça muitos ecossistemas ricos em insetos no
Brasil e em outros lugares. Mais pesquisas e testes podem ajudar a identificar
quais agrotóxicos são menos prejudiciais a essas espécies, e regulações mais
rígidas podem ajudar a preservar a biodiversidade.
“O uso de pesticidas
menos tóxicos pode ser uma opção para mitigar esses efeitos”, diz Vaz,
“aplicados longe de lugares cruciais para o meio ambiente, como lençóis
freáticos.”
A luz já é uma questão
mais delicada, uma vez que os cientistas estão apenas começando a explorar seus
impactos.
“Há pesquisas tentando
identificar quais tipos – LEDs, fluorescentes etc – e cores de luzes impactam
menos esses animais”, diz Vaz. “Alguns tipos de cobertura sobre as lâmpadas,
fazendo com que a luz se volte diretamente para o solo, pode diminuir o brilho
difuso e refletido para o céu, e talvez ajudem a mitigar o impacto da
iluminação artificial instalada em áreas naturais.”
A primeira barreira
para a conservação desse grupo altamente diverso de insetos, contudo, ainda é a
falta de conhecimento. “Para conservar, a gente tem que pelo menos conhecer
quem está conservando”, diz Vaz. “Temos um esforço para a identificação de espécies
crescendo bastante agora, e estamos fomentando bases de dados para entender que
medidas de conservação a gente pode propor para essas espécies que estamos
descobrindo.”
Fonte: Mongabay
Nenhum comentário:
Postar um comentário