segunda-feira, 22 de abril de 2024

Coiab comemora 35 anos de luta pelos direitos indígenas na Amazônia

Em 15 de janeiro de 1989, o Ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega lança o Plano Verão e uma nova moeda no país, o cruzado novo. Já em 18 de março do mesmo ano, é inaugurado, em São Paulo, o Memorial da América Latina, um projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer com conceito e projeto cultural desenvolvidos pelo antropólogo Darcy Ribeiro. Na Amazônia brasileira, era fundada a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, mais conhecida como Coiab. São 35 anos de história ligados ao protagonismo do movimento indígena, trabalhando com e para os povos indígenas da Amazônia brasileira, movimentando a pauta no cenário regional, nacional e internacional.

AS RAÍZES DE UMA COORDENAÇÃO AMAZÔNICA

Com o surgimento de associações indígenas do Alto Rio Negro e a movimentação de assembleias no triângulo tukano, mais pessoas passaram a envolver-se com temáticas indígenas. Esse foi o caso dos professores da região do Amazonas e Roraima, que se reuniram para debater sobre educação indígena, se juntando mais tarde à região do Acre.

Assim acontece a primeira assembleia da Coiab, em abril de 1989, um ano após ser implantada a constituição mais recente do Brasil, que reconheceu os povos indígenas, sua organização social, seus costumes, suas línguas, suas crenças e suas tradições. Além de os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, também começa a ser competido à união demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. A Coiab surge vendo que os povos indígenas da Amazônia brasileira ainda estavam em falta na educação, na saúde e, principalmente, no direito à terra.

Orlando Baré, um dos fundadores e 1º coordenador geral da Coiab, lembra: “Chico Mendes ainda estava vivo. Muitos dos nossos colegas, lideranças do Acre,  mantiveram contato com Chico Mendes na época. Eles tinham um pensamento muito parecido conosco na construção das reservas extrativistas naquela região. Isso tudo veio para um debate aqui para Manaus, quando, em abril de 1989, acontecia a 1ª Assembleia dos Povos e Organizações Indígenas da Amazônia.”

Neste início, a Coiab tinha uma organização coletiva e itinerante, que se deu por meio de 9 pessoas: Jacir José Souza Macuxi, Manuel Moura Tukano, Amarildo Machado Tucano, Orlando Melgueiro da Silva Baré, Orlandino Melgueiro da Silva Baré, Alirio Ticuna, Pedro Mendes Ticuna, José Severino da Silva Manchineri, Paulo Roberto da Silva Galibi Maroorno.

Na década de 1990, a Coiab passa a ter uma estrutura similar com a que temos hoje, porém perde alguns cargos que eram foco central e hoje recebem o apoio ou atenção diferenciada pela Coiab. Como, por exemplo, o cargo de coordenador de saúde, tarefa que, hoje, fiscaliza e apoia órgãos como o DSEI. Em 1992, a instituição tem seu primeiro coordenador geral, na pessoa de Orlando Baré, como citado acima. Assim, começa um legado de caminhos traçados por muitos povos e muitas mãos.

LINHA DO TEMPO DOS COORDENADORES GERAIS DA COIAB:

Orlando Baré – Coordenador-geral 1992 (Do Povo Baré)

Claudio Pereira – Coordenador-geral 1993 (Do Povo Mura)

Sebastião Alves Manchineri – Coordenador-geral 1994 (Do Povo Manchineri)

Gersen Santos – Coordenador-geral 1996 (Do Povo Baniwa)

Euclides Pereira – Coordenador-geral 1998 (Do Povo Makuxi)

Jecinaldo Cabral – Coordenador-geral 2002-2006 (Do Povo Sateré Mawê)

Marcos Apurinã – Coordenador-geral 2009 (Do Povo Apurinã)

Maximiliano Correia Menezes – Coordenador-geral 2013 (Do Povo Tukano)

Francinara Soares Martins – Coordenadora-geral 2017-2022 (Do Povo Baré)

Toya Manchineri – Coordenador-geral 2022-2026 (Do Povo Manchineri)

MULHERES INDÍGENAS: DO ACOLHIMENTO AO RENASCIMENTO

Desde sua criação, as mulheres têm papel determinante na Coiab. Com o exemplo da Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (AMARN), que na época era coordenado por Deolinda Freitas Prado, nome sempre lembrado pelos fundadores e atuais coordenadores. Dona Deolinda Dessana faleceu em julho de 2023, deixando um legado de resiliência para todos que a conheceram. Foi em sua gestão que a AMARN se tornou uma das primeiras instituições a apoiar o surgimento da Coiab.

Silvio Cavuscens, assessor jurídico da época da fundação, ressalta que a associação das mulheres foi de grande importância: “a Coiab não tinha nada, então, quando tinha que receber alguém, chegar em algum lugar, buscar alimentação, a AMARN foi esse espaço de refúgio e de início de caminhada da nossa luta”. Angela Tukano, em entrevista para esta reportagem, fala como representante da AMARN da época e lembra do início da Coiab: “a AMARN é uma das mais antigas [apoiadoras] de acordo com os registros. Manoel Moura, Orlando e Orlandino Baré procuravam a Dona Deolinda e falavam que a maior dificuldade era a falta de capital. Naquela época, ser liderança significava se despir do poder aquisitivo. Então, eles tinham que se virar, pedir apoio de quem poderia ajudar, durante essa temporada um dos outros desafios era permanecer na capital (Manaus), sem dinheiro. É por isso que a AMARN nos ajudou, desde hospedagem e alimentação.” lembra.

Ao decorrer dos anos, as mulheres compuseram a coordenação executiva. A primeira mulher na coordenação foi Maria do Carmo Serra Wanano, como secretária, em 1996. Seguindo a seguinte ordem: Maria Miquelina Barreto Machado Tucano, como Secretária-Geral, em 2002, Sonia Bone Guajajara, como Vice-Coordenadora, em 2006, e Francinara Soares Baré, como Tesoureira, em 2013.

Foi apenas em 2017 que um novo caminho foi tomado e uma mulher foi eleita como coordenadora-geral da Coiab: Francinara Soares Baré, que já tinha sido tesoureira na gestão anterior. Essa coordenação foi a única, até hoje, com uma administração paritária, com dois homens e duas mulheres, integrando junto a Nara, a tesoureira, Angela Amanakwa Kaxuyana. Nessa gestão, em que apenas duas mulheres chegaram até o final do mandato, a Coiab foi reestruturada após entrar em uma dívida milionária. A dupla lutou para levantar a Coordenação, correndo atrás dos meios legais e parceiros para tirar o nome da instituição de dívidas.

Um período tenso, pelo que ocorria tanto na esfera global quanto na nacional, 2018 marca a eleição de Jair Messias Bolsonaro, que, já na sua campanha, tinha um discurso anti indígena. Logo mais, em 2020, a coordenação executiva se via em outra situação catastrófica: a epidemia da COVID-19 se alastrava por todo o mundo. Essa foi uma das situações mais difíceis que a organização vive, tendo em vista como a doença atingia os povos indígenas e como as fake news atingiram as comunidades e aldeias no período da vacinação.

Nara Baré relembra esse momento, que a atingiu como liderança e como indivíduo: “a Coiab vinha com um trabalho formidável. O planejamento estava tão redondinho, estava tão bonito no papel. Ninguém esperava que viesse uma pandemia e nem o pandemônio (referência ao governo Bolsonaro). Então, foi muito complicado.”

UNINDO, TRABALHANDO E AMPLIANDO

Ao decorrer dos anos, a Coiab foi crescendo e ganhando cada vez mais destaque. Com isso, comunidades, aldeias e estados foram se integrando à Coordenação e à rede. Atualmente, a Coiab atua nos nove estados da Amazônia Brasileira: Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. Está articulada com uma rede composta por associações locais, federações regionais, organizações de mulheres, professores, estudantes indígenas, e subdividida em 64 regiões de base. Suas 9 organizações de base, representando cada estado, são:

1.                                               Articulação dos Povos Indígenas do Amazonas (APIAM).

2.                                               Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amapá e Norte do Pará (APOIANP)

3.                                               Articulações dos Povos Indígenas do Tocantins (ARPIT).

4.                                               Conselho Indígena De Roraima (CIR).

5.                                               Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (COAPIMA).

6.                                               Federação Dos Povos Indígenas do Pará (FEPIPA).

7.                                               Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (FEPOIMT).

8.                                               Movimento Indígena do Acre (MOV ACRE).

9.                                               Organização dos Povos Indígenas de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso (OPIROMA).

Além das 9 regionais, também faz parte da base da instituição a União das Mulheres Indígenas Da Amazônia Brasileira (UMIAB). Além disso, compõe as Articulações dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e La Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica (COICA).

Em 2019, a Coiab pensa em uma nova ferramenta que pode ser utilizada pelos povos indígenas: é criado o Fundo Indígena da Amazônia Brasileira, também chamado de Podáali, um fundo pensado por, para e gerenciado pelos povos indígenas.  O Podáali surge com o propósito de apoiar planos e projetos de vida dos povos, comunidades e organizações indígenas, que reforcem a autodeterminação e protagonismo, valorizem as culturas e modos de vida, fortaleçam a sustentabilidade e promovam a gestão autônoma de territórios e recursos naturais. “Podáali”, na língua do povo Baniwa do tronco linguístico Aruak, significa “doar sem querer receber nada em troca”. É sinônimo de celebração, reciprocidade e promoção da sustentabilidade para o bem viver dos povos indígenas. Por isso, seus valores circulam o respeito com os povos indígenas amazônicos, as suas demandas, prioridades, visão de mundo, formas próprias de se organizar e de pensar.

A Coiab tem a vontade e o anseio de ampliar a sua rede e atingir mais povos indígenas, ajudando em suas demandas e  dando protagonismo à diversidade de povos existentes na Amazônia brasileira.

PRINCIPAIS LUTAS

A Coiab, ao decorrer dos anos, vem trabalhando com as mesmas pautas que movimentaram a sua criação, agregando mais temas para a construção de novas visões de mundo. São promovidos a articulação política e o fortalecimento das organizações indígenas, que compõem nossa rede por toda a Amazônia brasileira. A Coordenação atua, também, pela demarcação das Terras tradicionais. Lutamos pela garantia dos nossos direitos por uma saúde de qualidade e educação diferenciada digna. Desenvolvemos e fomentamos ações que fortalecem a diversidade cultural dos povos e a sustentabilidade.

Visamos o protagonismo indígena, a formação de líderes indígenas e a inclusão social e digital com projetos que levam internet para os lugares sem conexão. Os eixos de atuação são:  

1.                                               Gestão, fortalecimento político e desenvolvimento institucional da Coiab;

2.                                               Defesa dos direitos indígenas e políticas públicas prioritárias;

3.                                               Autonomia e sustentabilidade dos povos e territórios indígenas;

4.                                               Formação política e técnica;

5.                                               Gênero, infância e juventude indígena na Amazônia;

6.                                               Defesa dos direitos dos povos indígenas isolados.

Um destaque para as lutas da organização é referentes aos povos isolados, onde a Coiab se destaca por estar a frente de atividades que monitoram e lutam pela proteção dos povos, realizando esforços para apoiar as estratégias e ações das organizações e comunidades para a proteção dos territórios e vidas dos povos indígenas isolados. A atenção às políticas de recente contato e as incidências junto aos povos nessa situação é um desafio que se coloca na mobilização entre as organizações indígenas da Rede Coiab, parceiros indigenistas e o Estado brasileiro.

DESAFIOS DAS LUTAS INDÍGENAS

Logo de início, as maiores dificuldades se encontravam no que tinha de mais rico: a diversidade étnica. A Amazônia possui 180 povos, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com a maior população de povos indígenas do Brasil: mais de 200 mil. Mais de 160 línguas espalham-se pelo território, o que foi um grande empecilho para o diálogo e para entender que os povos são diferentes em seu modo de vida, tanto em questões culturais quanto em suas organizações.

Uma das características principais da região amazônica é a sua geografia, com lugares que só podem ser acessados por vias fluviais, fazendo viagens de dias ou semanas. Por estarem distantes, em áreas remotas, o acesso à internet é limitado, o que transforma a comunicação em um desafio, sendo utilizada a língua padrão, o português. Essa dificuldade se estendia para a criação de  assembleia, e contatos extraordinários que estão sendo cessados por projetos que a Coiab realiza junto a parceiros. 

Na questão de execução de projetos, o confronto direto é em questões de proteção territorial, como os grandes empreendimentos aos moldes da exploração do potássio no Território Mura, do petróleo na região do Amapá e do projeto  Ferrogrão, que trata da criação de ferrovia entre Pará e Mato Grosso. Indo para pautas da BR 319, oficialmente Rodovia Álvaro Maia, mais conhecida como Rodovia Manaus–Porto Velho, a exploração do gás no estado do Maranhão e as atividades da empresa Eneva (empresa de energia) também têm impactos em áreas de povos isolados.

O MARCO TEMPORAL

Desde seu início, a organização tem como um dos seus objetivos a luta pelo território. Foi ela uma das primeiras, se não a primeira, a usar a frase destaque “DEMARCAÇÃO JÁ!” usada até os dias atuais. Ao longo dos últimos anos, o tema do marco temporal tomou espaços em veículos de comunicação da grande massa. Com isso, o debate dentro e fora das lutas indígenas começou a ficar em evidência. A missão da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira é reproduzir e amplificar essa demanda que é de suma importância para as lutas indígenas.

A Coiab entende que o Marco Temporal (Lei 14.70123), prejudica não só os indígenas que lutam por anos pela demarcação de terra, mas os indígenas que estão afastados dessa tema, todavia são parte dessa discussão, os povos em isolamento voluntário, uma vez que as terras que eles habitam estão em jogo.  Prejudicando seu modo de vida que é voluntário, com a lei do marco temporal, esses povos podem estar à mercê de perigos como a grilagem, o desmatamento e garimpo ilegal.

O atual coordenador geral da Coiab fala sobre a importância da demarcação para os povos indígenas: “nós sabemos da importância dos territórios para a proteção da floresta, para a proteção da vida, para o equilíbrio do clima do planeta, para a proteção dos seres humanos que vivem na terra.”

ATUALIDADE E ANSEIOS PARA O FUTURO

Atualmente, a Coiab tem como coordenador geral Toya Manchineri, do Povo Manchineri do estado do Acre, que é filho de um dos fundadores da Coiab, o senhor José Severino Manchineri, que, aos 18 anos, já era considerado articulador dentro da sua comunidade. Ele foi liderança por 20 anos e pajé, um dos únicos conhecedores vivos dos cantos antigos dos Manchineri. Participou também do processo de demarcação da primeira terra indígena do Acre.

Zé Severino relembra sobre o pensamento inicial da Coiab: “organizar todas as organizações menores, de base, que já atuavam no movimento indígena, mas não tinham nome nem estrutura formalizada. O primeiro grande desafio da Coiab e que se mantém até hoje, é a demarcação de Terras Indígenas”. Esse pensamento cruzou décadas e ainda se mantém em seu filho, hoje como coordenador geral da Coiab. Com projetos que atuam com proteção territorial, ela se junta a outras organizações para falar sobre pautas envolvendo essa temática tão importante que atravessa gerações.

O coordenador geral fala sobre sua inspiração e sua motivação para seguir no movimento indígena: “meu pai me motivou, por toda a trajetória dele. Com ele, aprendi sobre o movimento. Meus netos e as novas gerações, tudo que fazemos hoje é para que eles tenham um futuro melhor. Livre dos temas negativos que estamos trabalhando hoje”.

A Coordenação Executiva da Coiab sonha com a participação efetiva e nas tomadas de decisões na Conferência das Nações Unidas pelo Clima, a COP30, que será realizada no ano de 2025, em Belém do Pará, no Brasil. Movimentando organizações, federações e articulações indígenas de toda a Amazônia, a Conferência poderá ser um momento de união para falar sobre as suas próprias existências e realidades, além de falar sobre mudanças climáticas da perspectiva dos povos indígenas e levar a pauta desse olhar para o mundo.

Nesta gestão, a Coiab voltou a usar o lema “Unir para organizar, fortalecer para conquistar!”, como memória de um passado que deve estar sempre presente, como lembra Toya Manchineri “Lá atrás, a Coiab juntou as organizações de base com o intuito de orientá-las e fortalecer as bases e juntos conquistarem espaços”. De 1989 até 2024, quando a Coiab completa 35 anos, com a essência do passado e novas visões para seu futuro, lutaremos pelo protagonismo para todos os povos indígenas da Amazônia brasileira.

Fundadores

Manoel Moura Tukano

Paulo Roberto da Silva Galibi Maroorno

Apoiadora

Deolinda Freitas Prado

(AMARN)

 

Fonte: Por Robson Baré, em Amazônia Real

 

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