sexta-feira, 26 de abril de 2024

Fuga de cérebros: estado mais indígena do Brasil perde alunos por falta de apoio

“SE NO AMAZONAS tivesse vestibular específico e política de permanência, eu estudaria lá. Mas hoje estou cursando história na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Aqui faz frio, a comida é diferente, sinto falta da família, e isso abala nosso psicológico. Mas a gente segue resistindo, porque temos nossa comunidade, que nos espera de volta”, relata Vera Lúcia Aguiar Moura, do povo Tukano.

Moradora da comunidade de Maracajá, na Terra Indígena Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira (AM), na fronteira do Brasil com a Colômbia, Vera conta que sonhava em entrar em uma universidade, mas ao procurar opções no próprio Estado descobriu que o Amazonas, estado mais indígena do país, não tem um vestibular específico para indígenas.

Em 2021, ela soube que a Unicamp possuía um vestibular desse tipo e um dos locais de prova era justamente a cidade de São Gabriel da Cachoeira. Vera e mais 87 alunos indígenas de diferentes localidades do país foram aprovados no exame.

“As pessoas podem pensar assim: ‘Nossa, mas indígena também é capaz de entrar na universidade como qualquer um de nós’. Claro que podemos. Mas nós temos um ensino desde criança diferente, temos nossas conexões com os mais velhos, que nos contam nossa história. Conhecemos nossa cultura dentro da escola e, sendo assim, por que não ter um processo específico para indígenas no nosso estado?”, critica Vera, sobre a falta de um vestibular direcionado no Amazonas.

Ela se refere a um processo de entrada na universidade com provas com conteúdo e temática indígenas, que levem em conta as especificidades dessas populações, para ingresso exclusivamente de povos originários.

Apesar de o Amazonas ter a maior população indígena do Brasil – 490.854 pessoas, ou cerca de 12,4% dos quase 4 milhões de habitantes do Estado, segundo o Censo de 2022 –, não há nenhum vestibular específico para indígenas.

Dados do Inep (Instituto Nacional de Pesquisas e Estudos Educacionais) mostram que, entre 2018 e 2022, as instituições públicas de ensino superior do estado mantiveram uma média de 3.000 estudantes indígenas por ano. Isso representa cerca de 6% do total de alunos dessas universidades – considerando que havia 48 mil alunos na rede pública no ano passado.

Vera, que sempre estudou em escolas indígenas em seu território, ressalta que não se trata de estabelecer uma política de cotas, como já existe na  UEA (Universidade Estadual do Amazonas). Mas criar um processo específico que leve em consideração as realidades do ensino indígena. Ela lembra, por exemplo, que, diferente de outros estudantes, aprendeu a falar a língua portuguesa aos oito anos de idade, um fator que diferencia os estudantes indígenas dos demais.

O jornalista Robson Chaves Delgado, do povo Baré, que também migrou para cursar a universidade, cita a falta de incentivo à pesquisa e produção científica que valorize as culturas e produções indígenas. Ele diz que esse foi um dos motivos que o levou a Curitiba (PR) para estudar na UFPR (Universidade Federal do Paraná).

“Se aqui no Amazonas não tem uma política afirmativa e o governo não se preocupa, eu vou procurar onde eu consiga acessar de uma forma menos violenta. Eu poderia ficar aqui lutando, mas acredito que isso nem deveria ser discutido, já deveria ser uma política pública do próprio Estado”, afirma Robson, que voltou ao estado após se formar, no ano passado.

•        Descolonizar a universidade

Vera é a única indígena na sua turma.  Na capital e dentro do campus, ela se deparou com muitos desafios, desde o clima, a alimentação até o formato de ensino, e percebeu que, apesar de ter um vestibular específico, a universidade precisa percorrer um longo caminho para se descolonizar.

“Na Unicamp tem psicólogo, mas eles nunca vão entender qual é a real situação porque eles têm outro olhar. A gente fica nessa: ‘Será que eu vou no psicólogo ou sofro aqui?’. Para nós é mais do que a questão da saúde mental, é a alimentação, é nossa comunidade, o benzimento, é a saudade de se cuidar com ervas medicinais, com curandeiro e tudo mais”, lembra.

Outra questão é o formato do ensino que, segundo Vera, desconsidera as especificidades indígenas. “Você tem que saber escrever muito bem [em português], produzir artigo, fazer um bom seminário, só que eles não vão entender que a nossa realidade é outra, que a nossa educação básica foi bem diferente daqui de São Paulo”, diz ela.

Presidente da União Plurinacional dos Estudantes Indígenas (UPEI) e estudante de engenharia elétrica na Unicamp, Arlindo Baré complementa que é  preciso também discutir políticas afirmativas para além da Lei de Cotas.

“A lei foi um grande avanço e serve de base para cobrar nossos direitos. Mas levando em consideração a questão étnica, ela não contempla alguns contextos. Precisamos que a bolsa permanência e os vestibulares específicos se transformem em lei”, afirma. 

Arlindo também cita a dificuldade de alunos indígenas com o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que supostamente deveria facilitar o ingresso de estudantes ao ensino superior.

“Por exemplo, se eu for sair lá do Rio Negro para fazer a prova em São Gabriel, terei que desembolsar no mínimo R$ 1.500 só de gasolina, mais R$ 300 para ficar dois ou três dias me alimentando. Assim, eu teria que ter R$ 2.000 só para ir ou deixar meu filho fazer o Enem, e  mais R$ 1.500 para voltar. Quando o Enem foi feito, ele não pensou nessa logística”, ressalta.

A Repórter Brasil procurou o MEC (Ministério da Educação), a UFAM (Universidade Federal do Amazonas) e a Unicamp, mas não recebeu retorno. O espaço segue aberto para manifestação.

Para a antropóloga e professora Alva Rosa, do povo Tukano, primeira indígena a receber o título de doutora pela UFAM, é fundamental estabelecer um diálogo sobre a permanência dos estudantes indígenas no Estado, em especial pela preocupação com a saúde mental dos alunos. “Os estudantes estão saindo e a gente tem várias informações de estudantes que estão tendo depressão, e isso nos preocupa”, afirma.

Segundo ela, em 2023 foi organizada uma comissão para que se construa junto às universidades uma forma de ingresso e permanência dos alunos indígenas. “Sem uma política que atenda as especificidade desses alunos nas universidades, eles acabam saindo do estado para Unicamp, UNB, Ufscar e outras, onde tem a política de acesso específico”, afirma.

 

       Moradores de reserva no Amazonas comemoraram chegada da energia solar. Até perceberem que os equipamentos estão em áreas alagáveis

 

Em julho do ano passado, moradores de 92 das 101 comunidades da Reserva Extrativista do Médio Purus, localizada no Sul do Amazonas, receberam um recado da Amazonas Energia. Por iniciativa da distribuidora, que tem concessão para atuar em todo o estado, uma equipe de técnicos passaria de casa em casa para fazer a instalação de kits de energia solar. A notícia foi recebida com euforia e surpresa. Fazia décadas que os habitantes da reserva sonhavam com o acesso à energia elétrica contínua, sem as frequentes interrupções do sistema a óleo diesel. Os trabalhos começaram algumas semanas depois, quando um grupo de técnicos foi até a reserva.

Enquanto os kits eram instalados, no entanto, os moradores perceberam que a empresa havia desconsiderado um fator elementar: o Rio Purus, que dá nome ao local, é conhecido por encher todos os anos e – quase sempre – alagar as casas ribeirinhas. Também alagaria, portanto, os novos kits.

A reserva fica localizada quase integralmente no município de Lábrea (AM). Vivem nela aproximadamente 4 mil pessoas, entre ribeirinhos e indígenas.

“A instalação dos kits ocorreu sem uma conversa anterior com a comunidade. As baterias, os controladores e os inversores foram colocados nos assoalhos das casas”, conta Jessé Oliveira, dirigente da Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Médio Purus. “A chance de molhar e estragar todo o sistema é grande.”

Nas áreas de várzea da Amazônia, tudo é regido pelo ritmo das águas. Por ser uma planície extensa, os rios sobem vários metros depois da temporada chuvosa, em março, e permanecem em nível elevado durante meses. Não foi diferente este ano. Agora, os moradores da reserva estão apreensivos – as águas já começaram a subir. Devido à crise climática, eventos extremos têm se tornado mais frequentes, o que não melhora em nada a expectativa para os próximos anos.

Um kit gerador de energia solar é formado pelos painéis que absorvem a luz do Sol; pelos inversores ou onduladores, responsáveis por transformar a corrente de energia no formato utilizado nas residências, e que ficam em caixas metálicas, como uma CPU de computador; pelas baterias, que armazenam a energia; e pelo controlador, um visor eletrônico que exibe as informações básicas sobre o estado do armazenamento e captação de energia.

Nas vilas que estão fora das redes elétricas convencionais, os sistemas de energia solar fotovoltaica são instalados de diferentes formas. Os painéis, responsáveis por captar a luz, podem ficar ao lado das casas – como foi feito no caso da reserva – ou no telhado. Há também a opção de reuni-los todos num mesmo local designado pelos moradores. As baterias, os inversores e os controladores podem ficar dentro das casas, mas é crucial que permaneçam longe do alcance da água. Em áreas afetadas por cheias de rios, portanto, os kits deveriam ficar mais próximos do teto, e não do assoalho, como ocorreu.

“A informação da equipe que veio fazer a instalação dos kits no ano passado é de que só poderia ser feita a montagem [do kit] dentro da casa”, explica Oliveira. “Bastava um suporte, por exemplo, para que os equipamentos pudessem ficar mais elevados. Mas isso não foi feito. Nós orientamos o pessoal [a equipe técnica] sobre a questão da subida das águas. Não adiantou. Se molhar tudo, já era. Não tem conserto.” Em alguns casos, os kits foram posicionados a apenas 20 cm do chão; em outros, a 1,5 metro.

As instalações foram financiadas pelo programa Mais Luz para a Amazônia, do governo federal. Os moradores pagam uma taxa de manutenção para que o sistema continue funcionando. À piauí, a empresa afirmou que “geralmente” a instalação dos painéis leva em conta as sazonalidades da região e que “a guarda e segurança dos equipamentos do kit de geração” foram consideradas durante o processo. Se um cliente for afetado por qualquer problema, diz a concessionária, deve entrar em contato com a empresa para que as medidas de correção sejam tomadas.

De acordo com a Amazonas Energia, o valor investido pelo programa até agora no estado foi de aproximadamente 20,7 milhões de reais. A companhia já fez cem instalações, e o prazo para atingir a universalização dos serviços na reserva vai até 2028. Cada kit com a instalação sai por 47 mil reais, valor compatível com o praticado pelo mercado.

Apesar do receio de ver o rio subir, Oliveira é entusiasta da energia solar – hoje, a melhor opção de abastecimento para a região. Ninguém quer voltar à época da lamparina ou dos geradores movidos ao poluente e malcheiroso óleo diesel. Das 101 comunidades espalhadas pela reserva, nove ainda passam boa parte do tempo sem energia elétrica, apesar de as hidrelétricas instaladas na Amazônia nas últimas décadas gerarem energia para todo o Brasil. Em torno de duzentas pessoas vivem essa situação na reserva.

A instalação de luz elétrica em áreas remotas da Amazônia é uma novela que se arrasta há pelo menos vinte anos. Primeiro, veio o programa Luz Para Todos, em 2003. Desde então, essas regiões isoladas receberam investimentos da ordem de 1,35 bilhão de reais do governo federal por meio da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). Ao todo, 35.405 unidades consumidoras foram criadas, o que representou uma mudança de vida para 141,6 mil pessoas. No entanto, o fornecimento por meio de geradores era intermitente, e os moradores passavam longas horas sem luz elétrica.

O Programa Mais Luz para a Amazônia foi criado em 2020, durante o governo Bolsonaro. A meta estabelecida na época era atender 219 mil residências em dois anos. Toda nova instalação seria de fontes renováveis, sendo a solar uma das opções mais adequadas à região. “Depois de mais de dois anos, em torno de 5% da meta foi cumprida”, lamenta Ricardo Baitelo, do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), uma ONG que acompanha de perto o assunto. Segundo estimativas de 2023 do Iema, quase 1 milhão de pessoas que vivem em regiões remotas da Amazônia Legal ainda não têm acesso a energia elétrica.

Em agosto do ano passado, Lula unificou os dois programas. A meta agora é levar a energia solar para 188.421 residências em áreas remotas da Amazônia Legal até 2026. Os números somam comunidades atendidas pela expansão das redes convencionais e vilas beneficiadas pela montagem de painéis solares que funcionam com bateria para armazenar energia.

Mesmo que a energia solar seja uma fonte considerada limpa, há problemas que não podem ser desconsiderados. Os cálculos do Iema indicam a necessidade do uso de mais de 3 milhões de baterias de íon-lítio para o cumprimento das metas do Mais Luz para a Amazônia, levando em consideração um cenário em que os domicílios consumam 45 kWh/mês pelo Sistema Individual de Geração de Energia Elétrica com Fonte Intermitente. Caso, hipoteticamente, o consumo médio seja de 180 kWh/mês, o abastecimento necessário será de 12 milhões de baterias chumbo-ácido. Aí nasce outra preocupação: o lixo tecnológico, que implica risco de contaminação dos rios – sobretudo se as baterias forem alagadas.

Quanto às instalações que podem submergir, o ministério de Minas e Energia diz que cabe à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) fazer a fiscalização. Repetindo o que disse a concessionária local, o Ministério afirma que os clientes devem avisar caso os problemas surjam. Ou seja, no caso da Reserva Médio Purus, as casas precisarão ser alagadas e os equipamentos estragados para, aí sim, a operadora fazer reparos.

“Não se pode focar na Amazônia a partir de um ponto de vista de São Paulo”, diz Alessandra Mathyas, analista de conservação WWF, ONG que tem atuação internacional em defesa do meio ambiente. Na região, onde as distâncias são medidas em dias de viagem de barco, um simples problema de manutenção pode fazer com que um determinado povo, isolado do sistema de energia elétrica, fique semanas sem luz. “Temos várias Amazônias e muitas peculiaridades a depender da comunidade. O mais importante é que elas tenham acesso antecipado ao projeto.”

Quando as comunidades participam das tomadas de decisão, o dia a dia costuma fluir melhor. Foi esse o caso em Vila Limeira, uma das comunidades da Reserva Médio Puris, localizada entre os municípios de Lábrea e Pauini. Até agosto de 2022, os cerca de oitenta habitantes da vila podiam contar com apenas três horas de energia diária, produzida por um gerador a diesel. Até que procuraram a ajuda de entidades do terceiro setor para desenhar um projeto de usina de energia solar.

Lá, em vez de cada casa ter seus próprios painéis, todos foram instalados, lado a lado, em um canto da vila. Baterias e inversores foram alojados nas casas, mas no topo das paredes, onde não correm risco de serem atingidos por alagamentos. “Todo o processo foi conversado durante aproximadamente quatro anos. Estávamos dispostos a assumir os custos do sistema, mas felizmente conseguimos financiar os equipamentos”, diz Napoleão Oliveira, um dos dirigentes Associação dos moradores da Vila Limeira. O projeto teve apoio da WWF-Brasil e da Fundação Mott.

Todo o processo foi feito por meio de um modelo de autogestão. As famílias pagam uma taxa variável pelo uso da fonte solar a um fundo da associação de moradores, e parte desse valor vai para outro fundo de reserva, pensado para um momento de emergência, caso haja necessidade de fazer manutenção nos equipamentos. Os moradores, devidamente treinados, conseguem operar o sistema sozinhos e monitorar a vida das baterias.

Uma política como essa demanda várias etapas de investimento. Isso porque, depois que obtêm acesso a uma fonte de energia contínua, as famílias costumam equipar suas casas com eletrodomésticos e outros equipamentos que consomem muita energia. O mesmo ocorre nas escolas e centros de saúde. A capacidade dos sistemas solares instalados nesses locais, portanto, talvez precise ser redimensionada no médio prazo.

Assessorados por ONGs, povos extrativistas, quilombolas e indígenas têm se organizado para buscar acesso a energia renovável de forma perene. Em um documento elaborado durante o II Encontro Energia & Comunidades, realizado em maio de 2023, em Belém, um grupo de indígenas de diferentes partes da Amazônia declarou: “Queremos energia limpa, de qualidade, segura e de custo zero para os povos indígenas. Informamos que nossos territórios possuem potencialidade para gerar energia solar, hidrocinética e em alguns casos energias eólicas para evitar a utilização de combustíveis fósseis. Mas não queremos que a energia chegue de qualquer jeito, como já aconteceu em outros tempos em que houve destruição ambiental, sem qualquer diálogo ou orientação aos povos, onde não houve compensações, mitigações e estudos dos componentes indígenas nas áreas diretamente impactadas pelas linhas de transmissões e hidrelétricas construídas.”

 

Fonte: Reporter Brasil/Revista Piauí

 

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