terça-feira, 2 de abril de 2024

Eliara Santana: O golpe, ontem e hoje, e o esquecimento calculado

Para 63% dos brasileiros, a data do golpe militar de 1964, que implantou uma ditadura violenta de 21 anos, deve ser esquecida.

Os dados são da recente pesquisa Datafolha. Não quero discutir aqui a decisão do Governo Lula de proibir qualquer ato oficial relativo à data.

Entendo que houve acordos e até entendo a necessidade deles diante da ameaça constante contra a democracia. Nós não vencemos a guerra. Vencemos uma batalha bem difícil, e estamos todos estripados, daí os acordos.

Portanto, quero discutir neste 31 de março de 2024, 60 anos do golpe militar, um tema muito sensível e que tem despertado minha atenção cada vez mais: o esquecimento calculado.

“Conceito” que estou elaborando a partir de um olhar atento para várias questões, o esquecimento calculado é tanto conveniente quanto programado.

E com essa percepção, quero discutir também nesta data a falta de memória que marca a vida nacional – o que revelam os dados da pesquisa.

Somos um país desmemoriado, não temos uma memória cultivada: esquecemos datas, feitos, atores, acontecimentos.

E esse esquecimento, amigos, nada tem de aleatório — a memória, como o amor, é algo construído e cultivado — e aqui, a ideia de cultivar é muito importante.

Portanto, a ausência calculada do ato de lembrar — com um certo desprezo calculado por tudo o que passou, por tudo o que vivemos, por tudo de bom e de ruim que as pessoas fizeram — é uma estratégia de certos grupos e certas pessoas.

Do ponto de vista pessoal, esquecer o que aconteceu e o que fizeram conosco vem muito a calhar.

Se fizeram coisas ruins, bola pra frente; mas se fizeram coisas boas e queremos mudar de lado ou arranjar novos parceiros, esquecer é muito conveniente.

Do ponto de vista político-nacional, o esquecimento é estratégico para os grupos dominantes — e cultivar o esquecimento é uma ação que se oculta sob o véu da máxima “o que passou passou”. Mas não passou, não passa.

A tortura não passa, a dor de perder alguém amado não passa, o silenciamento não passa, a falta de reconhecimento não passa, as puxadas de tapete não passam, a traição não passa, a ausência de um corpo da pessoa amada para enterrar não passa.

Nada disso passa, fica sempre ali, latente. Uma memória nacional apagada e silenciada — um não dizer permanente, mesmo em governos democráticos. E seguimos como se nada tivesse havido. Ou fingindo que nada houve.

Eu gosto de lembrar, gosto de cultivar a memória, gosto de revisitar os acontecimentos — isso me faz entender muitas coisas e muitas ações. Lembro-me de acontecimentos bons e ruins, de coisas boas e ruins que pessoas importantes para mim me fizeram. Isso também ajuda a pensar sobre o futuro.

Do ponto de vista de uma Nação, eu diria que é bem semelhante. Se nós não cultivamos o ato de lembrar, se nós varremos parte da vida nacional para debaixo do tapete, não vamos conseguir pensar o futuro de modo íntegro.

A ditadura que se instalou com o golpe de 1964 matou, torturou, roubou sonhos, levou embora um projeto nacional e é também responsável pela eclosão do bolsonarismo.

Toda a estrutura militar corrupta, que se apropriou do Estado e se enriqueceu, formando uma casta na qual não se mexe — com familiares que seguem se beneficiando muito de tudo isso — é incompatível com a democracia.

Essa casta segue dominando — basta ver as milícias e as polícias e os generais golpistas.

Portanto, o esquecimento é muito conveniente para também manter intactos os privilégios.

O Brasil deveria ter um grande museu da tortura, um grande museu pra lembrar que ditadura mata e destrói, que a tortura não é aceitável, que regimes totalitários não são benéficos. Mas não temos nada assim. E vamos assistindo à casta militar tramar golpes e se safar.

Centenas e centenas de famílias não enterraram seus mortos na ditadura. Mães não encontraram nunca mais seus filhos.

Isso é resultado da ditadura, isso tem de ser dito e mostrado — vivemos numa sociedade midiatizada.

Hoje, as polícias matam e ainda torturam — isso é legado do golpe de 1964, tem de ser mostrado e dito.

O bolsonarismo como se articulou no Brasil é fruto da ditadura e do esquecimento calculado — que é muito conveniente para os dominantes e poderosos.

Precisamos nos lembrar do 31 de março de 1964 e de todas as suas consequências, pois ainda choram Marias e Clarices e nossa Pátria mãe, tão distraída, segue sendo subtraída em tenebrosas transações que golpeiam a democracia.

O esquecimento calculado nos rouba a voz coletiva e nos mata aos poucos. Por isso, precisamos lembrar, para que nunca mais aconteça.

 

Ø  Ainda se ouvem os ecos barulhentos de 1964. Por Jeferson Miola

 

1964 não ficou no passado. Ainda hoje, 60 anos depois do golpe militar que levou à longa ditadura de 21 anos, ainda se escutam os ecos ruidosos de 1964 na atualidade.

O 8 de janeiro de 2023 testemunha cabalmente que 1964 não pertence só ao passado, continua muito vivo no tempo presente.

Quem está por trás do que aconteceu em 8/1 senão as mesmas cúpulas das Forças Armadas que em toda história republicana abalaram o país com golpes de Estado e rupturas institucionais?

Os militares já vinham executando o plano conspirativo sub-repticiamente pelo menos desde 2013, 2014, época em que condecoravam agentes da gangue de Curitiba que eram incensados pela Rede Globo porque executavam a destruição semiótica do Lula, do PT e da esquerda.

Em 2015 e 2016, comandantes militares afiançaram apoio a Michel Temer para o impeachment fraudulento da presidente Dilma.

Os generais-conspiradores Sérgio Etchegoyen e Villas Bôas traíram a presidente que os havia nomeado, e, em troca, ganharam o controle do governo Temer, militarizaram o aparelho de Estado e rapidamente reestruturaram o sistema de informações da ditadura.

No breve período Temer, os militares reuniram condições para tomar o poder de assalto outra vez não pela imposição das armas, mas por meio da eleição fraudada da chapa militar Bolsonaro/Mourão.

Para isso, precisariam eliminar da concorrência o virtual vencedor daquela eleição e blindar seu candidato, vinculado a milícias e ao submundo do crime.

Então eles mandaram o STF prender o único competidor efetivo, Lula, sem precisar usar um cabo e um jipe, apenas um simples tweet do Alto Comando do Exército assinado pelo comandante Villas Bôas.

E controlaram o “risco-milícia” para a candidatura militar com a intervenção federal no Rio.

Durante o governo militar com Bolsonaro, os fardados passaram a agir abertamente para quebrar o Estado de Direito, dobrar a institucionalidade vigente e instaurar um regime fascista-autoritário duradouro.

A derrocada da democracia foi uma política permanente de governo. A ponto de Bolsonaro comunicar isso oficialmente ao mundo em encontro convocado com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada.

Diferentemente de 1964, quando destituíram Jango, nas tentativas de 2022 e 2023 os militares não conseguiram materializar o intento golpista.

Desta vez, eles não contaram com a autorização dos EUA e não ganharam o verniz de legitimidade que o STF conferiu ao golpe militar na madrugada de 2 de abril de 1964.

Naquela ocasião, o presidente do STF Ribeiro da Costa legitimou a farsa do presidente do Congresso, senador Auro de Andrade, que declarou falsamente a vacância da Presidência da República e ilegalmente empossou o presidente da Câmara Ranieri Mazzilli no lugar do Jango sob as ordens e os olhares de generais golpistas num Palácio do Planalto já violado.

A frágil democracia do Brasil sobreviveu por um fio no período recente. Por muito pouco não foi destruída.

A repercussão nacional e internacional da vitória do presidente Lula na eleição foi essencial para salvá-la, e contou com a mudança de postura dos vilões da democracia de ontem, que levaram o país ao precipício em 2016, e que hoje posam de heróis da democracia porque se assombraram com a escalada fascista – STF, mídia hegemônica e frações das classes dominantes.

Os atores que em 1964 conspiraram, violentaram o Estado de Direito e instalaram a ditadura são os mesmos atores por trás do empreendimento golpista que por muito pouco não vingou desta vez.

O golpe de 64 não ficou no passado, continua vivo e presente no Brasil contemporâneo. As tentativas de insurreição militar contra a vitória de Lula são ecos barulhentos de 1964 que subsistem no tempo presente.

Enquanto esse passado de traumas e violências contra o povo brasileiro e a democracia não for enfrentado pela sociedade civil e pelos poderes da República, a possibilidade de um futuro sombrio do Brasil continuará sendo uma hipótese muito realista.

Principalmente no caso da eleição de Donald Trump à presidência dos EUA em novembro próximo. Aliás, este poderá ser o prazo de validade das escolhas do governo na questão militar.

 

Ø  Artigo 142: um resto de ditadura militar em nossa democracia?

 

Desde a década passada, em qualquer manifestação de extrema direita no Brasil é possível ver cartazes pedindo pelo uso do artigo 142 da Constituição Federal para a realização de uma "intervenção militar" no país. Na prática, um golpe de Estado.

O artigo 142 da Constituição de 1988 é um tema de polêmica há décadas no Brasil e sempre foi utilizado por figuras da direita brasileira para validar, de alguma maneira, a tutela dos militares sobre os brasileiros.

60 anos depois do golpe militar de 1964 e a implementação da ditadura no país, o fantasma de um golpe das Forças Armadas ainda não se afastou do país. E no campo jurídico, é justamente o artigo 142 que assombra os democratas.

Antes, é necessário ler o dito cujo.

"Art. 142 - As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."

·        As origens do 142

Conversamos com o historiador Chico Teixeira, professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, da UFRJ e da UFJF, além de ex-funcionário do Gabinete de Segurança Institucional e do Ministério da Defesa, para entender um pouco mais dessa história.

"Tudo isso que está acontecendo é por causa da forma que se deu a transição entre a ditadura e a democracia brasileira. A transição brasileira não foi uma transição por colapso", afirma, relembrando a transição "lenta, gradual e segura" da ditadura militar até a Constituinte. "É a transição mais longa de toda a história. Além de ser uma transição pactuada, é uma transição extremamente longa. E somente cerca de 10% a 12% dos constituintes de esquerda, e que queriam, de fato, renovar a democracia do Brasil."

"O centrão surge aí. E ele impõe, ao lado dos militares, limites à transição brasileira. Um desses limites é a garantia de uma tutela militar sobre a república. Essa tutela está expressa no artigo 142. A doutrina da tutela militar no Brasil era muito ativa. Ela vem desde 1889, quando os militares derrubaram o império, tomaram o poder, implantaram a república, e, a partir daí, eles acharam que eles eram os tutores da república", explica.

·        As interpretações nefastas

Foi no seio do bolsonarismo que o artigo 142 ganhou interpretações mais 'fascistoides'. Juristas da extrema direita justificaram que as Forças Armadas tinham o poder de intervir nos poderes por meio de um molde de golpe militar como o de 1964, mas tutelados pela Constituição.

Em 2023, foi revelado que a cúpula militar do governo Bolsonaro chegou a consultar o jurista Ives Gandra para entender mais sobre as possibilidades de uso do artigo 142, para o qual ele respondeu: "pode ocorrer em situação de normalidade se no conflito entre poderes, um deles apelar para as Forças Armadas, em não havendo outra solução”.

"Eles têm o mesmo papel hoje que Francisco Campos, o grande jurista do golpe de Estado de 1937, que fundou o Estado Novo, tinha. Tinha o mesmo papel dos juristas como Francisco Medeiros, e, mais uma vez, Francisco Campos, que apoiaram o golpe de 1964 Então, há uma tradição jurídica brasileira que sempre apoia golpes de Estado. Não há nenhuma novidade em relação a isso. Mas, do ponto de vista da concretude do direito, o artigo 142 perdeu a sua validade como tal", explica Teixeira.

O artigo 142 foi regulamentado por uma lei editada no período FHC, a Lei Complementar 97, de 1999, que criou a Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Nas GLOs, as FFAA são convocadas por um poder - Executivo, Legislativo ou Judiciário - para agir na restauração da ordem pública. É o caso da greve dos policiais de 2017 no Espírito Santo ou da greve de caminhoneiros de 2018.

Ou seja: o artigo 142 da Constituição já foi utilizado em diversas ocasiões, inclusive por governos do PT em eventos como a Copa do Mundo 2014.

Interpretá-lo como anuência para golpe militar é pura e simplesmente errado. "Não há valor de face no artigo 142. Ele perdeu o seu valor, mas ele não foi suprimido. Ele foi reinterpretado de uma forma rigorosa e legalista. Os mal-intencionados, como é o caso do Miguel Reale Júnior e de alguns chefes militares, querem ler apenas o valor de face do caput do artigo, e não ler as leis complementares que reformaram a Constituição nesse sentido. Portanto, cometem uma grave ilegalidade", completa Teixeira.

·        Hora de acabar com o 142?

O desejo de mudar o 142 vem desde o seu surgimento. Deputados constituintes como José Genoino e Fernando Henrique Cardoso trabalharam para tentar tirar a tutela dos militares sobre a "lei e a ordem", mas foram pressionados pelo general Leônidas Gonçalves, ministro da Guerra do governo Sarney.

O deputado federal do PT de São Paulo Carlos Zarattini lidera o debate, desde o ano passado, por uma alteração do artigo 142 para retirar o poder dos militares na Constituição.

"Nós queremos tirar das atribuições das Forças Armadas a chamada Garantia da Lei e da Ordem. Nós queremos mudar o texto. Porque é uma redação que está muito 'patriotada' e com pouca definição", explica o deputado.

"Também queremos introduzir alguns outros parágrafos. Se o militar for candidato a alguma coisa, ele é automaticamente removido para fora das forças. Assim como é com juízes e promotores. Na hora que você opta pela política, você deixa de seguir carreira. Então, nós estamos querendo colocar que se o cara for para um cargo civil, de natureza civil, ele também deixa de seguir carreira", completa Zarattini. "A gente propõe que fique proibida qualquer atividade política dos militares. É um artigo que está na Constituição Portuguesa. Na medida em que o camarada se meter na política, de algum jeito, ele está automaticamente fora das Forças Armadas", destaca o parlamentar.

·        O governo e os militares

Alterar o artigo 142 da Constituição envolveria, em algum nível, como demonstrou o deputado Zarattini, algum conflito com setores das Forças Armadas.

Segundo o próprio parlamentar, esse é o principal entrave para que a Proposta de Emenda à Constituição ganhe força, por conta da política do governo Lula de não entrar em conflito com as armas.

"O governo tem uma linha de não ter nenhum tipo de aresta com os militares. E, evidentemente, esse é um projeto que um setor militar, que quer se envolver em política, vai reagir contra. Deputados, senadores, que têm origem militar, vão reagir contra. Mas nós temos certeza que a maioria dos militares não teria nenhum problema com isso", defende Zarattini.

O historiador Chico Teixeira avalia que não enfrentar os militares golpistas é um erro do governo Lula. "O Lula está querendo isolar Bolsonaro como inimigo e absolver os militares, não entendendo que o bolsonarismo é uma das formas do golpismo militar na história do Brasil", afirma. "A ideia de que o Lula teve um ótimo relacionamento com os militares, isso é fantasia. O Lula fantasia isso." 

 

Fonte: Viomundo/Fórum

 

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