Como o diagnóstico tardio de autismo
impacta as diferentes fases da vida
Encontrar o seu lugar
no mundo pode ser um desafio de anos. Em muitos casos, essa busca intensa é
reflexo da necessidade de se encaixar e pertencer. Para quem é diagnosticado de
forma tardia dentro do transtorno do espectro autista (TEA), essa procura tem
ainda mais impacto e significado. E quando, enfim, o diagnóstico vem, vários
são os sentimentos. Alívio e autoconhecimento são alguns deles, isso porque um
passado inteiro de incompreensões passa a fazer sentido.
Estima-se que, hoje,
há um caso de autismo a cada 44 pessoas nos Estados Unidos, conforme dados
publicados pelo CDC (Center for Disease Control and Prevention), em 2022. Em
nível nacional, não se sabe ao certo qual o número correto de brasileiros com
autismo. No entanto, com base na estatística apresentada pelo órgão ligado ao
governo norte-americano, o cálculo aponta um contingente de 4 milhões de
indivíduos que vivem com TEA no Brasil.
Considerado uma
alteração do neurodesenvolvimento, o transtorno do espectro autista é uma
condição inata, que se manifesta desde a primeira infância. Carlos Uribe,
neurologista do Hospital Brasília, da rede Dasa no DF, explica que os sintomas
característicos incluem alteração no desenvolvimento normal da linguagem,
dificuldade para as interações sociais e presença de comportamentos
estereotipados. "Dentro do espectro tem casos com sintomas muito graves e
outros com sintomas muito sutis, que inclusive podem passar despercebidos
durante vários anos", ressalta.
As características
centrais do autismo têm a ver com limitações ou deficiências nas habilidades
sociais (cognição social), linguagem e comportamento. Segundo o neurologista, o
assento dessas habilidades cognitivas está localizado em redes amplas de neurônios
que têm seus epicentros no lobo frontal. Casos com sintomas muito sutis podem
passar despercebidos durante a infância e a adolescência. Por isso, talvez, o
diagnóstico tardio esteja presente na vida de vários indivíduos. São pessoas
que, muitas vezes, eram chamadas de forma coloquial de "esquisitas"
ou "diferentes", na avaliação de Uribe.
"Por se tratar de
uma condição inata, há um componente genético/hereditário muito forte. É muito
comum que, nesses casos de diagnóstico tardio, tudo tenha sido iniciado pelo
diagnóstico de um filho, que faz perceber que alguns comportamentos e algumas
experiências passadas dos pais poderiam estar explicados por um diagnóstico de
TEA nos progenitores", completa o neurologista.
• Autismo e depressão
"Desde a
infância, eu me diferenciava das demais crianças." Larissa Argenta
Ferreira de Melo, 40 anos, apresentava perfil introvertido, não gostava de
toques ou abraços, tampouco de conversar ou fazer amigos. Estudava em um
tradicional colégio particular, mas ninguém, jamais, suspeitou que o autismo
fizesse parte da vida dela. Aluna destaque, com notas altas e bom desempenho, a
desconfiança sempre passou despercebida. Naquela ocasião, só sabiam das altas
habilidades/superdotação, mas não havia nenhuma adaptação curricular para isso.
Com a chegada da
adolescência, os problemas começaram a aparecer. Larissa tinha mau
comportamento, tornou-se agressiva, arredia e faltava aulas. "Tinha uma
sensação de tristeza, de inadequação, que, aos poucos, foi se transformando em
desencanto pela vida, em vontade de não mais viver. Por esse motivo, a partir
dos 17 anos, comecei a saga de internações psiquiátricas intermitentes, que
perduraram até os 34 anos. O diagnóstico, à época, era transtorno afetivo
bipolar (TAB), e experimentei todas as medicações existentes, mas nenhuma fazia
efeito", relembra.
Aos 34 anos foi
reavaliada por um psiquiatra que descartou o diagnóstico anterior, mas não
conseguiu saber o que de fato ela tinha. Felizmente, à época, parou de tomar
medicações erradas, o que melhorou bastante sua qualidade de vida. "Aos 38
anos, estava em um relacionamento com uma pessoa que tinha sido casada com uma
autista. Ele disse que precisávamos fazer terapia para resolver questões da
relação, mas, na verdade, era uma avaliação neuropsicológica, que resultou no
meu diagnóstico de autismo. Esse foi um dos momentos mais difíceis para
mim."
No começo, refutou
completamente a avaliação. Larissa não aceitava o diagnóstico, pois afirmava
ter "uma percepção capacitista" do autismo. Uma depressão profunda
surgiu, o que gerou uma grave crise sensorial, somatizada em adoecimento
físico. Depois de tantas dificuldades, como consequência, foi internada em
setembro de 2022, em isolamento, com suspeita de tuberculose. Foram quase 10
dias sem conseguir respirar, tendo alterações nos batimentos cardíacos e
perdendo eletrólitos.
"Como eu estava
em risco de vida, aproveitei o momento de introspecção e reflexão para estudar
sobre o que era autismo, como ele se manifestava em mulheres. A partir desse
momento, tudo começou a fazer sentido, e o diagnóstico que antes me gerava dor
passou a ser um instrumento de libertação. Tudo começou a fazer sentido, todas
as dores, as dificuldades, as rejeições", acrescenta.
• Luz na escuridão
Ainda neste período,
decidiu que, caso não morresse naquele momento, dedicaria o resto da vida à
causa autista, imaginando a quantidade de pessoas que viveram e morreram sem
ter acesso ao diagnóstico. Larissa pensou, ainda, naqueles que sofriam na
terapia, mentalmente e fisicamente, e em muitos que não têm condição financeira
para buscar tratamento adequado. Essa crença, talvez, tenha a segurado nos dias
ruins. E mais do que isso, passou a encarar a própria jornada com uma definição
nunca experimentada antes: a de lutar por um motivo.
Por sorte, ela começou
a melhorar e descobriu que estava com uma pneumonia atípica agressiva, mas
tratável. Ao sair do hospital, colocou em execução o que havia planejado
durante o período de internação. "Sabia que, ao assumir o diagnóstico,
enfrentaria muitos preconceitos e dificuldades, mas não poderia me calar ou me
omitir. O primeiro passo foi assumir o autismo no emprego", detalha.
Servidora pública
concursada desde 2005, ocupava função de chefia na ocasião. Ao apresentar o
diagnóstico, foi imediatamente descomissionada, e luta até hoje na Justiça para
reverter a situação. "Inaugurei um escritório de advocacia especializado
na causa autista. Comecei a me articular com os movimentos ativistas, também
das demais deficiências e síndromes. Tive a oportunidade de participar da
criação da Comissão dos Direitos do Autista da OAB Subseção Taguatinga, a qual
presido. Em outubro deste ano, tive a alegria de falar sobre autismo e
diversidade na Conferência Nacional da Mulher Advogada da OAB Nacional, em
Curitiba", conta Larissa.
Foi convidada pelo
deputado Eduardo Pedrosa para integrar a Frente Parlamentar do Autismo; da
Prevenção ao Suicídio, Depressão e Qualidade de Vida. Recebeu moção de Louvor
do deputado Fábio Felix pela atuação na educação inclusiva. Começou a atuar
junto ao Legislativo na luta pela inclusão. "Eu me uni ao Sindicato dos
Bancários de Brasília no combate ao assédio moral aos autistas e seus
familiares. Proponho projetos ao Executivo para a criação de políticas
públicas. E me engajei em diversas redes e movimentos, ocupando cargos
voluntários de natureza jurídica."
• Propósito
Nada nesta nova fase
parecia parar Larissa. Até que, no ano passado, foi diagnosticada com uma
doença rara: SED (Síndrome Ehler-Danlos), que lhe causa bastante fadiga e
limita sua capacidade de produção. No entanto, isso não a impediu de continuar
atuando pela causa. Atualmente, consegue ficar pouco tempo em exposição social,
o que a impede de marcar presença física em eventos. Mas, sempre que pode,
afirma aceitar os desafios que se apresentam.
A cada dia que passa,
Larissa enxerga que o diagnóstico tardio prejudicou seu desenvolvimento
enquanto ser humano. Dores poderiam ser evitadas no passado, sofrimento em
decorrência do desconhecimento e da desinformação sobre quem de fato ela era.
"Olhando para trás, consigo ver todo o prejuízo social, profissional,
educacional e relacional que essa situação me causou. Tenho profunda gratidão
por ter tido acesso ao diagnóstico, de me entender, de me conhecer e buscar o
meu equilíbrio", comenta.
Grande parte dos dias
de Larissa são dedicados a terapias e acompanhamentos médicos. Conta com
diversos profissionais que a acompanham e que lhe ajudam a se manter sem
crises. Por conta da SED, faz fisioterapia duas vezes por semana em clínica
especializada. Cuida da alimentação, não toma leite nem glúten e evita açúcar
refinado. Não lê notícias negativas, que possam desestabilizá-la
emocionalmente, e escapa do excesso de telas. "Vivo cheia de regras, mas
que me possibilitam viver em paz. Isso é libertador, e vou dedicar todo o meu
empenho e capacidade para que o máximo de pessoas possam ter o direito de viver
da mesma forma: em paz dentro de si mesmo."
• Um rosto desconhecido
Vários aspectos podem
contribuir para o diagnóstico tardio de autismo, como a falta de informação
sobre o assunto, que levaria a não identificação dos sinais ao longo da
infância e da adolescência. Rafael Alberto Moore, professor no curso de
psicologia do Centro Universitário Uniceplac, doutor em psicologia clínica e
especialista em neuropsicologia, ressalta que algumas apresentações atípicas
dos sintomas também podem dificultar a identificação do TEA.
Além disso, a falta de
acesso a serviços e a profissionais de saúde durante a infância e a
adolescência atrapalham a busca pelo diagnóstico correto, já que o retrato de
informações e dados no que diz respeito ao tema são difíceis de encontrar. O
processo de avaliação, na fase adulta, segundo Rafael, é similar aos primeiros
anos de vida.
"Um neurologista
ou um psiquiatra vai analisar o caso com apoio de outros profissionais que
fornecem avaliações complementares, como um fonoaudiólogo e um neuropsicólogo,
por meio de avaliação e aplicação de testes específicos. O autismo pode estar associado
a quadros genéticos, que tornam o quadro mais provável, ou outros fatores
genéticos e ambientais mais gerais. Como transtorno de neurodesenvolvimento, os
sinais do autismo devem ser identificados desde as fases iniciais do
desenvolvimento", discorre.
Muitos sinais também
se tornam menos presentes nos adultos, que podem mascarar ou desenvolver
capacidades de enfrentamento, o que torna difícil a avaliação. De acordo com
Rafael, para o diagnóstico no adulto nem todos os sintomas precisam estar
presentes no agora, se eles puderem ser comprovados em fase prévia do
desenvolvimento, ou seja, um comportamento estereotipado ou repetitivo na
infância, por exemplo, que não está mais presente no adulto, ainda é um
indicativo de autismo.
• Depois da descoberta
O autismo pode afetar
importantes marcos do desenvolvimento, como o comportamento motor, a aquisição
da fala, as primeiras interações, a maneira de brincar, a interação com o
ambiente. “Muitas vezes, esses comprometimentos são pequenos, mas alcançam um grande
espectro do desenvolvimento infantil. A criança pode ser identificada de forma
pejorativa como estranha, tímida ou diferente”, alerta Rafael.
Se esses
comprometimentos não chegarem a gerar impacto na aprendizagem, pode ser que os
pais não procurem ajuda de um profissional, descreve o psicólogo. Isso porque
tais aspectos podem não ficar registrados ou não serem lembrados adequadamente
com o tempo. Outra dificuldade é quando ocorre, durante o desenvolvimento, o
mascaramento das diferenças.
As pessoas com autismo
falam de mascaramento ao se referir à ação de se comportarem de uma forma que
demandam deles em ambientes sociais, mas que não correspondem ao que eles
sentem e fazem normalmente. O desenvolvimento dessas formas de adaptação pode não
deixar clara a presença de uma série de sinais do autismo, tornando mais
difícil o diagnóstico no adulto.
• O começo de tudo
Dois anos antes da
pandemia, Daniel Zukko, 44, procurou ajuda psicológica e psiquiátrica para
tratamento contra a depressão. Durante as sessões, um dos temas mais abordados
era sua dificuldade em entender regras, em especial as de convivência social.
Isso o incomodava e lhe deixava pensativo. Até que recebeu, de presente, o
boneco de Sheldon, protagonista do seriado The Big Bang Theory, dado pela
primeira psicóloga que conheceu.
O personagem,
conhecido pela intelectualidade e humor inteligente, também é autista. “Ela me
disse que eu era um pouco parecido com ele”, recorda Daniel. A partir desse
momento, a semente foi plantada. Com isso, correu atrás para entender um pouco
mais desse universo. Não demorou muito até que o diagnóstico de autismo
aparecesse, vindo de outra especialista da área.
“Meu autismo é nível
um de suporte com altas habilidades. Tive muitas dificuldades pra entender. Sou
da década de 1980. Para quem cresceu nessa época, falava-se muito pouco disso.
Todo mundo entendia que autista era rígido e muito agressivo, que ficava balançando,
não se comunicava. Pouco se falava de outros níveis”, conta.
Durante quatro
décadas, Daniel se moldou para caber. Resolveu se adaptar, costurando sua
essência para não ser sempre o “esquisito” dos âmbitos sociais em que estava
inserido. Contudo, quando o diagnóstico chegou, uma espécie de alívio veio
junto. “Já vinha lendo sobre, pesquisando algumas coisas. Quando, na terapia,
começou a falar, pensei na possibilidade. Foi quase um: 'Então é isso? Agora
tudo faz sentido'. A partir do alívio, você entende tudo, as máscaras sociais,
até que ponto isso me esgotou socialmente e sensorialmente”, acrescenta.
• Busca pela liberdade
Daniel passou a se
conhecer um pouco melhor, conversar com as pessoas e pedir muitas desculpas por
acontecimentos do passado. O diagnóstico tardio, talvez, tenha atrapalhado
muita coisa, principalmente nas questões sociais. Algumas delas, inclusive, ele
mesmo encarava como frescura, sobretudo na alimentação, porque tem problemas
com as texturas de certos alimentos. Sempre foi taxado como o chato da comida,
que não come isso ou aquilo e que não encosta a mão.
“Odeio passar creme,
não gosto de hidratante, por conta do toque. Passei a entender meu cansaço
constante da questão sensorial, tenho sensibilidade auditiva, sons diversos são
quase que imediatos. Sou músico também. Dificultou, porque a gente vai chegando
em pontos de estresse que são muito difíceis. Fui o cara taxado de pessoa
difícil e arrogante, por conta dessa coisa de falar e não entender qual o
problema de falar.”
Hoje, ele faz
acompanhamento com psicólogo, em especial nos momentos de dificuldade. Gosta de
ler muito, compreender as coisas e se autoconhecer. Além disso, tem alguns
amigos próximos e familiares que o ajudam nesse processo. Daniel é,
basicamente, autodidata em quase tudo o que faz. Toca instrumentos, desenha,
faz charges, tem dois livros publicados, cria animações 3D, edita vídeos e
ainda arruma tempo para ser fotógrafo. “Tenho facilidade com o que me interessa
muito, incluindo idiomas", finaliza.
• Classificação e tratamento
Para realizar o
tratamento, há de se considerar a neuroplasticidade, ou seja, a capacidade do
sistema nervoso de se adaptar e crescer. Segundo o psicólogo Rafael Alberto
Moore, na criança, essa plasticidade é máxima. Por isso, intervenções precoces
do autismo são as mais eficientes. No adulto, porém, ainda é possível um
conjunto de adaptações, mas de outro tipo. Após a avaliação, ao se identificar
as dificuldades específicas de cada pessoa, o tratamento foca em desenvolver
habilidades de enfrentamento e adaptação às limitações existentes, à
habilitação ou à reabilitação de funções cognitivas com algum prejuízo.
Mas, também, em
aspectos emocionais, como autoestima, no estigma que pessoas com autismo sofrem
ao longo da vida, na valorização das qualidades e em pertencimento, que, quando
afetados, podem contribuir para transtornos de humor e ansiedade em cormobidade.
De acordo o especialista, o TEA é dividido em graus, seguindo o nível de
suporte necessário para cada pessoa.
“No DSM-V (manual
estatístico e diagnóstico de transtornos mentais), o autismo pode ser dividido
em três níveis, sendo o nível um o de menor suporte, com relativa autonomia da
pessoa, enquanto no nível três existe a necessidade de suporte substancial para
a pessoa com autismo”, elenca.
Outra classificação
importante é a dos comprometimentos associados ao autismo, que podem ser de
linguagem e de intelecto. O autismo não implica em prejuízo de linguagem ou de
intelecto, mas, em muitos casos, esses comprometimentos podem ser percebidos.
• Um novo nascimento
Dificuldades para
socializar e manter uma conversa. O simples para Lorrany Beatriz Urias de
Abreu, 23 anos, nunca foi algo fácil. Na infância, especialmente na escola,
interagir com amigos e professores era sempre um obstáculo que ela nunca tinha
forças para atravessar. Além do diálogo, outros desafios enfrentados pela jovem
era o de compreender ironia e manter contato visual. "Sempre tive
seletividade alimentar. Quando criança, minha alimentação era arroz e tomate na
maior parte dos dias", complementa.
Ano passado, depois de
muito tempo vivendo uma vida solitária, todas as respostas que Lorrany
procurava apareceram. No início, a primeira reação foi de alívio e
pertencimento. Sempre se sentiu diferente, mas não entendia por que essa
sensação crescia dentro dela, de forma tão exponencial. Lidou com esse assunto
na psicoterapia, local em que pôde perceber a evolução por meio de estímulos
para flexibilizar a rigidez cognitiva presente do autismo.
Para a jovem, o
diagnóstico tardio lhe prejudicou de diversas formas, tendo em vista que, na
infância, quando a identificação acontece de forma precoce, há a possibilidade
de abranger o acesso a tratamentos adequados e a terapias. "Quando
descoberto de forma tardia, as mudanças são mais difíceis de serem
realizadas", acredita.
A vida após o
diagnóstico tem sido mais leve. Lorrany se culpa menos por ser diferente e
compreende que o próprio funcionamento não é igual ao de todo mundo. A
socialização evoluiu bastante na adolescência, mas foi difícil trabalhar essa
questão sem ao menos saber o porquê da limitação. Realizou psicoterapia por um
período e, no momento, encontra-se sem acompanhamento, mas pretende retornar
com as sessões.
"Minha família,
inicialmente, ficou em choque, não entendia muito bem o diagnóstico, até mesmo
por falta de informação. As pessoas estão acostumadas com crianças autistas.
Quando olham para algum adulto autista que consegue realizar atividades, como
trabalhar e estudar, isso gera estranhamento. Até então, não tem nenhum caso
diagnosticado na minha família", diz.
Com autismo nível um e
suporte, as maiores dificuldades da jovem estão relacionadas a
barulhos, que causam
incômodo, a mudanças repentinas — até mesmo em rotina —, a iniciar conversas
com pessoas e a provar novos alimentos. Todavia, são questões que ela lida
diariamente, e tem feito o máximo para se esforçar com elas. Sobre barulhos,
costuma andar com abafador de ruídos para não lhe gerar uma sobrecarga
sensorial.
• Direitos garantidos
De acordo com Edilson
Barbosa, pai de dois jovens autistas e especialista em direito dos autistas,
direito penal e processo penal e direito eleitoral e democracia, dependendo do
local de trabalho, o indivíduo tem direito a ter um ambiente adequado para o
desenvolvimento da sua função. Sempre munido, claro, de relatórios médicos e
terapêuticos informando suas condições. “O melhor é informar antes da
contratação, como é feito nos concursos públicos”, aconselha.
Em âmbito geral, os
direitos estão elencados em várias leis municipais, estaduais, distritais e
federais. A principal é a Lei Federal n° 12.764/2012 que, em seu artigo 3°,
disciplina esses direitos, detalha Edilson. E em seus seus artigos apresenta um
rol de direitos para autistas no Brasil.
“Leiam as leis, tente
conseguir interpretar e, se tiver dúvidas, procure uma entidade de defesa dos
autistas que, certamente, terá alguém para esclarecer e como ter acesso a esses
direitos. Conhecendo seus direitos, a pessoa autista e seu suporte terão condições
de não aceitar qualquer violação a eles”, orienta Edilson, que também é
presidente do Movimento Orgulho Autista Brasil-MOAB e presidente da Comissão de
Direitos Humanos da OAB/Ceilândia-DF.
• Tristeza e isolamento
Imagine tentar por
inúmeras vezes ser quem você não é, ainda mais quando criança. Foi assim que
Ilus, 41, começou a própria jornada no mundo. Sempre que buscava se socializar,
se frustrava. Desde muito cedo, a mãe percebeu que ela, frequentando a escola,
nunca conseguia participar das brincadeiras com outros colegas. Com isso, as
professoras eram questionadas, mas respondiam que tentavam a introduzir nas
participações, mas sem sucesso.
“Não era uma criança
triste por isso, embora tivesse a impressão que nem meus colegas, nem meus
professores gostassem de mim. Só não me sentia mais isolada porque morava numa
vila, em Minas Gerais, e, com as crianças da vila, meu irmão era uma espécie de
ponte que me ajudava a participar de algumas brincadeiras. Na adolescência,
minhas dificuldades aumentaram muito, e a escola se tornou quase insuportável
pelo bullying que sofria diariamente”, revive.
A partir dos 17 anos,
passou a se esforçar para socializar, pois sentia que demorava demais para
conseguir fazer amizades, mas, mesmo com muito esforço, o contato com pessoas
da própria idade era sempre limitado e cheio de frustrações. “Não tinha grandes
dificuldades no estudo, mas me sentia ignorada por meus professores, até que
entrei em contato com a física, e esse se tornou um assunto de interesse
intenso”, acrescenta.
Fez o bacharelado em
física, o mestrado e o doutorado em geofísica espacial, e era sempre vista como
inteligente, mas pouco esforçada. No mercado de trabalho, teve a primeira
grande barreira. Não conseguia exercer sua profissão, pois a exigência social se
tornou um imperativo. Resolveu mudar de área, foi para a música, outro
hiperfoco de Ilus. Fez coisas incríveis, um talento nato, mas não o suficiente
para mantê-la no eixo e desenvolver uma carreira.
“Quando perdi o apoio
de duas produtoras, muito competentes, que trabalhavam em alguns projetos
comigo, entrei em depressão. Naquele momento, percebi que meus esforços não
tinham me levado a lugar nenhum, e que minhas dificuldades sociais eram reais.
O autismo foi a primeira coisa que veio à minha cabeça”, narra.
• O mundo se abriu
Resolveu estudar mais
sobre o assunto e, por fim, se estruturar para realizar avaliação diagnóstica.
“Veja bem, sempre soube que era diferente. Percebi como pensava, sentia e
estruturava o mundo de uma forma diferente. Mas não compreendia completamente minha
diferença no mundo. Por causa da dificuldade de seguir minha profissão, entendi
que precisava de ajuda. Nunca me senti uma pessoa com problemas, mas realmente
vivia com uma espécie de neblina que me impedia de compreender o mundo e até a
mim mesma.”
Quando o diagnóstico
chegou, há poucos anos, o primeiro momento foi de uma euforia enorme.
Inocentemente, pensava que, quando soubessem que ela era autista, iriam validar
todas as coisas que relatava como difíceis. "Acabei descobrindo que a
sociedade é capacitista. E qualquer apoio teria que ser conquistado com muita
luta. Mas, dessa vez, eu tinha as leis ao meu lado e, finalmente, apoio
terapêutico para me fortalecer e me ajudar a lutar para ter uma vida que
valesse a pena ser vivida”, adita Ilus.
A descoberta, apesar
de difícil para o mundo externo, dentro dela, foi como nascer de novo.
Reaprender consigo mesma, enxergar os pontos fortes que sempre existiram e,
principalmente, a ter paciência no processo que vem seguindo até então. Sua
força, completamente resgatada, une-se ao entusiasmo de viver e fazer com que a
vida de outras pessoas também seja melhor. Por isso, o nascimento de um novo
movimento, que vem mudando os rumos do país.
• Uma família
Hoje, Ilus é
co-fundadora do projeto Adultos no Espectro (@adultosnoespectro), que começou
com uma página do Instagram que fornece informações científicas, além de ser um
local de acolhimento para adultos autistas, sejam diagnosticados tardiamente,
seja na infância. “Somos uma plataforma de soluções em saúde mental voltada
para adultos autistas. Temos cursos rápidos e workshops, grupos de apoio,
profissionais associados que fazem diagnóstico e tratamento, como psicólogos,
psiquiatra, neurologista e terapeuta ocupacional, e agora daremos início à
nossa pós-graduação”, informa.
Todas essas ações são
coordenadas por ela e Mayck Hartwig, com quem divide as responsabilidades da
iniciativa. O projeto conta com a arte e a experiência cotidiana da pessoa
autista e a neurociência como direcionadores do pensamento e do desenvolvimento
de linguagem.
“Entendemos que é
importante aprender e ressignificar tudo o que diz respeito ao que se conhece
no autismo. A diferença precisa ser celebrada e muitos saberes são necessários
para se compreender o mundo da pessoa neurodivergente."
Fonte: Correio
Braziliense
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