Fuga de cérebros: estado mais indígena do
Brasil perde alunos por falta de apoio
“SE NO AMAZONAS
tivesse vestibular específico e política de permanência, eu estudaria lá. Mas
hoje estou cursando história na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Aqui faz frio, a comida é diferente, sinto falta da família, e isso abala nosso
psicológico. Mas a gente segue resistindo, porque temos nossa comunidade, que
nos espera de volta”, relata Vera Lúcia Aguiar Moura, do povo Tukano.
Moradora da comunidade
de Maracajá, na Terra Indígena Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira
(AM), na fronteira do Brasil com a Colômbia, Vera conta que sonhava em entrar
em uma universidade, mas ao procurar opções no próprio Estado descobriu que o Amazonas,
estado mais indígena do país, não tem um vestibular específico para indígenas.
Em 2021, ela soube que
a Unicamp possuía um vestibular desse tipo e um dos locais de prova era
justamente a cidade de São Gabriel da Cachoeira. Vera e mais 87 alunos
indígenas de diferentes localidades do país foram aprovados no exame.
“As pessoas podem
pensar assim: ‘Nossa, mas indígena também é capaz de entrar na universidade
como qualquer um de nós’. Claro que podemos. Mas nós temos um ensino desde
criança diferente, temos nossas conexões com os mais velhos, que nos contam
nossa história. Conhecemos nossa cultura dentro da escola e, sendo assim, por
que não ter um processo específico para indígenas no nosso estado?”, critica
Vera, sobre a falta de um vestibular direcionado no Amazonas.
Ela se refere a um
processo de entrada na universidade com provas com conteúdo e temática
indígenas, que levem em conta as especificidades dessas populações, para
ingresso exclusivamente de povos originários.
Apesar de o Amazonas
ter a maior população indígena do Brasil – 490.854 pessoas, ou cerca de 12,4%
dos quase 4 milhões de habitantes do Estado, segundo o Censo de 2022 –, não há
nenhum vestibular específico para indígenas.
Dados do Inep
(Instituto Nacional de Pesquisas e Estudos Educacionais) mostram que, entre
2018 e 2022, as instituições públicas de ensino superior do estado mantiveram
uma média de 3.000 estudantes indígenas por ano. Isso representa cerca de 6% do
total de alunos dessas universidades – considerando que havia 48 mil alunos na
rede pública no ano passado.
Vera, que sempre
estudou em escolas indígenas em seu território, ressalta que não se trata de
estabelecer uma política de cotas, como já existe na UEA (Universidade Estadual do Amazonas). Mas
criar um processo específico que leve em consideração as realidades do ensino
indígena. Ela lembra, por exemplo, que, diferente de outros estudantes,
aprendeu a falar a língua portuguesa aos oito anos de idade, um fator que
diferencia os estudantes indígenas dos demais.
O jornalista Robson
Chaves Delgado, do povo Baré, que também migrou para cursar a universidade,
cita a falta de incentivo à pesquisa e produção científica que valorize as
culturas e produções indígenas. Ele diz que esse foi um dos motivos que o levou
a Curitiba (PR) para estudar na UFPR (Universidade Federal do Paraná).
“Se aqui no Amazonas
não tem uma política afirmativa e o governo não se preocupa, eu vou procurar
onde eu consiga acessar de uma forma menos violenta. Eu poderia ficar aqui
lutando, mas acredito que isso nem deveria ser discutido, já deveria ser uma
política pública do próprio Estado”, afirma Robson, que voltou ao estado após
se formar, no ano passado.
• Descolonizar a universidade
Vera é a única
indígena na sua turma. Na capital e
dentro do campus, ela se deparou com muitos desafios, desde o clima, a
alimentação até o formato de ensino, e percebeu que, apesar de ter um
vestibular específico, a universidade precisa percorrer um longo caminho para
se descolonizar.
“Na Unicamp tem
psicólogo, mas eles nunca vão entender qual é a real situação porque eles têm
outro olhar. A gente fica nessa: ‘Será que eu vou no psicólogo ou sofro aqui?’.
Para nós é mais do que a questão da saúde mental, é a alimentação, é nossa
comunidade, o benzimento, é a saudade de se cuidar com ervas medicinais, com
curandeiro e tudo mais”, lembra.
Outra questão é o
formato do ensino que, segundo Vera, desconsidera as especificidades indígenas.
“Você tem que saber escrever muito bem [em português], produzir artigo, fazer
um bom seminário, só que eles não vão entender que a nossa realidade é outra, que
a nossa educação básica foi bem diferente daqui de São Paulo”, diz ela.
Presidente da União
Plurinacional dos Estudantes Indígenas (UPEI) e estudante de engenharia
elétrica na Unicamp, Arlindo Baré complementa que é preciso também discutir políticas afirmativas
para além da Lei de Cotas.
“A lei foi um grande
avanço e serve de base para cobrar nossos direitos. Mas levando em consideração
a questão étnica, ela não contempla alguns contextos. Precisamos que a bolsa
permanência e os vestibulares específicos se transformem em lei”, afirma.
Arlindo também cita a
dificuldade de alunos indígenas com o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio),
que supostamente deveria facilitar o ingresso de estudantes ao ensino superior.
“Por exemplo, se eu
for sair lá do Rio Negro para fazer a prova em São Gabriel, terei que
desembolsar no mínimo R$ 1.500 só de gasolina, mais R$ 300 para ficar dois ou
três dias me alimentando. Assim, eu teria que ter R$ 2.000 só para ir ou deixar
meu filho fazer o Enem, e mais R$ 1.500
para voltar. Quando o Enem foi feito, ele não pensou nessa logística”,
ressalta.
A Repórter Brasil
procurou o MEC (Ministério da Educação), a UFAM (Universidade Federal do
Amazonas) e a Unicamp, mas não recebeu retorno. O espaço segue aberto para
manifestação.
Para a antropóloga e
professora Alva Rosa, do povo Tukano, primeira indígena a receber o título de
doutora pela UFAM, é fundamental estabelecer um diálogo sobre a permanência dos
estudantes indígenas no Estado, em especial pela preocupação com a saúde mental
dos alunos. “Os estudantes estão saindo e a gente tem várias informações de
estudantes que estão tendo depressão, e isso nos preocupa”, afirma.
Segundo ela, em 2023
foi organizada uma comissão para que se construa junto às universidades uma
forma de ingresso e permanência dos alunos indígenas. “Sem uma política que
atenda as especificidade desses alunos nas universidades, eles acabam saindo do
estado para Unicamp, UNB, Ufscar e outras, onde tem a política de acesso
específico”, afirma.
Moradores de reserva no Amazonas
comemoraram chegada da energia solar. Até perceberem que os equipamentos estão
em áreas alagáveis
Em julho do ano
passado, moradores de 92 das 101 comunidades da Reserva Extrativista do Médio
Purus, localizada no Sul do Amazonas, receberam um recado da Amazonas Energia.
Por iniciativa da distribuidora, que tem concessão para atuar em todo o estado,
uma equipe de técnicos passaria de casa em casa para fazer a instalação de kits
de energia solar. A notícia foi recebida com euforia e surpresa. Fazia décadas
que os habitantes da reserva sonhavam com o acesso à energia elétrica contínua,
sem as frequentes interrupções do sistema a óleo diesel. Os trabalhos começaram
algumas semanas depois, quando um grupo de técnicos foi até a reserva.
Enquanto os kits eram
instalados, no entanto, os moradores perceberam que a empresa havia
desconsiderado um fator elementar: o Rio Purus, que dá nome ao local, é
conhecido por encher todos os anos e – quase sempre – alagar as casas
ribeirinhas. Também alagaria, portanto, os novos kits.
A reserva fica
localizada quase integralmente no município de Lábrea (AM). Vivem nela
aproximadamente 4 mil pessoas, entre ribeirinhos e indígenas.
“A instalação dos kits
ocorreu sem uma conversa anterior com a comunidade. As baterias, os
controladores e os inversores foram colocados nos assoalhos das casas”, conta
Jessé Oliveira, dirigente da Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do
Médio Purus. “A chance de molhar e estragar todo o sistema é grande.”
Nas áreas de várzea da
Amazônia, tudo é regido pelo ritmo das águas. Por ser uma planície extensa, os
rios sobem vários metros depois da temporada chuvosa, em março, e permanecem em
nível elevado durante meses. Não foi diferente este ano. Agora, os moradores da
reserva estão apreensivos – as águas já começaram a subir. Devido à crise
climática, eventos extremos têm se tornado mais frequentes, o que não melhora
em nada a expectativa para os próximos anos.
Um kit gerador de
energia solar é formado pelos painéis que absorvem a luz do Sol; pelos
inversores ou onduladores, responsáveis por transformar a corrente de energia
no formato utilizado nas residências, e que ficam em caixas metálicas, como uma
CPU de computador; pelas baterias, que armazenam a energia; e pelo controlador,
um visor eletrônico que exibe as informações básicas sobre o estado do
armazenamento e captação de energia.
Nas vilas que estão
fora das redes elétricas convencionais, os sistemas de energia solar
fotovoltaica são instalados de diferentes formas. Os painéis, responsáveis por
captar a luz, podem ficar ao lado das casas – como foi feito no caso da reserva
– ou no telhado. Há também a opção de reuni-los todos num mesmo local designado
pelos moradores. As baterias, os inversores e os controladores podem ficar
dentro das casas, mas é crucial que permaneçam longe do alcance da água. Em
áreas afetadas por cheias de rios, portanto, os kits deveriam ficar mais
próximos do teto, e não do assoalho, como ocorreu.
“A informação da
equipe que veio fazer a instalação dos kits no ano passado é de que só poderia
ser feita a montagem [do kit] dentro da casa”, explica Oliveira. “Bastava um
suporte, por exemplo, para que os equipamentos pudessem ficar mais elevados.
Mas isso não foi feito. Nós orientamos o pessoal [a equipe técnica] sobre a
questão da subida das águas. Não adiantou. Se molhar tudo, já era. Não tem
conserto.” Em alguns casos, os kits foram posicionados a apenas 20 cm do chão;
em outros, a 1,5 metro.
As instalações foram
financiadas pelo programa Mais Luz para a Amazônia, do governo federal. Os
moradores pagam uma taxa de manutenção para que o sistema continue funcionando.
À piauí, a empresa afirmou que “geralmente” a instalação dos painéis leva em conta
as sazonalidades da região e que “a guarda e segurança dos equipamentos do kit
de geração” foram consideradas durante o processo. Se um cliente for afetado
por qualquer problema, diz a concessionária, deve entrar em contato com a
empresa para que as medidas de correção sejam tomadas.
De acordo com a
Amazonas Energia, o valor investido pelo programa até agora no estado foi de
aproximadamente 20,7 milhões de reais. A companhia já fez cem instalações, e o
prazo para atingir a universalização dos serviços na reserva vai até 2028. Cada
kit com a instalação sai por 47 mil reais, valor compatível com o praticado
pelo mercado.
Apesar do receio de
ver o rio subir, Oliveira é entusiasta da energia solar – hoje, a melhor opção
de abastecimento para a região. Ninguém quer voltar à época da lamparina ou dos
geradores movidos ao poluente e malcheiroso óleo diesel. Das 101 comunidades
espalhadas pela reserva, nove ainda passam boa parte do tempo sem energia
elétrica, apesar de as hidrelétricas instaladas na Amazônia nas últimas décadas
gerarem energia para todo o Brasil. Em torno de duzentas pessoas vivem essa
situação na reserva.
A instalação de luz
elétrica em áreas remotas da Amazônia é uma novela que se arrasta há pelo menos
vinte anos. Primeiro, veio o programa Luz Para Todos, em 2003. Desde então,
essas regiões isoladas receberam investimentos da ordem de 1,35 bilhão de reais
do governo federal por meio da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). Ao
todo, 35.405 unidades consumidoras foram criadas, o que representou uma mudança
de vida para 141,6 mil pessoas. No entanto, o fornecimento por meio de
geradores era intermitente, e os moradores passavam longas horas sem luz
elétrica.
O Programa Mais Luz
para a Amazônia foi criado em 2020, durante o governo Bolsonaro. A meta
estabelecida na época era atender 219 mil residências em dois anos. Toda nova
instalação seria de fontes renováveis, sendo a solar uma das opções mais
adequadas à região. “Depois de mais de dois anos, em torno de 5% da meta foi
cumprida”, lamenta Ricardo Baitelo, do Instituto de Energia e Meio Ambiente
(Iema), uma ONG que acompanha de perto o assunto. Segundo estimativas de 2023
do Iema, quase 1 milhão de pessoas que vivem em regiões remotas da Amazônia
Legal ainda não têm acesso a energia elétrica.
Em agosto do ano
passado, Lula unificou os dois programas. A meta agora é levar a energia solar
para 188.421 residências em áreas remotas da Amazônia Legal até 2026. Os
números somam comunidades atendidas pela expansão das redes convencionais e
vilas beneficiadas pela montagem de painéis solares que funcionam com bateria
para armazenar energia.
Mesmo que a energia
solar seja uma fonte considerada limpa, há problemas que não podem ser
desconsiderados. Os cálculos do Iema indicam a necessidade do uso de mais de 3
milhões de baterias de íon-lítio para o cumprimento das metas do Mais Luz para
a Amazônia, levando em consideração um cenário em que os domicílios consumam 45
kWh/mês pelo Sistema Individual de Geração de Energia Elétrica com Fonte
Intermitente. Caso, hipoteticamente, o consumo médio seja de 180 kWh/mês, o
abastecimento necessário será de 12 milhões de baterias chumbo-ácido. Aí nasce
outra preocupação: o lixo tecnológico, que implica risco de contaminação dos
rios – sobretudo se as baterias forem alagadas.
Quanto às instalações
que podem submergir, o ministério de Minas e Energia diz que cabe à Agência
Nacional de Energia Elétrica (Aneel) fazer a fiscalização. Repetindo o que
disse a concessionária local, o Ministério afirma que os clientes devem avisar
caso os problemas surjam. Ou seja, no caso da Reserva Médio Purus, as casas
precisarão ser alagadas e os equipamentos estragados para, aí sim, a operadora
fazer reparos.
“Não se pode focar na
Amazônia a partir de um ponto de vista de São Paulo”, diz Alessandra Mathyas,
analista de conservação WWF, ONG que tem atuação internacional em defesa do
meio ambiente. Na região, onde as distâncias são medidas em dias de viagem de barco,
um simples problema de manutenção pode fazer com que um determinado povo,
isolado do sistema de energia elétrica, fique semanas sem luz. “Temos várias
Amazônias e muitas peculiaridades a depender da comunidade. O mais importante é
que elas tenham acesso antecipado ao projeto.”
Quando as comunidades
participam das tomadas de decisão, o dia a dia costuma fluir melhor. Foi esse o
caso em Vila Limeira, uma das comunidades da Reserva Médio Puris, localizada
entre os municípios de Lábrea e Pauini. Até agosto de 2022, os cerca de oitenta
habitantes da vila podiam contar com apenas três horas de energia diária,
produzida por um gerador a diesel. Até que procuraram a ajuda de entidades do
terceiro setor para desenhar um projeto de usina de energia solar.
Lá, em vez de cada
casa ter seus próprios painéis, todos foram instalados, lado a lado, em um
canto da vila. Baterias e inversores foram alojados nas casas, mas no topo das
paredes, onde não correm risco de serem atingidos por alagamentos. “Todo o
processo foi conversado durante aproximadamente quatro anos. Estávamos
dispostos a assumir os custos do sistema, mas felizmente conseguimos financiar
os equipamentos”, diz Napoleão Oliveira, um dos dirigentes Associação dos
moradores da Vila Limeira. O projeto teve apoio da WWF-Brasil e da Fundação
Mott.
Todo o processo foi
feito por meio de um modelo de autogestão. As famílias pagam uma taxa variável
pelo uso da fonte solar a um fundo da associação de moradores, e parte desse
valor vai para outro fundo de reserva, pensado para um momento de emergência, caso
haja necessidade de fazer manutenção nos equipamentos. Os moradores,
devidamente treinados, conseguem operar o sistema sozinhos e monitorar a vida
das baterias.
Uma política como essa
demanda várias etapas de investimento. Isso porque, depois que obtêm acesso a
uma fonte de energia contínua, as famílias costumam equipar suas casas com
eletrodomésticos e outros equipamentos que consomem muita energia. O mesmo ocorre
nas escolas e centros de saúde. A capacidade dos sistemas solares instalados
nesses locais, portanto, talvez precise ser redimensionada no médio prazo.
Assessorados por ONGs,
povos extrativistas, quilombolas e indígenas têm se organizado para buscar
acesso a energia renovável de forma perene. Em um documento elaborado durante o
II Encontro Energia & Comunidades, realizado em maio de 2023, em Belém, um
grupo de indígenas de diferentes partes da Amazônia declarou: “Queremos energia
limpa, de qualidade, segura e de custo zero para os povos indígenas. Informamos
que nossos territórios possuem potencialidade para gerar energia solar,
hidrocinética e em alguns casos energias eólicas para evitar a utilização de
combustíveis fósseis. Mas não queremos que a energia chegue de qualquer jeito,
como já aconteceu em outros tempos em que houve destruição ambiental, sem
qualquer diálogo ou orientação aos povos, onde não houve compensações,
mitigações e estudos dos componentes indígenas nas áreas diretamente impactadas
pelas linhas de transmissões e hidrelétricas construídas.”
Fonte: Reporter
Brasil/Revista Piauí
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